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A Corte Internacional de Justiça e a sua contribuição para manutenção da segurança internacional.

Uma breve reflexão sobre sua estrutura organizacional e atuação na manutenção da paz

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06/12/2012 às 10:01
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4 - A JURISDIÇÃO CONTENCIOSA DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇÃ E DEMAIS PROCEDIMENTOS.

Preliminarmente, é essencial conceber que a jurisdição internacional é ainda, via de regra, facultativa, o que, obviamente engloba a Corte Internacional de Justiça.  Dessa forma ela decide, apenas, os dissídios em que todos os litigantes estejam de acordo em submeter à questão à sua apreciação.

Segundo entendimento proferido pela própria Corte Internacional de Justiça, litígio internacional é “um desacordo sobre um ponto de direito ou de fato, uma contradição, uma oposição de teses jurídicas ou de interesses (...)” (MELLO, 2004, p. 686), ao passo que exige necessariamente uma condição material, ou seja, a existência de uma controvérsia entre Estados litigantes.

Tal fundamento originou um novo impasse, uma vez que “o reconhecimento ou não de uma controvérsia é uma questão de fato, que deve ser examinada e determinada pela Corte independentemente das alegações das partes” (BRANT, 2005, p. 221).

Assim, surge uma ambigüidade, tendo em vista que o Direito Internacional exige que a demanda jurisdicional represente um ato soberano de consentimento entre os litigantes, em contrapartida exige que a Corte aprecie sua competência de resolução da demanda entre as partes litigantes. Existindo, portanto, “uma identidade necessária entre o objeto da demanda em um determinado caso e o estabelecimento da competência da Corte. A análise da jurisdição contenciosa da CIJ deve partir do reconhecimento de sua competência” (BRANT, 2005, p. 221).

Deve-se, ainda, realizar um estudo mais contundente quanto à jurisdição e competência, frisando de forma peremptória os seus conceitos mais básicos, com ênfase, logicamente, no Direito Internacional, neste sentido, “pode-se considerar que a noção de jurisdição está vinculada à capacidade abstrata e geral de julgar controvérsias de ordem jurídica: júris dicere, ao passo que a competência diz respeito à autorização dada ao juiz internacional para que este tome conhecimento de uma controvérsia específica” (BRANT, 2005, p. 222).

Há, portanto, uma relação tênue, entre os dois institutos do direito, como astutamente observado pelo professor Leonardo Nemer, ao concluir brilhantemente o assunto em pauta:

A competência é, portanto, a autorização dada ao juiz internacional para que ele possa exercer seu poder jurisdicional, ou seja, a habitação legal que possui a jurisdição internacional para instruir e julgar uma determinada controvérsia. A CIJ pode, deste modo, gozar de jurisdição internacional. No entanto, em razão do território, ratione loci, em razão dos sujeitos, ratione personae, em razão da matéria, ratione materiae ou em razão do tempo, ratione temporis, (...) (BRANT, 2005, p. 222)           

Diante deste contesto, com uma jurisdição já pré-estabelecida, analisa-se a competência ou não de impedimentos para que o litígio seja recebido. Ao passo que “o ato de aceitação da jurisdição da Corte é uma condição preliminar para o estabelecimento da capacidade de comparecer diante desta, por outro não se pode deduzir que, por intermédio deste ato, a competência seja naturalmente reconhecida” (MELLO, 2004, p. 682-683). Nesta condição, observa-se que a Corte possui uma competência, um tanto quanto incomum, uma vez que, cabe a ela avaliar a sua própria competência.

Nota-se, ainda, que o fato de um Estado for membro da ONU e parte do Estatuto não o obriga a submeter compulsoriamente seu litígio ao julgamento da Corte, tal entendimento se baseia no princípio da jurisdição obrigatória que reside na necessidade de consentimento dos Estados como fundamento único para o exercício da atividade jurisdicional da Corte. Sendo necessário assim, um ato complementar dos litigantes, submetendo o litígio ao órgão.

Desta forma, o principal critério utilizado para avaliação dos limites da Corte Internacional de Justiça, foram brilhantemente dissecados pelo professor Leonardo Nemer, que utiliza até mesmo a luz dos conhecimentos do Barão Descamps, respeitado internacionalista em sua época, se não vejamos:

Na realidade, o contraponto à não admissão do princípio da jurisdição obrigatória reside na necessidade do consentimento dos Estados como fundamento único para o exercício da atividade jurisdicional da Corte. Como já remarcava o Barão Descamps ainda em 1899, “a sociedade internacional é uma sociedade de coordenação de Estados soberanos. Sua jurisdição não deve, portanto, se moldar segundo princípios admitidos nas sociedades de subordinação como as diversas sociedades nacionais (BRANT, 2005, p. 222).

Sendo assim, o consentimento dado por um Estado para o estabelecimento de competência da CIJ, não pode ser revogada, por argumentos fúteis ou por mera conveniência da parte litigante, em meio à instância jurisdicional. Esta regra decorre em linhas gerais da aplicação do princípio da boa fé e transparece no acolhimento da norma de estoppel.

Em suma, os Estados litigantes possuem a liberdade de encaminhar uma demanda à CIJ, “mas se esta julgar que o consentimento esta estabelecido, as partes devem admitir seu caráter institucional e a natureza obrigatória e definitiva de sua sentença” (BRANT, 2005, p. 230).

Em contrapartida, a CIJ não pode se limitar a aquisição da competência jurisdicional exclusivamente às demandas em que o consentimento é claro e evidente. Fato é que, o consentimento pode resultar de uma declaração expressa contida em um compromisso formal e prévio, como já exaustivamente mencionado acima, entretanto, ele pode ser também presumido, “a título subsidiário, após a análise de todo “ato conclusivo”, em particular, do comportamento da parte contrária, posteriormente à demanda encaminhada à Corte” (BRANT, 2005, p. 238).  Admitindo-se assim, expressamente o princípio do forum prorodatum.

Com fundamento neste princípio e com o objetivo de determinar o consentimento das partes, a CIJ procede a uma análise profunda da demanda, para finalmente decidir sobre o caso. Sobre o tema em tela, o professor Leonardo Nemer cita o renomado internacionalista F. Rezek, que afirma com propriedade:

nunca se pretendeu que o consentimento fosse sempre expresso, e menos ainda que obedecesse a uma determinada liturgia. Nas relações entre Estados, como nas relações entre indivíduos, é sensato admitir o consentimento tácito, assim como a validade, em certas circunstâncias, de uma presunção de assentimento (BRANT, 2005, p. 238).       

Entretanto, a jurisdição pode ser obrigatória, se esta estiver prevista expressamente em um tratado, são as chamadas cláusulas compromissórias, conforme dispõe o artigo 36, § 1º do Estatuto da CIJ:

Artigo 36 - 1. A competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e convenções em vigor.

2. Os Estados partes do presente Estatuto poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias jurídicas que tenham por objeto:

a. A interpretação de um tratado; (...)

Se, utilizando desse artigo, alguns países já estão celebrando acordos e tratados deixando expresso que em caso de dúvidas quanto à interpretação do mesmo, essas dúvidas serão sanadas por meio de decisão ou consulta à CIJ.

Como já mencionamos antes, a jurisdição pode ser compulsória, baseando-se efetivamente na cláusula facultativa, expressamente tipificada no art. 36, alínea 2ª do Estatuto da CIJ, já devidamente transcrita acima. Esta cláusula originou-se segundo Celso Mello, através de uma proposta na “SDN (Sociedade das Nações) por Raul Fernandes. Ela foi uma forma de transação resultante das discussões ocorridas na SDN: o Comitê de Juristas estabelecera que a jurisdição seria compulsória nos litígios jurídicos, enquanto o Conselho da Liga sustentava a jurisdição facultativa.” (MELLO, 2004, p. 686). O professor Celso, ainda considera como a “‘ponte’ entre a jurisdição facultativa e a jurisdição obrigatória” (MELLO, 2004, p. 686).

Em suma, se o Estado membro reconhece a jurisdição da Corte como obrigatória, que é consumado por uma declaração, se obriga a submeter à apreciação da Corte todos os litígios em que forem partes ou que tenham por objeto as alíneas do artigo 36 do Estatuto da CIJ:         

Artigo 36 –  (...)

a. A interpretação de um tratado;

b. Qualquer questão de direito internacional;

c. A existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional;

d. A natureza ou a extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional. (...)

Entretanto esta cláusula tem sofrido sérias restrições pelos Estados membros, principalmente em temas ligados a segurança internacional, que a aceitam com reservas. Reservas estas que são admitidas porque o Estado é livre para reconhecer a cláusula como obrigatória ou não, podendo, assim, limitar sua aceitação. Apenas para fins ilustrativos, o professor Celso D. Albuquerque, de forma esclarecedora, oferece vários exemplos do mencionado:

Na prática, esta cláusula tem sido restringida pelos Estados, que a aceitam com reservas: a) reciprocidade; b) determinado prazo (ex.: no art. 31 do Pacto de Bogotá, 1948, os Estados americanos declaram aceitar a cláusula facultativa em redação a qualquer outro Estado americano); d) outros só a aceitam em relação aos membros da ONU; e) diversos países fazem reservas dos assuntos da sua jurisdição doméstica (ex.: reserva Connaly, 1946, dos EUA); f) aplicação de litígios futuros; g) exclusão de litígios com determinados membros (ex.: os membros da Commonwealth excluem os litígios entre eles); h) Portugal fez sobre reserva de poder excluir no futuro certos litígios, o que tornou a sua aceitação praticamente sem efeitos, etc.(MELLO, 2004, p. 686)   

Portanto, para a construção do direito internacional, é melhor que os países aceitem a cláusula facultativa com as reservas que entenderem necessárias, do que simplesmente não a aceitem.  Mas, uma vez aceita a cláusula facultativa, esta não poderá ser retirada após um caso envolvendo o Estado membro for levada à CIJ. Sendo que a doutrina atual segue tal entendimento com veemência:

H. Waldock sustenta que a aceitação da cláusula facultativa sem prazo está submetida ao direito dos tratados e só pode ser retirada com o consentimento das partes, ou então que se aplique a cláusula “rebus sic stantibus”. A Corte aplica o princípio da boa fé e do direito dos tratados. Alguns afirmam que os Estados podem retirar a declaração de aceitação, mas antes da Corte ser chamada a julgar (MELLO, 2004, p. 686). 

Assim, resta realizar um breve comentário acerca do processo, propriamente dito, em tramite na CIJ, que pode ser dividida em três partes distintas e complementares. Estas são, primeiramente, a fase de Alegações Finais, logo após, a fase de observar o processo de convicção e por fim, a fase de deliberação. Tal procedimento possui como fundamento os ensinamentos do professor S. Rosenne, citado pelo professo Leonardo Nemer, que afirma: “O objeto do procedimento é levar o processo até a sua conclusão lógica de uma maneira ordenada, aplicando para tal não a arte da diplomacia, mas a disciplina do direito e do processo judicial” (BRANT, 2005, p. 298).

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5 - A SENTENÇA DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA

Uma sentença da CIJ é caracterizada pela obrigatoriedade de seu conteúdo e pela impossibilidade jurídica de recolocar em questão os pontos sobre os quais o tribunal já decidiu a título definitivo e irrevogável.

Neste sentido, o artigo 60 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, prevê claramente que a sentença prolatada pelo referido órgão é de natureza definitiva e sem recurso: “Artigo 60 - A sentença é definitiva e inapelável. Em caso de controvérsia quanto ao sentido e ao alcance da sentença, caberá à Corte interpretá-la a pedido de qualquer das partes”. 

Tal preceito possui uma dupla finalidade, a de caráter definitivo da sentença, aparecendo como uma “presunção de direito em virtude da qual os fatos litigiosos e os direitos reconhecidos por um julgamento não podem ser contestados novamente” (BRANT, 2005, p. 419), em quanto que, existe ainda o caráter imutabilidade da sentença, que ela corresponde ao termo imposto para a elaboração da norma individual, chegando a CIJ a um produto acabado que não pode ser mais modificado.

Assim, o julgamento da Corte “manifesta uma noção universal reconhecida como válida” (BRANT, 2005, p. 390), e ainda vinculam as partes a decisão no caso em litígio. Este vínculo mencionado, está diretamente ligado ao art. 59 do Estatuto da CIJ, que determina, “a decisão da Corte só será obrigatória para as partes litigantes e a respeito do caso em questão”, o que estabelece que, “na medida que um Estado não é considerado como uma parte litigante, a decisão jurisdicional será para ele considerada como uma res inter alios acta, ou seja, sem nenhuma existência jurídica” (BRANT, 2005, p. 393).  Sendo assim, a sentença é obrigatória apenas para os Estados litigantes.

A CIJ não deve ser compreendida como Instância recursal, entretanto, existe três casos distintos, em que a Corte é usada indiretamente como tal. Neste entendimento temos o Regulamento da CIJ que prevê a possibilidade de reenvio de um caso contencioso à Corte[3]. Sobre este preceito, Leonardo Nemer é claro ao afirmar que:

A Corte pode, deste modo, considerar-se competente para julgar um contencioso internacional, que veio a ser objeto de um processo diante de outro organismo internacional, desde que um determinado tratado ou convenção o autorize (BRANT, 2005, p. 421).  

Outra circunstância seria a reanálise de uma sentença arbitral, neste caso a Corte deve apenas “pesquisar se o Tribunal arbitral, ao tornar a sentença contestada, desconheceu claramente a competência que lhe havia sido outorgada pelo compromisso, ultrapassando sua competência ou não a exercendo” (BRANT, 2005, p. 425).

E por fim, existe ainda, a possibilidade de reanálise de uma decisão de um tribunal interno. Salienta-se que nenhuma dessas modalidades, faz com que a Corte possua caráter recursal.

Prevista, no já transcrito, artigo 60 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, uma sentença de interpretação no contencioso, deve-se limitar unicamente a esclarecer o sentido e o alcance do que foi decidido definitivamente e com força obrigatória por uma sentença anterior. Assim, uma interpretação concisa e clara, permite, em caso de dúvida, reconhecer os limites da obrigação jurisdicional e determinar o que deve ser executado pelas partes.

Neste sentido, os Estados são obrigados a dar provimento à sentença da CIJ, conforme regulamenta o art. 94, § 1 da Carta das Nações Unidas:

Se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença.

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Sobre o autor
Hugo Lázaro Marques Martins

Pós-graduado em Direito Internacional pelo Centro de Direito Internacional (CEDIN). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Hugo Lázaro Marques. A Corte Internacional de Justiça e a sua contribuição para manutenção da segurança internacional.: Uma breve reflexão sobre sua estrutura organizacional e atuação na manutenção da paz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3445, 6 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23162. Acesso em: 28 mar. 2024.

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