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Aspectos controversos do instituto da união estável: do preconceito histórico à atual insegurança jurídica

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30/11/2012 às 14:36
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4)  UNIÃO ESTÁVEL X CASAMENTO: INEXIGIBILIDADE DE OUTORGA DO CONVIVENTE E INSEGURANÇA JURÍDICA

Conforme preceitua Sumaya Saadi Morhy Pereira,

O excesso de leis não tem demonstrado o aumento da certeza e segurança jurídicas, ao contrário, revela o esvaziamento da própria efetividade da legislação, da mesma forma que o excesso de remédios pode imunizar o paciente e tornar a terapia inócua. (PEREIRA, 2006, pp. 511-12)

Ao observarmos os antecedentes históricos do reconhecimento da pluralidade como valor jurídico, podemos concluir que, não obstante o clamor social por uma readequação do direito, tornando-o condizente com a realidade fática, as transformações tem ocorrido de forma lenta, por meio de uma simbiose entre o moderno e o arcaico, fenômeno amplamente evidenciado pela sociologia.

Desta forma, ao mesmo tempo em que o surgimento da Constituição Federal traz a supremacia dos princípios e valores à ordem jurídica, a lei infraconstitucional parece sucumbir às ideologias preconceituosas que se prestam a estabelecer distinções entre as famílias da união estável e do casamento, conforme observa Maria Cláudia Crespo Brauner:

Infelizmente, no novo Código Civil, a referência ao concubinato serviu exclusivamente para restringir os direitos dos companheiros. É lamentável impor aos companheiros a condição de preencher os requisitos de uma “habilitação à união estável”, nos moldes das condições impostas àqueles que querem casar, para terem seus direitos reconhecidos. Aqui reside o elemento moralizador, que desconhece situações comuns em nossa sociedade, de pessoas que vivem relações afetivas sem preencher as condições para o casamento, e, em alguns casos, vivendo duas relações estáveis concomitantemente. Como eleger uma das relações como merecedora de proteção e, simplesmente, desconsiderar a existência de efeitos a outra? (BRAUNER, 2004, p.267)

Apenas a título de exemplificação, entre estas e outras disposições preconceituosas, travestidas de moralidade, encontra-se a facilitação da conversão da união estável em casamento – que se traduz em mais uma tentativa de padronização das relações humanas – a exclusão do companheiro da ordem de vocação hereditária no direito sucessório e a controversa inexigibilidade de outorga do convivente para alienação dos bens comuns, sendo que esta última, revela a desídia do legislador na proteção do patrimônio adquirido na constância da união, gerando, consequentemente, uma inevitável insegurança jurídica, que afeta a entidade familiar.

Neste sentido preceitua Rolf Madaleno:

Curiosa desigualdade, pois a outorga no casamento é condição de validade do negócio jurídico, e na união estável não há similar cautela, deslocando-se a discussão para a área da indenização por perdas e danos, capaz de gerar com sua procedência o ressarcimento em dinheiro, ou a compensação com outro bem, só sendo cogitada da anulação da venda se restar demonstrada a má-fé do terceiro comprador, por haver atuado no cenário fraudulento como testa de ferro do convivente vendedor. No casamento, o negócio sequer se consolida sem o consentimento do cônjuge, enquanto na união estável a mera omissão da existência da convivência pelo vendedor, e desconhecendo o comprador a união estável, convalida a venda em detrimento do parceiro ludibriado pela ligeireza de seu convivente em se desfazer do imóvel. (MADALENO, 2004, p.809)

A matéria carece de normatização e são parcos os enfrentamentos jurisprudenciais.

Ainda que parte da doutrina posicione-se no sentido da impossibilidade de exigência da anuência do convivente, não se ousa desconhecer a insegurança jurídica gerada pela problemática em questão.

Neste sentido, Francisco José Cahali sugere “ao menos a ciência do convivente do proprietário no ato de disposição, admitida até na forma de assinatura como testemunha do negócio jurídico realizado”. (CAHALI, 2002, p.184)

Em recente pesquisa efetuada pelo Censo (outubro de 2012), resta evidenciado um novo perfil da família brasileira, com um considerável crescimento das uniões informais, casamentos inter-raciais, separações e divórcios.

De acordo com o IBGE, “O casamento informal era mais concentrado na região Norte, e entre casais de baixa renda. Agora, está mais disseminado. É comum a decisão de passar por uma experiência antes de contrair matrimônio...” (ZERO HORA, 2012, p.40)

Neste contexto, tem-se que:

... a família, por mais livre que seja, e que tenha existência natural, reclama o regramento do complexo de direitos e deveres, que dela nasce, para que, ao lado dos sentimentos próprios as união fática, exista um clima de responsabilidade, indispensável à segurança dos conviventes e de sua prole. (OLIVEIRA, p.74. 1995)

Felizmente, o afeto vem logrando reconhecimento como valor jurídico, o que exige um reexame das inúmeras questões controversas, à luz dos pressupostos da Constituição Federal de 1988, conforme tem sido realizado por nossos tribunais.

Neste égide, recentes decisões jurisprudenciais, prosseguem na legitimação da presunção de esforço comum,  dispondo que

“...afirmada a união estável, e não existindo pacto escrito em sentido diverso, incidem as regras do regime da comunhão parcial de bens, havendo presunção de que os bens adquiridos na constância da relação e a título oneroso são considerados frutos do trabalho e da colaboração comum. (TJRS, proc. 70049043920).

Por esta razão, ainda que a União Estável dispense qualquer tipo de contrato para seu reconhecimento jurídico, por tratar-se de união de fato, este revela imprescindível à garantia dos direitos dos conviventes em relação ao patrimônio comum, pois, uma vez existente, o registro imobiliário deste contrato de convivência atribui eficácia erga omnes à pactuação estabelecida, conferindo- por meio da publicização da relação- a tão almejada segurança jurídica, não somente aos companheiros, estendendo-se aos terceiros contratantes.


5) O CONTRATO DE CONVIVÊNCIA E NECESSIDADE DE REGISTRO IMOBILIÁRIO:

Historicamente, a valorização do casamento como a única forma legítima de entidade familiar não constituiu um óbice para que as famílias informais – condicionadas a viver à margem do preconceito – buscassem instrumentos hábeis à legitimação de seus direitos: os contratos de convivência.

Em resposta à inconformidade social, surgem inúmeras restrições aos instrumentos que buscavam a legitimação do concubinato, como a pioneira “orientação expressa do Tribunal de Justiça de São Paulo”, que merece transcrição pelo caráter amplamente discriminatório:

1º) Ficam todos os Tabeliães da Comarca, quer os da sede, quer os dos distritos, expressamente proibidos de lavrarem em suas notas os chamados “casamentos por contrato” em que um homem e uma mulher impedidos ou não de contraírem casamento se obriguem a viver juntos, prestando serviços recíprocos e colocando em comunhão os seus bens, quer esses contratos revistam a forma de sociedade universal (art.1. 368 do Código Civil), quer a de locação de serviços sob desobediência e conjuntamente ao escrevente e ao Tabelião que lavrar e subscrever essas escrituras. 2º) Ficam, igualmente, expressamente proibidos os oficiais do Registro de Títulos e documentos da Comarca de transcreverem em seus livros contratos dessa mesma natureza por instrumento particular sob as mesmas penalidades do item 1º. 3º) Este juízo e seus auxiliares nas correções periódicas que procederão nos cartórios examinarão uma a uma as escrituras lavradas, a fim de verificarem se foi dado integral cumprimento às determinações contidas neste provimento. Cumpra-se, dando ampla divulgação, inclusive pela imprensa, por se tratar de ordem que visa o interesse geral. (CAHALI, 2002, p.12).

Com o advento da Constituição Federal de 1988, diploma que concede proteção às relações informais, reconhecendo-as como um fato social e não como uma nova categoria de casamento, não mais subsiste óbice à pactuação entre os conviventes, estabelecida visando garantir seus direitos e deveres.

De acordo com Luís Paulo Cotrim Guimarães, a união estável “não pode ficar ao sabor de casuísmos, sujeita a produzir efeitos sempre a posteriori, diante de fatos consumados, sem um balizamento legal e dependendo das convicções, da formação, da ideologia de cada juiz”. (COTRIM apud VELOSO, p.87)

A princípio, parece adequada a proposta de alguns doutrinadores de que se crie perante os negociantes uma obrigação de mencionar seu estado civil ou eventual união estável em seus contratos, sob pena de responsabilização penal pelo cometimento de falsas declarações, (CAHALI, 2002, p.145), porém, em uma segunda análise, podemos inferir que os casos de omissão da existência de uma relação informal constituiriam um grande problema ao judiciário, vez que, como a união estável resulta de um fato, tanto seu início como seu fim concedem amplo espaço à subjetividade; por esta razão, o contrato de convivência se mostra importante, ainda que não registrado, ao menos para efeito de prova.

Desta forma, uma vez admitido o direito à livre convivência e sua pactuação, não se pode negar os direitos e deveres provenientes destas relações, ainda que, diante da carência de normatização (como a ausência de disposição na Lei de Registros Públicos acerca da possibilidade de registro do contrato de convivência), se revele necessária a aplicação analógica das disposições referentes ao matrimônio.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama conclui que a referida a lacuna pode ser preenchida valendo-se da aplicação analógica dos dispositivos da lei 6.015.73 (Lei de Registros Públicos) ao contrato de convivência, admitindo-o como documento passível de registro no Cartório de Registro de Imóveis. (GAMA, 1998, p. 298).

Neste sentido, merece referência o art. 244 da Lei de Registros Públicos, que dispõe:

“As escrituras antenupciais serão registradas no livro nº 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros”

 Ainda, importante evidenciar que, com a tendente “constitucionalização do direito privado”, os direitos fundamentais passam a deter inegável relevância nas relações entre os particulares, admitindo uma interpretação extensiva dos dispositivos legais, na incessante busca da efetividade dos direitos fundamentais, conforme aduz Tércio Sampaio Ferraz Jr:

“Na analogia, o juízo empírico de semelhança e o juízo de valor sobre a maior importância das coincidências em face das diferenças introduzem na norma um elemento de flexibilidade conotativa e denotativa, que permite ao intérprete o exercício de seu poder de violência simbólica. (FERRAZ JUNIOR, 2008, p.279-280).

Imperioso salientar que, mesmo que se reconheça a alienação de um bem comum sem outorga do convivente como uma circunstância que afeta a validade do negócio jurídico, a indenização por inoponibilidade, ainda que inapta à concessão de tratamento isonômico entre a união estável e o instituto do matrimônio, revela-se uma alternativa eficaz na garantia dos direitos do convivente.

Conforme dispõe Rolf Madaleno:

Enquanto o ato de disposição efetuado pelo cônjuge administrador é válido e eficaz entre as partes contratantes, é ineficaz para o cônjuge que deixou de prestar o seu consentimento. Se for considerado anulável, valerá enquanto a sentença não desfizer o ato, parecendo mais prático considerar inoponível a alienação em relação ao meeiro, e colocar o terceiro a salvo da ameaça de anulação da venda, mas permitir resguardar a porção do prejudicado pela compensação com outros bens, sem ser necessário reintegrar à massa o imóvel alienado. A inoponibilidade só existe em relação ao cônjuge ou convivente cujo assentimento não foi colhido, com a vantagem adicional de ser deduzida no juízo da partilha, sem precisar mover morosa ação de anulação, a qual nem sempre resultará favorável, especialmente quando presente a boa-fé do terceiro adquirente.

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E complementa:

Em realidade, o bem vendido retorna ficticiamente à massa partilhável, como se a disposição não tivesse acontecido e, entre o cônjuge vendedor e o terceiro comprador, o ato de alienação produz todos os seus efeitos, como se não existisse a inoponibilidade, apenas desestimando o negócio fraudulento e sem perder tempo com a sua anulação. (MADALENO, 2004, p.811)

Por derradeiro, tem-se o registro do contrato de convivência atua preventivamente, ante a problemática que se instaura quando da alienação de bens comuns no âmbito da união estável, face à incerteza quanto aos meios hábeis para que o companheiro lesado possa garantir seus direitos patrimoniais.


6) CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno das uniões informais, como fato-social, remonta à antiguidade, porém, o reconhecimento desta espécie de família e consequentemente, de seus efeitos jurídicos, constitui uma conquista recente.

Hodiernamente, ainda que o instituto da união estável seja comparado ao casamento, verifica-se que esta comparação não se faz em igualdade de condições, vez que, não somente na esfera patrimonial, mas no âmbito dos direitos sucessórios, residem inúmeras controvérsias quanto aos efeitos jurídicos da união não matrimonializada.

Desta forma, em meio a concepções preconceituosas que renegavam os efeitos das uniões informais ao âmbito do direito obrigacional, tem-se que o reconhecimento da presunção de esforço comum na aquisição do patrimônio adquirido na constância da união estável, embora consista um grande avanço- revelando a imperiosa função que exercem os tribunais no reconhecimento de novos direitos, valendo-se da hermenêutica principiológica- carece de efetividade, dada a ausência de regulamentação acerca da outorga do convivente para alienação dos bens amelhados por ambos os companheiros.

Nesta sentido, resta imperiosa a adoção de uma interpretação analógica, equiparando-se o contrato de união estável- documento hábil à regulamentação de regime de bens diverso da comunhão parcial entre os conviventes, bem como à comprovação da referida união estável- ao pacto nupcial,  possibilitando seu registro no Cartório de Registro de Imóveis competente, dada a realidade que, ainda que a união estável constitua um fato social, esta produz efeitos jurídicos, e negá-los constitui uma afronta não somente aos direitos dos conviventes, mas de terceiros que venham a efetuar negócios jurídicos com aquele que opta por viver em uma união estável que, reconhecida como entidade familiar e digna da proteção estatal, é merecedora da mais ampla segurança jurídica.


7) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.    BRAUNER, Maria Claudia Crespo. O pluralismo no Direito de Família Brasileiro. In: WELTER, Belmiro Pedro & MADALENO, Rolf Hanssen (Orgs.). Direitos fundamentais do Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

2.    CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002.

3.    DIAS, Maria Berenice. A união estável.

4.    GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A função social da família. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 8, nº 39, dez.2006/jan.2007.

5.    GLANZ, Semy. A família mutante: sociologia e direito comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

6.    GUIMARÃES, Luis Paulo Cotrim. Negócio jurídico sem outorga do cônjuge ou convivente: alienação de bens e outros atos, à luz do Código Civil de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

7.    MADALENO, Rolf Hanssen. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

8.    PEREIRA, Sumaya Saadi Morhy. Direitos e deveres nas relações familiares: uma abordagem a partir da eficácia direta dos direitos fundamentais. In: PEREIRA, Tânia da Silva & PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Orgs.). A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

9.    PROCESSO N.º 70000831446. 4º Grupo de Câmaras Cíveis. TJRS, Relator: Rui Portanova. Julgado em 11/08/2000.

10.  PROCESSO Nº 70049043920. 8ª Câmara Cível. TJRS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl. Julgado em 30/08/2012.

11.  Zero Hora. Censo retrata um novo perfil da família brasileira. Porto Alegre, p.40, 18 out. 2012.

12.  FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008.

13.  GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

14.  OLIVEIRA, Euclides Benedito de e AMORIM, Sebastião Luiz. Concubinato, companheiros: novos rumos. Direito de Família- Aspectos constitucionais, civis e processuais (coord. Teresa Arruda Alvim). São Paulo: RT, v. 2, p. 71-100, 1995.

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Sobre a autora
Ana Paula Pizarro Tacques

Advogada formada pela Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aluna do Curso de Especialização em Direito de Família e Sucessões da referida instituição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TACQUES, Ana Paula Pizarro. Aspectos controversos do instituto da união estável: do preconceito histórico à atual insegurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3439, 30 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23135. Acesso em: 28 dez. 2024.

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