Resumo: O presente artigo discute a distinção entre esfera pública e esfera privada ainda existente no Direito Administrativo. O texto reflete sobre o princípio da supremacia do interesse público. Apresenta-se a necessidade de revisão destes conceitos, a partir da alteração sobre a concepção do que seria Democracia e sobre a alteração do papel do Estado na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Supremacia do Interesse Público. Estado. Democracia. Esfera pública e privada.
Um fato facilmente percebido pelos juristas que se debruçam sobre o estudo do Direito Administrativo é a enorme distância hoje existente entre a prática e a teoria jurídica, neste campo. O Direito Administrativo, como rotineiramente ensinado nos cursos de graduação e nos manuais, está mais próximo da realidade do século XIX, ou do início do século XX, do que dos problemas da contemporaneidade. Chamaremos este entendimento clássico quanto ao que seria o conteúdo do Direito Administrativo de concepção tradicional, concepção esta que está associada à formação do Estado moderno na Europa ocidental.
Esta concepção tradicional do Direito Administrativo foi, em sua essência, baseada na visão da doutrina francesa, alemã e italiana, as quais buscavam separar o Direito em dois grandes ramos: o direito público, aplicável às relações do Estado; e o comum, aplicado nas relações privadas. Esta divisão, mais do que uma divisão científica ou analítica, estava fundamentada, na verdade, numa visão de mundo, segundo a qual a sociedade também deveria ser entendida como segmentada em dois setores distintos e impermeáveis, o público e o privado [CHEVALLIER, 2009, p. 82].
Segundo esta concepção, haveria uma clara preponderância hierárquica entre as duas esferas: o Estado, por representar o interesse público, era visto como ocupando uma posição de superioridade em relação ao privado, o qual representaria o interesse individual. Esta preponderância do Estado sobre o indivíduo era justificada através de um discurso retórico, o qual afirmava que caberia ao Estado a satisfação desinteressada do bem comum e dos interesses da coletividade [RIVERO, 1975, p. 15].
Neste contexto muito particular, buscou-se diferenciar o Direito Administrativo dos demais ramos do Direito Privado, sob o argumento de ser necessário que o Estado fosse dotado de poderes especiais (a puissance publique), os quais seriam imprescindíveis para salvaguardar o interesse público [CHEVALLIER, 2009, p. 82]. Por outro lado, o Direito Privado haveria de ser regido pelas regras do Direito “comum” e pelo pacta sunt servanda. Nas relações privadas, haveria uma igualdade teórica entre as pessoas, as quais se relacionariam segundo a autonomia de suas vontades.
Sob o argumento da posição de superioridade do interesse público, foi assegurado ao Estado uma séria de prerrogativas, tais como o poder de modificação unilateral das situações jurídicas independentemente da vontade ou concordância do administrado e o poder de, em algumas hipóteses, derrogar as normas do chamado Direito comum [RIVERO, 1975, p. 106].
De fato, esta suposta posição de supremacia do interesse público sobre o interesse privado está, até os dias de hoje, refletida nos nossos manuais de Direito Administrativo, sendo costumeiramente apresentada como um verdadeiro dogma do Direito Público [MELLO, 2004, p. 60]. Desta premissa inaugural decorreriam duas metanormas: a necessidade de se conferir aos órgãos públicos poderes e prerrogativas que não seriam conferidas ao particular [RIVERO, 1975, p. 42]; e a noção de que as normas de Direito Público existiriam para proteger um bem maior, superior aos interesses e direitos do próprio indivíduo [DI PIETRO, 2007, p. 59-60].
Todavia, não é difícil demonstrar que as sociedades contemporâneas democráticas ocidentais privilegiam, hoje, muito mais a defesa dos direitos individuais do que propriamente o interesse coletivo. De fato, em períodos de normalidade democrática, o que se verifica é que a sociedade contemporânea não mais aceita passivamente que os direitos do indivíduo sejam sacrificados em prol dos interesses do Estado.
Do ponto de vista pragmático, podemos inclusive questionar se esta separação entre público e privado chega sequer a privilegiar o próprio Estado. Isto porque as supostas prerrogativas acabam por encarecer a contratação de serviços, por afastar parceiros privados, por dar origem a práticas de corrupção, por criar fórmulas burocráticas e por privilegiar a ineficiência, a inércia, a falta de planejamento e o descumprimento de contratos.
Por mais evidente que seja o anacronismo do que denominamos por concepção tradicional do Direito Público, na forma acima descrita, o fato é que a nossa doutrina administrativista ainda tem sérias dificuldades em apresentar um modelo alternativo sólido e consistente. Assim, mesmo sabedora de que este dogma não mais encontra o mesmo eco na prática jurídica contemporânea, os principais autores preferem o conforto de construir seus manuais sob as premissas do Direito Administrativo do século XIX.
Ao analisar institutos jurídicos contemporâneos, não raro a doutrina acaba por avaliá-los e interpretá-los segundo esta mesma ótica simplista de divisão entre o público e o privado, e de suposta supremacia do interesse público sobre o individual. Assim, não raro os textos doutrinários recomendam ao gestor a imposição unilateral da vontade e a adoção de formulas jurídicas autoritárias, no lugar de privilegiar instrumentos consensuais, práticas inovadoras e institutos jurídicos que premiem a eficiência e a boa gestão.
Para a doutrina clássica, o privado tende a ser visto com desconfiança, com uma suspeita inata de ilegalidade e de imoralidade. Nesta lógica, qualquer proposta de flexibilização de normas burocráticas ou de formalidades inócuas passa a ser vista com a suspeita de improbidade ou corrupção.
Dentro desta concepção, o bom gestor não é aquele que produz o melhor resultado ao menor custo, mas, sim, aquele que impõe o maior número de controles, formalidades e etapas burocráticas, ainda que tais exigências tragam um ônus desnecessário ao particular sem qualquer benefício ao coletivo. As fórmulas apresentadas pela doutrina tradicional para a solução dos grandes problemas da sociedade acabam sendo as mesmas concepções tradicionais de um grande Estado, forte, autoritário, burocrático e posto em uma posição de supremacia em relação ao particular. Nesta visão tradicional, a relação do Estado com particular somente pode se dar por fórmulas estáticas, cobertas da máxima formalidade, do maior rigor e da mais severa burocracia, de forma a se garantir que o interesse público sempre seja colocado acima do interesse privado.
Todavia, o que se verifica empiricamente é que a exigência de diminuição de custos e a necessidade de busca de eficiência vêm forçando a que cada vez mais o Estado se socorra de novas formas jurídicas, inove na sua forma de atuação e busque formas consensuais e menos burocráticas para a implementação de políticas públicas.
Temos como exemplos desta mudança alguns dos institutos contemporâneos do Direito Administrativo, como as parcerias público-privadas (PPP), os convênios, os termos de parceria com as OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), as cooperações com ONGs, os contratos de gestão, as Organizações Sociais, as privatizações, a arbitragem, a conciliação e mesmo institutos que não são realmente novos no Direito Administrativo, como a contratação de entes privados como prestadores de serviço e as concessões de serviço público. Essa tendência igualmente vem sendo verificada no setor regulatório, com a substituição dos mecanismos clássicos de aplicação de multas e sanções pela formulação de planos de ação consensualmente ajustados, com a supervisão do Estado e a participação dos agentes privados.
Partindo-se da visão de mundo de que o privado deve ser visto com eterna desconfiança pelo público, os institutos jurídicos que buscam a aproximação dos dois setores acabam sendo encarados com críticas, não sendo incomuns as acusações de se tratar de “evidente inconstitucionalidade”, de atos de imoralidade e mesmo de tentativa de desmantelamento do Estado. Contudo, parece-nos que hoje o privado e o público tendem a se aproximar, o que nos força a repensar esta concepção mais tradicional dos institutos de Direito Público.
Primeiramente, parece-nos razoável afirmarmos a existência de uma crise desta visão autoritária do papel do Estado [OLIVEIRA, 2008, p. 25-28], notadamente diante das mudanças econômicas, sociais, tecnológicas e políticas que transformaram o mundo, e o Brasil, a partir dos anos 70 e 80 do século XX. Neste novo contexto, autores do século XX, como Massimo Severo Giannini, Giorgio Berti e Alfonso Masucci passaram a defender que a Administração deveria adotar uma postura mais consensual, afastando-se da noção de Estado imperativo e autoritário [ESTORNINHO, 1996, p. 44-45].
Vivemos, hoje, um processo denominado de difusão administrativa. Este processo é caracterizado pelo desaparecimento das linhas divisórias clássicas entre o público e o privado, pelo término da monopolização pelo Estado dos interesses coletivos frente à sociedade civil e pela multiplicidade de entes administrativos autônomos, gerando uma Administração Pública policêntrica [CHEVALLIER, 2009, p. 99; e OLIVEIRA, 2008, p. 61-62]. A coordenação desta Administração policêntrica não é eficientemente realizada pelo modelo burocrático fundado na hierarquia, sendo necessárias novas formas de integração das políticas públicas.
O que se verifica, ainda, é uma tendência de maior participação dos atores privados na formulação das políticas públicas, questão esta denominada de “cidadania ativa” [CHEVALLIER, 2009, p. 257-259]. Hoje, verifica-se um aumento gradual na participação da sociedade civil, do terceiro setor, dos movimentos sociais, das empresas e do cidadão na formulação das políticas públicas, trazendo novas exigências de transparência, de acesso à informação e de questionamento das decisões dos agentes públicos estatais.
Este processo ocorre paralelamente à aproximação entre as regras de Direito Público e do Direito Privado. Esta aproximação se dá tanto pela chamada publicização do Direito Civil, o qual passa a ser interpretado com um Direito Civil Constitucional, relativizando-se a autonomia da vontade e a ideia de igualdade entre particulares; como pela “privatização” das regras de Direito Público, aplicando-se ao Estado algumas das regras do Direito comum e das fórmulas contratuais privadas. De certa forma, esta mudança nos aproxima da concepção anglo-saxã, na qual o Estado deve se submeter ao mesmo conjunto de regras que é imposto aos particulares, o Common Law [RIVERO, 1995, p. 38-39].
Claro que não podemos nos iludir de que estas são as únicas duas concepções universais e possíveis sobre o Direito Administrativo. Na verdade, esta dualidade é muito particular do pensamento europeu ocidental. É certo que outros países, particularmente do oriente, possuem sistemas muito próprios de relacionamento entre Estado, empresas e indivíduos, os quais não correspondem a nenhuma das concepções acima referidas. Por exemplo, podemos citar a realidade do Japão pós-guerra com o sistema do Shocho Tenno-Sei (“sistema do imperador simbólico”) e da política Nagatacho, na qual cabiam ao Estado e à burocracia estatal ditar os comportamentos dos agentes econômicos do setor privado, fenômeno chamado de “Japão S.A.” [CASTELLS, 1999, p. 261-266].
Outro exemplo é o da China, no qual há a classe dos “empresários burocráticos”, ou seja, uma classe capitalista, formada em sua maioria por membros do Partido ou por pessoas com ligações com a burocracia estatal. Este grupo tem acesso a recursos públicos e coletivos em razão do controle formal ou informal sobre as instituições estatais. O modelo chinês deu origem a um complexo capitalismo burocrático, sendo o resultado da aliança entre investidores estrangeiros, empresários locais e instituições governamentais [CASTELLS, 1999b, p. 361].
Pois bem, completamos esta breve digressão para ilustrar algo que, de todo, é bastante evidente: a divisão estanque entre o público e o privado não é um conceito universal. Na verdade, a eleição de um conjunto próprio de regras para reger a atividade estatal, e sua separação em relação ao sistema privado, é uma realidade muito particular. Esta nos foi passada por influência da tradição jurídica da Europa continental, particularmente pelos autores franceses, cuja doutrina tinha que fornecer uma justificativa teórica para o problema da dualidade de jurisdição, administrativa e comum, existente da França [MARQUES NETO, 2009, p. 77].
Devemos relembrar que a dualidade de jurisdição francesa teve como origem a desconfiança dos revolucionários franceses em relação ao Judiciário, o qual era suspeito de se manter fiel à oligarquia do Antigo Regime. Assim, os revolucionários franceses buscaram uma solução teórica para afastar o Estado do controle judicial comum, criando uma jurisdição própria e um conjunto próprio de regras para as questões públicas.
Mesmo considerada somente a tradição continental europeia, a divisão entre o público e o privado não foi o fruto de um processo histórico contínuo, como nos levam a crer alguns de nossos manuais de Direito Administrativo. Houve, em diversos momentos da trajetória das nações europeias, movimentos de privatização da atividade pública, ao qual podemos chamar de “fuga para o direito privado” [ESTORNINHO, 1996, p. 40-41].
A divisão entre público e privado é rotineiramente apresentada como uma longa e linear tradição, pretensamente herdada do Direito Romano. Todavia, o mais correto seria caracterizar essa divisão da sociedade como o resultado de sucessivos movimentos de aproximação e afastamento entre o poder público e o poder privado.
Em verdade, após a queda do Império Romano do ocidente e a adoção do sistema feudal, a divisão entre o público e o privado tornou-se muito tênue. A feudalização da Europa implicou na privatização do poder [DUBY, 2009, p. 22-23]. No feudalismo, houve uma fragmentação do poder público, o qual se encolheu, passando o privado a penetrar todos os aspectos da vida cotidiana e do poder. Na Europa da Idade Média, portanto, a divisão entre o público e o privado era muito frágil, para não se dizer inexistente. E mesmo este conceito não pode ser generalizado para a Europa como um todo, como se estivéssemos falando de um processo único em todo o continente, eis que os diversos países e regiões europeias passaram por processos distintos de formação dos Estados Nacionais.
Tomando o exemplo da França, não existe antes do século XVIII algo que possa ser identificado como um Direito Administrativo, ainda que possam ser localizadas algumas regras específicas para a relação jurídica entre o particular e o Estado [ESTORNINHO, 1996, p. 27].
Esta divisão entre o público e o privado vai se fortalecer posteriormente por influência da redescoberta do Direito Romano. Não do Direito Romano “original”, mas por sua releitura a partir do século XII, pelos trabalhos da Escola dos Glosadores [MASSAÚ, 2008, p. 64-67]. Esta versão de Direito Romano somente veio a ser recriada e recepcionada na França e na Alemanha a partir do século XVIII, já na idade moderna [VERÁS NETO, 2008, p. 147-152]. É razoável se depreender que os doutrinadores franceses e alemães encontraram na tradição do Direito Romano uma fonte de legitimação para a divisão entre o público e o privado. A doutrina passou a atribuir esta divisão a uma célebre passagem de Ulpiano no Digesto, que comenta a diferença entre a utilidade pública e a utilidade privada [ALMEIDA, 2010, p. 105-106]. Devemos, aqui, ressaltar que estamos falando de um Direito Romano idealizado pelos autores medievais e modernos, até mesmo porque seria, de toda sorte, muito difícil se falar no Direito Romano como algo único, dada as diversas realidades e fases da história de Roma.
Nesta releitura do Direito Romano pelos autores medievais e renascentistas, os bens coletivos deveriam ser considerados públicos e serem administrados pelos homens responsáveis pelo bem comum. O domínio do coletivo era inalienável, extra commercium, e sua gestão era feita pela Lei, pelo Rei e pelo magistrado [DUBY, 2009, p. 21].
Fora da esfera do público estava o privatus. O privado deveria ser mantido protegido da intrusão de terceiros. Estavam fora da autoridade coletiva, e, portanto, deveriam contar com limites bem definidos, para serem resguardados de influências indevidas. A barreira jurídica era importante tanto para proteger o patrimônio da família, a res familiaris, como o poder do patriarca, o pater familias. Este segundo domínio, do privado, era o que fazia parte das transações, do comércio e do patrimônio.
Neste particular, devemos alertar que a clássica divisão atribuída a Ulpiano não representa uma teoria em abstrato apta a efetuar uma diferenciação absoluta entre os dois setores, ou mesmo que tal divisão importasse numa classificação dos elementos da realidade romana, postura esta que, por sinal, não correspondia ao modo de ser dos romanos [ALMEIDA, 2010, p. 104].
Com as distorções e presenteismos já comentados, os autores modernos – notadamente os alemães e franceses – passaram a estudar a diferença supostamente feita pelos romanos entre a administração da res publica e a realização dos atos privados.
Apenas no século XVIII é que os doutrinadores da Europa continental, particularmente autores franceses, começaram, de uma forma modesta, a defender a necessidade de um conjunto de regras próprias para o Estado e a não submissão do Estado ao Direito Comum [ESTORNINHO, 1996, p. 43-44]. Estas primeiras discussões permitiram que, algumas décadas depois, já no final do século XIX, autores como Otto Mayer expusessem claramente a noção de um sistema de Direito Administrativo como um ramo distinto e autônomo.
Temos, então, que a concepção tradicional de separação entre a esfera pública e a privada é um conceito típico do século XIX, identificando-se a Lei como expressão da vontade geral e a Administração como representante do interesse público [MEDAUAR, 2003, p. 189]. É interessante se notar que foi justamente no Estado Liberal que se intensificou esta separação entre Estado e Sociedade, entre o público e o privado, separação esta motivada mais na necessidade de proteção da propriedade e da intimidade [ESTORNINHO, 1996, p. 31-32] do que na proteção do poder do Estado.
A atuação do Estado, segundo a tradição doutrinária dos autores alemães e franceses dos séculos XVIII e XIX, deveria se dar pela imposição, pela imperatividade, pela coação, a qual estaria justificada pelo discurso ideológico de que o Estado representaria a coletividade e o interesse público. Caberia ao Estado o dever de sobrepor o interesse público ao interesse particular. Classicamente, o objetivo da administração pública seria, então, o de proteger a res publica contra a captura pelos interesses privados [PEREIRA, 1998, p. 81]. Possivelmente esta seja a explicação para o sentimento de desconfiança que os relacionamentos entre o setor público e setor privado ainda hoje despertam.
O que modestamente postulamos é que esta visão autoritária do papel do Estado tornou-se anacrônica, ante a mudança da concepção que hoje temos sobre o que é Democracia. De fato, uma interpretação possível que podemos fazer dessa tensão é a disputa entre duas concepções distintas sobre o que é, ou deveria ser, um governo democrático.
A primeira é baseada no conceito de democracia por representação. Nesta concepção, os representantes do Estado, democraticamente eleitos, são legítimos para definir os interesses da sociedade, eis que respaldados pelo voto popular. Assim, seria natural caber ao Estado o monopólio sobre o que seria o interesse público, pois o Estado agiria de acordo com a vontade dos representantes legitimamente eleitos, reproduzindo, portanto, a vontade da sociedade.
A concepção mais atual tem uma visão mais crítica sobre o papel dos representantes políticos, os quais não necessariamente representariam os conflitos existentes na sociedade. Autores como Amartya Sen passaram a rejeitar a ideia de que a Democracia poderia ser limitada a um simples sistema de votos para a indicação de representantes políticos. Autores do século XX, como John Rawls, Habermas e Amartya Sen, passaram, por distintos argumentos, a defender uma visão mais ampla dos institutos democráticos, associando Democracia à argumentação pública e a um “governo pela discussão” [SEN, 2010, cap. 15].
Nesta segunda concepção de Democracia, a vontade dos representantes políticos não poderia ser simplesmente sobreposta à vontade dos indivíduos que compõe essa sociedade, impondo-se aos representantes, e ao Estado, o dever de explicar e convencer a sociedade da necessidade das suas políticas públicas, no lugar de simplesmente impô-las de forma unilateral e autoritária.
O que postulamos é que parte considerável dos conflitos que hoje verificamos sobre o que seria o interesse público está relacionada, na verdade, a uma disputa sobre as duas visões que se tem sobre democracia. De um lado, a compreensão do Estado como um ente autoritário o qual, por estar legitimado pelo processo eleitoral, poderia agir a despeito do interesse individual. De outro, uma visão de que o Estado deveria respeitar o indivíduo e debater publicamente as suas políticas públicas, pois o coletivo nada mais é do que uma reunião de indivíduos. Estas duas visões estão atualmente em uma intensa disputa no campo judicial, podendo ser percebida, de forma mais ou menos explícita, em várias das questões que hoje chegam às portas do Judiciário.
O que nos parece é que há, nos dias atuais, uma tendência de gradual aproximação entre a esfera pública e a esfera privada, na medida em que o Estado se aproxima do destinatário das políticas públicas, que é o indivíduo. Esta aproximação vem sendo reforçada pela atual crise da concepção tradicional da Democracia representativa. Estes dois fatores vêm dando origem a um questionamento e a uma revisão do princípio da supremacia do interesse público. Como resultado, o que se tem verificado é a tendência a uma maior tutela do interesse individual na esfera judicial, às vezes de forma exagerada.
Em conclusão, parece-nos que o Direito Administrativo está em um momento de reflexão. Trata-se de um momento de questionamento sobre o relacionamento entre o público e o privado e de revisão sobre as formas de se equilibrar os distintos interesses em jogo na gestão dos bens coletivos. Neste contexto, parece-nos razoável supor que o grande desafio dos autores administrativistas do século XXI será encontrar um novo ponto de equilíbrio entre interesse coletivo e interesse individual.
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