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Limites ao poder de reforma e a reforma da CPI

01/08/1999 às 00:00
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Atritos entre os poderes não é privilégio dos países situados abaixo da linha do equador. Os norte-americanos, os primeiros a positivarem a teoria da tripartição dos poderes, também experimentaram, em alguns momentos da sua já longeva história, desavenças entre os representantes dos poderes constituídos.

O — talvez — mais célebre desses conflitos tenha sido protagonizado por Franklin Delano Roosevelt, o presidente que por mais tempo ocupou a Casa Branca, desde que George Washington fundou a capital que leva seu nome nos arredores da sua propriedade rural. Refiro-me ao polêmico court packing plan, de 1937, quando Roosevelt tentou alterar o perfil do Judiciário, e especialmente a composição da Suprema Corte, após reiteradas decisões que consideraram inconstitucionais grande parte da legislação que objetivava consolidar a recuperação econômica após o desastre da Bolsa de Nova Iorque. Dentre as várias decisões contrárias ao new deal, pode-se destacar a invalidação da rail pension law, do National Industrial Recovery Act, do Agricultural Adjustment Act e da New York minimum wage law, as duas primeiras de 1935 e as duas últimas de 1936 — sobre o tema consultar, The Supreme Court Reborn, William E. Leuchtenburg, Oxford University Press, 1995.

Confirmado nas urnas após uma vitória arrasadora que lhe proporcionara um segundo mandato e folgada maioria no Congresso, Roosevelt (Franklin, não o Theodore) entendeu ser aquele o momento ideal para enfrentar a Suprema Corte, então, a instituição mais sólida e respeitada do país. Em apertada síntese, a intenção do Presidente era obter do Congresso a aprovação do pacote legislativo que possibilitava ao Executivo nomear juízes federais — aí incluídos os integrantes da Suprema Corte — sempre que algum deles atingisse a idade de 70 anos e não requeresse a aposentadoria. Tal providência alteraria o perfil dos órgãos judicantes, na medida que para cada juiz com 70 anos ainda na ativa o Presidente nomearia um novo. A alteração tinha endereço certo: a Suprema Corte, como visto, com dificuldades em enxergar a adequação das proposições legislativas do Executivo com o texto da Lei Fundamental. Seguiu-se amplo e intenso debate nacional que culminou com a recusa do Capitólio em aprovar a legislação encomendada pelo Presidente. Entretanto, os rooseveltians não saíram perdendo, posto que simultâneo à recusa legislativa a Suprema Corte passou a entender constitucionais as medidas do Executivo e, além disso, vários dos seus integrantes requereram aposentadoria, propiciando à Casa Branca a nomeação de justices (termo que designa os membros da Suprema Corte) mais afinados com o seu modo de ver e implementar a América.


A situação descrita nos parágrafos anteriores guarda certa semelhança com as dissenções verificadas no Brasil atual. Há uma aparente desarmonia entre Legislativo e Judiciário concernente à amplitude dos poderes da CPI e da atividade do STF enquanto guardião da Carta Republicana. Aqui, como na América dos anos 30, a saída parece apontar para uma proposta legislativa, no caso brasileiro, uma alteração no texto do § 3º, do art. 58 do Estatuto Político, de molde a deixar mais claro a amplitude dos poderes investigatórios da CPI. Segundo noticia a imprensa, a proposta de emenda constitucional, modificaria o citado art. 58, consignando de forma expressa, explícita e extreme de dúvidas, a possibilidade de o órgão investigatório legislativo determinar a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico dos investigados. Os parlamentares, de diferentes matizes ideológicas acreditam que essa providência funcionará como elixir a impedir ou curar crises futuras, nessa seara específica, ressalte-se.

Sob o ponto de vista de adequação da proposta de emenda às limitações formais e materias a que está sujeito o Poder de Reforma, não há dúvida que uma proposição dessa natureza não encontraria óbice constitucional. Isto é, não há possibilidade de a emenda contrariar o núcleo imodificável da Lei Fundamental da República. Sendo assim, a medida se revelaria úbere e eficaz aos propósitos dos parlamentares em demarcar expressamente a área de atuação e a atividade investigativa das duas Câmaras Federais, bem como de diminuir a influência do Pretório Excelso no funcionamento das CPIs.

Embora a futura proposta de emenda se revele adequada aos princípios que presidem à atuação do Congresso na sua denominada atividade Constituinte Derivada, não se pode perder de vista o enunciado do inciso XXXV, do art. 5º (princípio do amplo acesso à tutela jurisdicional), da Lei Maior. Nesse inciso encontra-se albergada garantia individual intocável, ampla, democrática (portanto conectada com o princípio fundamental do art. 1º, caput) que faculta a todos submeter ao crivo do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Trata-se direito individual, portanto, dispositivo irreformável pelo Constituinte Derivado, face a limitação material explícita. Sendo assim, mesmo após reformado o mencionado § 3º do art. 58, restaria intocada a competência do STF em interferir nos trabalhos da CPI, sempre que o investigado se sentisse ameaçado em qualquer direito seu, ou que entendesse desarrazoada (princípio da razoabilidade, substantive due process of law) decisão investigatória de CPI, no sentido de "quebrar" seu sigilo bancário ou telefônico.

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Creio indispensável que o Parlamento se debruce sobre esse detalhe constitucional incravado na península inexpugnável da Carta Política de 1988. Ora, se tantos parlamentares (repito, de diversas tendências ideológicas) crêem que o elastecimento do § 3º do art. 58 irá resolver a questão, é porque ainda não refletiram sobre a mencionada garantia individual. Se a decisão do STF causa tanta polêmica agora, imagine-se no futuro acórdão semelhante publicado após a modificação no artigo que disciplina o funcionamento da CPI e que o Congresso entende suficiente a ampliar seus poderes investigatórios.

Longe (anos-luz distante) de querer colocar mais lenha na fogueira, teço estas linhas na crença de estar contribuindo — de forma modesta, bem sei — para uma reflexão mais madura (e sob um ponto que doutrina ainda não alertou o Legislativo) nesse momento importante da vida nacional, onde o Congresso não quer ter os seus poderes diminuídos e o Supremo entende que decidir de forma contrária equivaleria a despir-se de sua função constitucional.

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Sobre o autor
João Carlos Souto

procurador da Fazenda Nacional, advogado em Uberlândia (MG), professor de Direito Constitucional na UNIT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUTO, João Carlos. Limites ao poder de reforma e a reforma da CPI. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/231. Acesso em: 27 dez. 2024.

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