Resumo: Este trabalho trata dos aspectos controversos do instituto da União Estável, a serem abordados por meio de uma análise histórica, estabelecendo um paralelo entre as uniões informais e a entidade matrimonial. O estudo versa sobre questões patrimoniais referentes à união estável, com ênfase à ausência de isonomia e insegurança jurídica que permeiam as relações informais, o que inclui a análise dos instrumentos utilizados na legitimação e regulamentação destas uniões. Desta forma,, ainda que a Carta Constitucional trate de equiparar o instituto da União Estável ao Casamento Civil, as uniões não matrimonializadas ainda encontram restrições, principalmente no tocante à atribuição de efeitos jurídicos. Desta feita, torna-se imprescindível a ampliação do alcance das normas positivas, destinando-as a sujeitos concretos, considerando o direito como um instrumento de adequação social.
Palavras-chave: União Estável; Partilha; Outorga.
Sumário: INTRODUÇÃO 2) HISTÓRICO DO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES INFORMAIS 3) OS EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL: DA PROVA DE ESFORÇO COMUM 4) UNIÃO ESTÁVEL X CASAMENTO: INEXIGIBILIDADE DE OUTORGA DO CONVIVENTE E INSEGURANÇA JURÍDICA 5) O CONTRATO DE CONVIVÊNCIA E NECESSIDADE DE REGISTRO IMOBILIÁRIO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) INTRODUÇÃO
Na história da humanidade, a diversidade sempre se fez presente, ainda que coberta sob o véu da invisibilidade social.
Não obstante o reconhecimento do afeto como valor jurídico, o presente estudo demonstra sua importância ao revelar as diversas facetas assumidas pelo preconceito e a flagrante desigualdade sexual que estigmatizou a figura da mulher, privando-a de seus direitos e inadmitindo quaisquer efeitos jurídicos às relações informais.
Nesta senda, propõe-se a realização de um percurso histórico do instituto da União Estável, desde a época anterior à Constituição de 1988, em que as uniões informais eram caracterizadas como “concubinato”, até o recente reconhecimento das uniões informais como entidade familiar, enaltecendo a importante atuação da jurisprudência ao admitir a presunção de esforço comum na aquisição do patrimônio adquirido onerosamente durante a convivência, legitimando a partilha igualitária entre os companheiros.
Não obstante a Carta Magna de 1988 reconheça a união estável como entidade familiar, equiparando-a ao casamento civil, o presente estudo visa demonstrar as flagrantes desigualdades existentes entre os dois institutos, que se fazem presentes principalmente na esfera patrimonial, ante a inércia do legislador na regulamentação de um complexo de direitos e deveres atinentes aos companheiros, fazendo com que, em relação aos efeitos patrimoniais da união estável, impere a insegurança jurídica.
Por derradeiro, objetiva-se o esclarecimento da importância do contrato de convivência não somente como prova de existência da união estável e pactuação do regime de bens, mas como um instrumento de preservação dos negócios jurídicos efetuados pelos conviventes, legitimado pelo registro imobiliário do referido contrato.
2) HISTÓRICO DO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES INFORMAIS
A família, reconhecida como a mais arcaica das instituições, sofreu inúmeras mutações no decorrer dos tempos, ainda que, quando dissociada do modelo historicamente valorado, restasse condenada a desenvolver-se no âmbito da ilegalidade.
Conforme observa Luís Paulo Cotrim Guimarães:
É de se concluir que a união concubinária nos moldes em que fora concebida no antigo direito romano, assim tratada no Digesto, era tida como uma possibilidade de constituição familiar a todos aqueles que se encontravam impedidos às justas núpcias, sendo estas destinadas apenas aos homens livres e honrados. (GUIMARÃES, 2003, p.71)
Neste contexto, a expressão “concubinato”, utilizada na estigmatização das uniões não matrimonizalizadas, é utilizada desde os primórdios visando estabelecer uma diferenciação entre o matrimônio e as relações ilícitas, além de instigar o tratamento desigual entre os sexos, com o enaltecimento da figura masculina em prejuízo da mulher, rotulada como “concubina”:
Remonta a milênios a noticia da existência de concubinas na vida dos homens, mesmo no tempo em que a poligamia era o regime natural dos casados, podendo-se afirmar que possuir apenas uma mulher representava comportamento vergonhoso, desonroso para o homem. Não bastasse a existência de várias mulheres, não eram poucos os homens que ainda mantinham suas concubinas (NOGUEIRA apud FRIGINI, 1998, p. 73).
Nesta senda, cabe referir a conceituação de Sílvio Rodrigues, que considera a união estável como uma união “ que implica numa presumida fidelidade da mulher ao homem” ( NOGUEIRA apud RODRIGUES, 1998, p. 93).
O matrimônio, tido como uma forma de manter os meios de produção, não privilegiava a tendência natural dos indivíduos de unir-se entre si com a finalidade de partilhar sentimentos, ideais e projetos de vida em comum, ou seja, vislumbrava-se somente o desenvolvimento da economia familiar, em prejuízo à realização pessoal dos membros da instituição familiar.
Ainda que a desconsideração de outras formas de se constituir família não detenha efetividade na inibição do afeto, tido como base de qualquer instituição familiar, na esfera jurídica, a omissão do legislador constitui uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, evidenciando a eterna dificuldade do direito em adequar-se à incontrolável evolução social.
É no âmbito da responsabilidade civil que se encontram as primeiras referências à união não matrimonializada, ainda que amplamente preconceituosas.
Como uma das mais gritantes demonstrações de preconceito, tem-se o fato de que o concubinato (conforme se denominavam as uniões informais até o surgimento da CF de 88), mesmo que constituído entre pessoas desimpedidas de contrair matrimônio, era equiparado a “prestação de serviços sexuais”.
Nesta senda, nascia uma relação sui generis, originada por um ato ilícito, passível de ensejar uma indenização à mulher, como forma de remuneração pelos serviços sexuais prestados (sendo este entendimento posteriormente ampliado aos serviços domésticos realizados pela concubina, como lavadeira, cozinheira, costureira, etc), ou seja, nas palavras de Adahyl Dias, “loca-se o serviço doméstico, a direção e gerência do lar, e se a locadora se transforma em concubina do locatário, nem por isso se desvirtua a finalidade da locação...” (NOGUEIRA apud DIAS, 1998, p. 83).
Mais tarde, com o surgimento da Lei do Divórcio, há um grande progresso na adequação das normas positivas à realidade social, com a permissão da dissolução definitiva do vínculo matrimonial e a consequente possibilidade de se contrair novo casamento, que surge em resposta às relações extramatrimoniais mantidas entre os desquitados.
Assim ditava o art. 45 da referida Lei do Divórcio:
Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, parágrafo único, n. II, do Código Civil.
Observa-se, também, um avanço no reconhecimento da união estável, ainda que condicionado à existência de filhos advindos da união informal e a observância de lapsos temporais, que já eram exigidos desde 1973, perante a Lei Orgânica da Previdência Social- pioneira na tutela legislativa das uniões informais- que admitia a concessão de benefício previdenciário à companheira, desde que houvesse comprovação de que a união perdurava por mais de cinco anos.
Para Maria Berenice Dias:
A união estável, porém, não dispõe de qualquer condicionante. Nasce do vínculo afetivo e se tem por constituída a partir do momento em que a relação se torna ostensiva, passando a ser reconhecida e aceita socialmente. Não há qualquer interferência estatal para sua formação, sendo inócuo tentar impor restrições ou impedimentos. Tanto é assim que as provas da existência da união estável são circunstanciais, dependem de testemunhas que saibam do relacionamento ou de documentos que tragam indícios de sua vigência. (DIAS, s.d., p.1)
Desta forma, as tímidas evoluções foram marcadas por grandes movimentações tradicionalistas, influenciadas pela religião, ao passo que a igreja católica deteve grande influência na estagnação da sociedade.
De acordo Rolf Hanssen Madaleno, “fazia um eco em um país de forte convicção religiosa, o temor da proliferação de divórcios, tanto que o texto original do art. 38 da Lei do Divórcio autorizava um único pedido de divórcio”. (MADALENO, 2004, p.214)
Por conseguinte, conforme se é possível visualizar nitidamente ainda nos dias de hoje, o direito restava dissociado do contexto social, destinado a sujeitos abstratos, a uma homogeneidade ilusória que não condiz com o pluralismo existente em nossa sociedade.
Neste sentido, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, traz o histórico exemplo dos imigrantes italianos que, embora constituam grande parcela de nossa sociedade, nos tempos remotos em que chegaram ao Brasil, restaram obrigados a conviver no âmbito da ilegalidade, dada a irrelevância jurídica de seus casamentos, porque realizados no exterior. (GAMA, 1998, p. 108)
Desta forma, assim como outros institutos jurídicos, a união estável, para ser reconhecida como entidade familiar, percorreu um árduo caminho, marcado pelo preconceito, mas que não fora o bastante para calar a vontade soberana do povo, legitimada com o surgimento da Carta Constitucional de 1988.
Conforme observa Sumaya Saadi Morhy Pereira:
As grandes modificações, conquistadas por meio da jurisprudência e também introduzidas no ordenamento jurídico por leis dispersas, foram centralizadas e incorporadas definitivamente com a Constituição de 1988, que acrescentou, às transformações já consolidadas, aquela que pode ser considerada a mais profunda alteração no vértice do Direito de Família: a mudança de valores. (PEREIRA, 2006, p.517)
A CF de 1988 traz uma nova nomenclatura às relações informais, substituindo a pejorativa expressão “concubinato” por “união estável”, reconhecendo-a como entidade familiar, digna da proteção estatal (art. 226, § 3º), ou seja, ao mesmo tempo em que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana é alçado como Fundamento da República Federativa do Brasil, a família, instituição que tem a finalidade de servir para a promoção dos direitos fundamentais, passa a exigir uma inequívoca atuação do Estado, na concessão de proteção especial.
Neste sentido, bem salienta Adahyl Lourenço Dias:
A mulher torna-se concubina, não porque seja imoral, mas porque é um ser humano, dotada dessas mesmas exigências morais e materiais que a vida tem aumentado, não podendo fugir ao drama da sua geração e do seu mundo. O direito não pode ser insensível a fatos dessa ordem, de extrema repercussão social, bastando considerar que o concubinato, muitas vezes, desvia o homem, a mulher e a criança dos caminhos malsãos, a que o abandono e a solidão os poderiam atrair, criando a família, a paz individual e social, a felicidade e a harmonia, mesmo fora das convenções. (NOGUEIRA apud DIAS, 1998, p. 82).
Neste contexto, os direitos fundamentais assumem uma dupla faceta, exigindo do poder estatal não somente a observação do direito de liberdade de constituição familiar, mas também uma conduta positiva, de modo a propiciar às entidades familiares as devidas condições para que possam acolher seus membros em um ambiente guarnecido pelo afeto, facultando-lhes o desenvolvimento de todas suas potencialidades.
Conforme evidencia Rolf Madaleno:
O princípio da liberdade se faz muito presente no âmbito familiar, pela liberdade de escolha na constituição de uma unidade familiar, entre o casamento e a união estável, vedada a intervenção de pessoa pública ou privada (CC, art. 1.513); na livre decisão acerca do planejamento familiar (CC, art. 1.565, § 2º), só intervindo o Estado para propiciar recursos educacionais e informações científicas, na opção pelo regime matrimonial (CC, art. 1639), e sua alteração no curso do casamento (CC, art. 1.639, § 2º). (MADALENO, 2004, p.90)
Somente após seis anos da promulgação da Carta Magna de 1988, tem-se a regulamentação infraconstitucional da união estável, por meio da lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, de autoria do Senador Nelson Carneiro.
Nesta senda, a referida legislação limita-se ao tratamento da questão dos alimentos e legitimidade sucessória dos conviventes, mantendo, ainda, a necessidade de observância de prazo temporal para a configuração da união estável, configurando o relacionamento pelo seu tempo de duração e não pela solidez dos vínculos afetivos, restando a questão patrimonial no âmbito do esquecimento.
Assim, ainda que o advento da Constituição Federal tenha constituído um grande avanço, não somente em relação ao reconhecimento de outras formas de constituição familiar, mas também no que tocante a promoção da igualdade entre os cônjuges e filhos de qualquer natureza, a concessão de proteção especial às crianças e adolescentes, entre outras normas de caráter programático, os aspectos mais relevantes e controversos do reconhecimento da União Estável como entidade familiar restaram a cargo da apreciação dos tribunais, sendo que apenas em 1994 tem-se a completa regulamentação das uniões informais, incluindo a polêmica questão da partilha de bens, que será objeto de estudo a seguir.
3) OS EFEITOS PATRIMONIAIS DO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR: DA PROVA DE ESFORÇO COMUM
Conforme vimos, as uniões informais, fruto da inconformidade da sociedade com a imposição de uma rigorosa padronização de relações, percorreram um árduo caminho na obtenção de seu reconhecimento, porém, não fora o suficiente para garantir a produção de seus efeitos jurídicos.
Desta feita, ante a impossibilidade do legislador de acompanhar as mudanças sociais, o judiciário viu-se obrigado a fornecer uma resposta às consequências patrimoniais advindas das relações não matrimonializadas, ainda que relegando-as à esfera do direito obrigacional:
Como primeira orientação protetiva, a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, sob a égide do direito das obrigações, reconheceu, com fundamento na vedação do enriquecimento sem causa, que a união estável e duradoura de homem e mulher poderia configurar uma sociedade de fato, impondo a divisão dos bens adquiridos a título oneroso – fruto da colaboração mútua – na sua constância. (GAMA, 2007, p.166)
Conforme se observa, a negação dos direitos patrimoniais da concubina, uma vez condicionados à comprovação de colaboração mútua, revela-se como um dos artifícios utilizados na incessante tentativa de desconsideração do principal componente que solidifica as relações familiares: o afeto.
Neste contexto, o “esforço comum” caracterizava-se por atividades de caráter lucrativo e estritamente econômicas, ou seja, a exteriorização do afeto, por meio do apoio moral e psicológico prestado pela concubina, de seu zelo com os filhos e com o lar não bastavam para assegurar-lhe seus direitos.
Por conseguinte, a verdadeira “função social” da família, instituição destinada a servir a promoção da dignidade da pessoa humana, era renegada à marginalidade jurídica, em uma histórica tendência à padronização humana:
...vemo-nos membros de uma instituição, por educação ou pelas circunstâncias da vida. Ela não exige, pois, nenhuma vontade formal, nenhuma declaração explícita, e no entanto o fato de existir um regulamento submete os membros a um aparelho de constrangimento. Este tipo de estrutura existe na família, nas organizações políticas de conjunto, como a tribo, a comunidade, o Estado, ou ainda nas organizações religiosas, como uma igreja. (WEBER apud GLANZ, 2005, p.90)
Com o surgimento da lei 9.278/96, estabeleceu-se à união estável o regime da comunhão parcial de bens, admitindo-se a presunção de esforço comum em relação ao patrimônio adquirido onerosamente, por qualquer um dos conviventes, na constância da relação.
Em verdade, a considerável evolução trazida pela referida lei consiste na permissão da estipulação de regime de bens diversos por meio de contrato de convivência, vez que, a referida presunção de esforço comum há muito já era admitida pela jurisprudência pátria, que assume importante papel na “criação do direito”, de acordo com Guilherme Calmon Nogueira:
As soluções das lides instauradas no âmago das relações de tal sorte, somente foram encontradas devido à sensibilidade dos julgadores, prontos a reconhecerem a realidade fática existente na sociedade e, baseados em princípios jurídicos voltados a realização da justiça, prestaram efetivamente a jurisdição, não assumindo postura tradicional e retrógrada aos anseios sociais. (NOGUEIRA, 1998, p. 78)
Nesse sentido, a jurisprudência atual, alterando sua posição no que diz respeito às uniões iniciadas e findas anteriormente ao surgimento da Carta Magna, passa a reconhecer a força normativa da Constituição, concedendo ao companheiro o direito à meação dos bens adquiridos durante a comunhão, ignorando algumas aspectos intertemporais.
O célebre posicionamento permite concluir que a supremacia dos princípios constitucionais admite a flexibilização de alguns institutos, em nome da proporcionalidade, como a vedação da retroatividade das leis no ordenamento jurídico brasileiro.
Neste contexto, evidencia Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
“O tema referente ao direito intertemporal está intimamente relacionado com os princípios jurídicos que orientam o Direito. O princípio do progresso social propugna que o ordenamento jurídico necessita introduzir novas noções, estabelecendo novos preceitos, adequando-se à nova realidade, aos anseios mais próximos, observando-se a presunção de que a nova lei é melhor do que a antiga, mais aperfeiçoada, tentando responder à vontade social, no sentido de permitir a evolução jurídica. Por sua vez, o princípio da segurança e da estabilidade social impõe ao legislador o respeito às relações jurídicas constituídas sob a égide da lei antiga, passíveis de produção de seus efeitos reconhecidamente assegurados pela lei vigente à época.” (GAMA, apud PEREIRA, 1998, p. 435).
Refutando as alegações de que tal retroatividade constituiria uma afronta ao direito adquirido, acertadamente decidiram os tribunais que, “tratando-se de situação fática continuada, há subordinação ao influxo das leis novas, computando-se o período fluído perante a legislação anterior.” (TJRS, proc. 70000831446, 2000).
Consequentemente, com a admissão da partilha de bens de forma igualitária entre os conviventes, através do reconhecimento dos frutos do esforço comum, surge a veemente necessidade de obtenção de outorga para alienação destes bens, como forma de proteção do patrimônio amealhado na constância da união, objetivando conceder ao instituto da união estável igualdade de condições em relação ao casamento, conforme veremos a seguir.