2. Contextualização dos objetivos e finalidades instituídos pela Lei nº 12349/10
O desenvolvimento nacional sustentável deve ser entendido como a busca do desenvolvimento econômico e do fortalecimento das cadeias produtivas de bens e serviços domésticos, usando-se para esse fim do poder de compra governamental, mediante novas normas que assegurem “atuação privilegiada do setor público com vistas à instituição de incentivos à pesquisa e à inovação que, reconhecidamente, consubstanciam poderoso efeito indutor ao desenvolvimento do País” (Exposição de Motivos da MP 495/10, convertida na Lei 12349/10).
Essa terceira finalidade das licitações, qual seja, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, segundo a Exposição de Motivos da medida provisória, fundamenta-se nos seguintes comandos da CF: (I) inciso II do art. 3º, que inclui o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; (II) incisos I e VIII do art. 170, atinentes à organização da ordem econômica nacional, que deve observar, entre outros princípios, a soberania nacional e a busca do pleno emprego; (III) art. 174, que dispõe sobre as funções a serem exercidas pelo Estado, como agente administrativo e regulador da atividade econômica; e (IV) art. 219, que trata dos incentivos ao mercado interno, de forma a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país”
A nova legislação já foi submetida à análise do Tribunal de Contas da União, através do Acórdão 693/2011 – Plenário, no qual se decidiu que o objetivo do legislador, no uso do vocábulo "poderá", é imprimir discricionariedade ao gestor de utilizar ou não a possibilidade de preferência por produtos e serviços nacionais em suas contratações, devendo evidenciar que a opção escolhida tem como premissa o interesse público e a conveniência do órgão, desde que devidamente justificados.
Porém, tais regras de preferência não irão se aplicar quando não houver produção suficiente de bens manufaturados ou possibilidade de prestação de serviços no país.
Poderá ainda ser estabelecida margem de preferência adicional para os produtos ou serviços nacionais não apenas produzidos no país, mas resultantes do desenvolvimento e da inovação tecnológica realizada no Brasil. Tal percentual também é de no máximo 25% e se aplica cumulativamente com a margem de preferência já aludida, desde que, somado a esta, não ultrapasse o percentual de 25% (art. 3º, §§ 7º e 8º). Como exemplo, pode-se citar que, se certo serviço passa a conter a margem de preferência de 10% por ser prestado no país, o fato de o mesmo também ser desenvolvido utilizando-se de inovação tecnológica nacional fará com que receba uma preferência adicional, a qual não poderá ser superior a 15%, observando-se assim, o respeito ao limite máximo de 25%. Essa preferência não se aplica aos bens e serviços cuja capacidade de produção ou prestação no país seja inferior: I- à quantidade a ser adquirida ou contratada; ou II- ao quantitativo fixado com fundamento no § 7º do art. 23 da Lei 8.666, quando for o caso.
O parágrafo 12 do art. 3º permite que a licitação seja restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País, quando se tratar de contratações destinadas à implantação, manutenção e o aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação, considerados estratégicos em ato do Poder Executivo Federal. Porém, as margens de preferência não ocorrerão quando os bens ou serviços nacionais não puderem ser produzidos ou prestados na quantidade demandada pela Administração Pública, como no caso de falta de capacidade de produção nacional (art. 3º, §9º) ou ainda quando se tratar de licitação em que o edital permite a participação parcial dos licitantes (aquisição de bens de natureza divisível), prevista no art. 23, §7º da Lei nº 8.666/1993.
De acordo com o artigo 3º, §13, da Lei 8666/93, será dada publicidade via Internet, a cada exercício financeiro, da listagem de empresas beneficiadas pela aplicação das regras de tratamento diferenciado inseridas pela Lei 12349/10, além da indicação orçamentária dos recursos a serem alocados para cada uma dessas empresas..
Buscando a efetivação de tais medidas, o Decreto n. 7.546/2011, instituiu no âmbito Federal a Comissão Interministerial de Compras Públicas, órgão composto pelos ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Ciência e Tecnologia e das Relações Exteriores e da Fazenda, sendo que este último presidirá a Comissão.
Segundo a nova redação do § 2º do art. 3º da Lei 8666/93, no julgamento, existindo igualdade de condições como critério de desempate (revogação do inc. I pela Lei 12349/2010) será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: “II- produzidos no país; III- produzidos ou prestados por empresas brasileiras; e IV- produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País”. Na análise desses critérios também é preciso considerar os incisos XVII, XVIIII e XIX do art. 6º da Lei 8666 (acrescidos pela Lei 12349/10), definindo como: produtos manufaturados nacionais, os produtos manufaturados produzidos no território nacional de acordo com o processo produtivo básico ou com as regras de origem estabelecidas pelo Poder Executivo federal; serviços nacionais, os serviços prestados no país nas condições estabelecidas pelo Poder Executivo Federal; e sistemas de tecnologia de informação e comunicação estratégicos, os bens e serviços de tecnologia da informação e comunicação cuja descontinuidade provoque dano significativo à Administração Pública e que envolvam pelo menos um dos seguintes requisitos relacionados às informações críticas: disponibilidade, confiabilidade, segurança e confidencialidade.
Acerca da interpretação e constitucionalidade da Lei 12349/10, vale ressaltar o posicionamento do ministro Eros Grau (2012, p. 232):
Afirmar a soberania econômica nacional como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna e como o objetivo particular a ser alcançado é definir políticas públicas voltadas- repito- não ao isolamento econômico, mas à viabilização da participação na sociedade nacional, em condições de igualdade, no mercado internacional.
O objetivo das margens de preferências é o fomento ao desenvolvimento de tecnologia nacional, já que a mesma é motivo de competitividade internacional e de prosperidade das nações, de acordo com a exposição de motivos da MP 495/2010, que posteriormente se converteu na Lei 12349/10.
3. O princípio da isonomia e sua constitucionaliadde frente à fixação das margens de preferência
A Lei nº 12349/10 alterou a maneira de aplicação do principio da isonomia e reformulou a avaliação da vantajosidade das propostas. A isonomia é afetada porque se autoriza a fixação de preferências em relação a bens e serviços relacionados à promoção do desenvolvimento nacional. Tais preferências não são arbitrárias e também não estão relacionadas à nacionalidade do licitante, já que um licitante estrangeiro que ofereça bens ou serviços produzidos no Brasil será beneficiado em face de licitante brasileiro que ofereça bens ou serviços estrangeiros, por exemplo.
O atendimento a isonomia não significa apenas tratar de forma igualitária os semelhantes, mas sim diferenciar o tratamento para aqueles que se situam em situação de desigualdade. A maior dificuldade verificada no caso concreto é definir quais os critérios de desigualamento poderão ou não ser considerados legítimos.
A igualdade entre os licitantes possui dupla acepção: deve-se dispensar tratamento isonômico a todos os participantes da disputa, vedando-se discriminações injustas quando do julgamento das propostas e deve ser oferecida ampla oportunidade de participação nas licitações a quaisquer interessados, desde que possuam condições de assegurar o cumprimento do futuro contrato que venha a ser celebrado.
Nesse sentido, é a lição de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2012, p. 582): “Não configura, por essa razão, violação ao princípio da isonomia o estabelecimento de requisitos mínimos de habilitação dos licitantes cuja finalidade seja exclusivamente garantir a adequada execução do futuro contrato”.
O § 1º do art. 3º da Lei 8666/93 veda que os agentes públicos estabeleçam tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no tocante a moeda, modalidade e local de pagamento, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais.
Parcela da doutrina aponta como argumento justificador da não afronta ao princípio da isonomia a diferenciação de tratamento consistente em se considerar vencedora proposta de fornecimento de bens e serviços nacionais mais caros do que os estrangeiros, já que simplesmente haveria uma compensação de diferença de tributação- incidência de altos tributos sobre serviços e produtos domésticos e, regra geral, isenções ou imunidades concedidas pelos países estrangeiros aos produtos de suas empresas exportados para o Brasil.
Porém, tal justificativa encontra resistência no art. 42, § 4º da Lei 8666/93, o qual determina que:
Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes.
§ 4º Para fins de julgamento da licitação, as propostas apresentadas por licitantes estrangeiros serão acrescidas dos gravames conseqüentes dos mesmos tributos que oneram exclusivamente os licitantes brasileiros quanto à operação final de venda.
Tendo em vista que tal norma encontra-se produzindo efeitos, o argumento estritamente econômico-tributário não é capaz de justificar à luz do principio da isonomia, a atribuição de margem de preferência aos preços de produtos e serviços nacionais constantes das propostas em uma licitação. Dessa forma, o que o legislador criou foi um critério de ponderação entre o objetivo de satisfazer a isonomia e de promover o desenvolvimento nacional através das licitações.
Marçal Justen Flho (2011, p. 451) aduz que:
A incidência dos princípios da isonomia sobre a licitação desdobra-se em dois momentos. Em uma primeira fase, são fixados os critérios de diferenciação que a Administração Pública adotará para escolher o contratante. Em uma segunda fase, a Administração verificará quem, concretamente, preenche mais satisfatoriamente tais critérios.
Assim, trata-se de uma preferência de cunho nitidamente impessoal, relacionada aos objetivos fundamentais da nação. Mesmo assim, permitem-se diferenciações entre propostas que, diante de certos aspectos, possam apresentar-se semelhantes.
Contudo, na aplicação de preferência, a Administração Pública deverá velar para que a fixação das margens de preferência seja feita com razoabilidade, de modo a não promover gastos desnecessários em face da finalidade prevista em lei, descaracterizando a natureza e a finalidade do processo licitatório.
Interessante destacar ainda o voto do Ministro Cesar Peluso, relator da ADI 3.583-PR:
(...) escusaria advertir que se não pode desvirtuar o instituto da licitação para convertê-lo em instrumento de incentivo vinculado a política industrial, fiscal ou social do Estado-Membro. Sua finalidade constitucional é outra, como se vê nítido no art. 37, XXI. Acrescente-se que a lei não autoriza o administrador público a atuar, no exercício de sua gestão, com espírito aventureiro (...).
Dessa forma, tal tratamento preferencial para as propostas aptas à promoção do desenvolvimento nacional não afronta o princípio da isonomia.
4. CONCLUSÃO
Um dos maiores problemas vividos pelo Direito são as reformas legislativas pontuais, capazes de inserir na legislação conceitos extremamente subjetivos, o que pode dar ensejo a manobras políticas fraudulentas e que se distanciam das finalidades perseguidas pelo Poder Público.
O grande questionamento acerca do tema é se será ou não vantajoso para o Estado promover o desenvolvimento nacional, deixando em contrapartida de escolher a melhor proposta, a proposta que economicamente seja mais vantajosa. Se o estado pode e a lei permite expressamente que ele contrate uma empresa com o preço 25% acima do praticado no mercado, sob o argumento de que ela atende aos requisitos do diploma, a indagação é no sentido de qual critério deverá prevalecer: o menor preço ou a empresa que cuida do meio ambiente?
A ideia de desenvolvimento nacional sustentável tem por base o desenvolvimento com proteção ambiental, cuidados com o meio ambiente. A empresa que atender a esses cuidados poderá ter direitos a essa preferência. Assim, há um sério conflito nesse caso, porque não irá prevalecer aquela que têm o menor preço para dar preferência àquela que tem uma boa proteção ambiental, cuidado com o meio ambiente. As duas escolhas são importantes. Trata-se de uma escolha dramática. Se o Brasil já passa por uma situação delicada, na qual não há dinheiro para tudo, pagar 25% a mais significa que o Estado irá retirar de outro contrato para a satisfação de uma outra necessidade, qual seja, de proteger o meio ambiente. Se ele pagar 25% no contrato X, dando preferência à empresa que cuida do meio ambiente e tem produtos nacionais, estará deixando de utilizar esses 25% em um outro contrato, impedindo de atender uma outra necessidade pública que também é importante.
Dessa forma, a questão será resolvida com base no critério da proporcionalidade, segundo o qual deverá haver um equilíbrio para que não apenas prevaleça o menor preço, como também não prepondere de forma única a proteção ambiental.
Para que o novo comando legal ganhe aplicabilidade efetiva, o governo poderia conceder incentivos fiscais para as empresas que contratam com o Poder Público a fim de que as mesmas possam se adequar a essas novas exigências, o que geraria benefícios tanto para a Administração quanto para o administrado, pois haveria um aumento da disponibilidade desses bens no mercado de consumo a preços razoáveis e compatíveis. Semelhante situação de incentivo ocorre com as empresas de pequeno porte, que por desempenharem importante papel na economia, e visando a manutenção de suas atividades pelo governo, recebem ajudas de ordem tributária e fiscal para permitir a continuidade de suas atividades empresariais.
Assim, é possível observar que o critério preço acaba sendo mitigado, uma vez que o produto mais barato poderá não representar a melhor compra, tomando como critérios os gastos e os requisitos ambientais.
Nenhuma das escolhas deve ser feita de forma absoluta. É preciso ponderação. Ora prevalecerá a questão ambiental, ora o menor preço e tudo isto dependerá da situação concreta a ser analisada.
A inovação requer o devido equilíbrio em razão da eficiência e economicidade que pauta as contratações públicas, pois, senão, caso seja aplicada de forma desarrazoada, poderá ocasionar um efeito econômico drástico, pois as empresas que forneçam bens para o poder público podem acabar deixando de lado a preocupação com a competitividade de seus preços e produtos.
O desenvolvimento econômico perseguido pelo legislador é o principal meio de se alcançar outros objetivos fundamentais perseguidos pelo Estado Democrático de Direito, como a erradicação da pobreza, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem geral.
Em síntese, o problema apresentado em relação às licitações sustentáveis é: desejamos contratações ambientalmente equilibradas, que degradem menos o meio ambiente, mas quanto (ou até onde) o Estado (e a sociedade) entendem legítimos pagar por tal opção?
Infelizmente, o tema não tem sido tratado com a maturidade necessária para que o Estado chegue a uma resposta adequada, restando- nos aguardar o enfrentamento da matéria pela doutrina pátria, bem como os questionamentos que ainda serão suscitados perante os tribunais superiores.