Artigo Destaque dos editores

A guerra fiscal e a unanimidade no Confaz

Exibindo página 1 de 2
06/12/2012 às 09:29
Leia nesta página:

Uma legislação nacional do ICMS deveriam buscar reduzir a externalidade da competição fiscal e tornar essa competição um fenômeno lícito, regular e transparente, por meio do aumento da autonomia dos Estados em legislar sobre os benefícios fiscais.

Nos últimos anos, diversos artigos têm sido publicados no Brasil tratando do tema reforma tributária, em especial da reforma do ICMS[i], o maior imposto do Brasil em termos de valor arrecadado[ii]. Esses artigos em geral propõem alterações na legislação vigente com vistas a atingir dois objetivos: (i) uniformizar as alíquotas do ICMS em todo o território nacional, para simplificar as operações das empresas que operam em mais de um Estado, reduzindo a autonomia dos Estados e (ii) limitar ou impedir a “guerra fiscal” do ICMS promovida pelos Estados que, sob a justificativa de atrair empresas para seu território ou desestimular sua mudança para outro Estado, concedem benefícios tributários relativos ao ICMS, violando normas nacionais que disciplinam a concessão desses benefícios[iii].

Embora, à primeira vista, esses dois objetivos descritos pareçam desejáveis, na realidade, eles não o são, e vamos explicar por quê.

A maioria dos artigos escritos sobre a reforma tributária do ICMS não apresenta uma visão sistêmica do imposto e das interações entre contribuintes e Estados. Assim, na maioria das vezes, a análise peca por simplicidade ou por ser apenas pontual.

Nosso objetivo é analisar a questão de forma sistêmica e ampla, seja em relação à política tributária dos Estados, seja em relação à competição fiscal entre os Estados ou, ainda, em relação à competição entre as empresas, que sujeitas ao ICMS, operam no mercado nacional.

Assim, entendemos que os principais objetivos a serem atingidos em uma eventual alteração da legislação nacional do ICMS deveriam ser: (i) reduzir a externalidade da competição fiscal entre os Estados brasileiros na atração de empresas e atividades por meio de benefícios fiscais relativos ao ICMS e (ii) tornar essa competição um fenômeno lícito, regular e transparente, por meio do aumento da autonomia dos Estados em legislar sobre os benefícios fiscais relativos ao ICMS.


1 - As alíquotas do ICMS

Analisando o primeiro objetivo tratado nos artigos, qual seja, a completa padronização das alíquotas do ICMS no território nacional, vamos demonstrar que, tanto econômica como politicamente, esse objetivo não é desejável para a sociedade brasileira. Em primeiro lugar devemos destacar que o ICMS é um imposto estadual e não um imposto federal ou municipal. Ora, se existem impostos federais, estaduais e municipais, devemos indagar a razão de existir de tais impostos.

Impostos não existem como um fim em si mesmos, mas para permitir a arrecadação de recursos monetários para que o Governo (seja ele federal, estadual ou municipal) possa prestar os serviços públicos que a sociedade espera serem prestados[iv].

No Brasil podemos destacar entre os serviços prestados pelos Estados a segurança pública (Polícia Militar, Polícia Civil, penitenciárias e presídios, justiça criminal), a educação pública (ensino fundamental e médio em caráter universal), a saúde pública (ambulatórios, postos de saúde e hospitais - atendimento universal) e a infraestrutura de transporte (rodovias).

Sendo esses serviços prestados pelos Estados e contando cada Estado com sua Assembleia Legislativa e Poder Executivo eleitos periodicamente em eleições livres e democráticas, é de se esperar que a população de cada Estado possa escolher livremente a qualidade que deseja nesses serviços e o valor do imposto que está disposta a pagar para financiar a prestação de tais serviços[v].

Assim, cada Estado deve ter a capacidade de fixar as alíquotas do ICMS para os produtos e serviços transacionados em seus territórios de modo a fazer frente às necessidades de financiamento dos serviços públicos que disponibiliza para seus residentes. Dada esta premissa, a padronização das alíquotas do ICMS em todo o território nacional, não encontra justificativa econômica. Impostos federais devem ser padronizados nacionalmente, mas impostos estaduais e municipais, por sua própria natureza, devem ser distintos, conforme a decisão de cada Assembleia Legislativa estadual ou de cada Câmara municipal, refletindo a preferência da população local pelo nível ótimo de serviços públicos e de tributos.

Não sendo possível estabelecer a carga tributária em cada Município ou Estado, talvez fosse o caso de se extinguir os impostos estaduais e municipais, ampliar os impostos federais e criar um sistema de transferências de valores centralizados na capital federal, a modo e semelhança dos modelos de economia planificada outrora existentes nos países comunistas da Europa Oriental (lá, eles já chegaram à conclusão de que tal modelo não deu bons resultados). Se não for dada a possibilidade de a população local interferir na política tributária por meio de seus representantes eleitos para o Legislativo e o Executivo locais, e tal atribuição couber exclusivamente aos membros do Congresso Nacional em Brasília, talvez não haja justificativa política para a existência dos impostos estaduais e municipais.[vi]

Adotamos a premissa, já citada, de que cada Estado deve poder fixar as alíquotas do ICMS aplicáveis às operações e prestações ocorridas em seus territórios, de modo a atender a necessidade de arrecadação de recursos na medida necessária e suficiente para custear os serviços públicos prestados a seus residentes, também pela necessidade de os governos estaduais e municipais manterem o equilíbrio em suas contas fiscais, evitando déficits ou endividamentos fora dos padrões definidos na legislação nacional[vii]. 

O argumento bastante utilizado de que as empresas que operam em termos nacionais seriam “beneficiadas” com a “padronização” das alíquotas do ICMS nos diversos Estados pode ser facilmente afastado com uma solução operacional que não envolva a perda de autonomia política dos Estados.

Por exemplo, estimular os Estados a definir as alíquotas do ICMS utilizando tabelas equivalentes às utilizadas pelo Governo federal para fixar os tributos federais[viii]. Como as empresas já estão familiarizadas com tais tabelas, seria relativamente simples acrescentar as informações das alíquotas do ICMS de cada Estado na tabela geral[ix].

A utilização de padrões que facilitem as empresa a cumprir suas obrigações fiscais não pode ser confundida com a padronização das alíquotas do ICMS no território nacional, pois no primeiro caso a autonomia da vontade da população local é preservada, o que não ocorre no segundo caso.

Sobre as alíquotas, resta ainda tratar de dois pontos: (i) a alíquota mínima aplicável nas operações internas e (ii) a alíquota aplicável na operações interestaduais. Para analisarmos esses pontos, precisamos conhecer algumas peculiaridades do ICMS nacional.

No Brasil, embora o ICMS seja um imposto estadual, nas operações interestaduais esse imposto incide e, além disso, o adquirente da mercadoria ou serviço localizado no Estado de destino pode se creditar do valor do imposto cobrado no Estado de origem[x].

Essa é uma característica singular do ICMS[xi]. Ao adotar-se esse modelo de tributar em um Estado e deduzir o valor em outro Estado, assumiu-se que poderiam ocorrer distorções e estabeleceu-se alguns limites à atuação legislativa estadual em matéria de ICMS[xii]. Primeiro, já em 1968 e 1969, definiu-se que (i) a alíquota interna deveria ser única para todos os produtos[xiii], (ii) que as isenções somente poderiam ser concedidas após a celebração de convênio entre os Estados[xiv] e (iii) que os valores de impostos que houvessem sido “devolvidos”, no todo ou em parte, em razão de “prêmio” ou “estímulo”, no Estado de origem, poderiam ser desconsiderados no Estado de destino[xv]. Depois, em 1975, estabeleceu-se que (iv) todos os benefícios tributários relativos ao ICMS dependeriam de aprovação unânime entre os Estados brasileiros[xvi]. Finalmente, em 1988, estabeleceu-se que (v) a alíquota interna poderia ser diferenciada conforme o produto, mas que (vi) esta não poderia ser inferior à alíquota interestadual, exceto se aprovado em convênio por decisão unânime a unanimidade pelos demais Estados[xvii].

Assim, atualmente, cada Estado pode estabelecer as alíquotas de ICMS aplicáveis às operações internas com as diversas mercadorias, respeitando o limite mínimo de 12% (alíquota interestadual fixada pelo Senado Federal[xviii]) e o máximo teórico de 99,9%, sendo vedado estabelecer alíquotas inferiores a 12% ou conceder qualquer benefício tributário relativo ao ICMS sem a aprovação unânime dos demais Estados.

Como já dissemos, a existência de alíquotas distintas de ICMS, para os diversos produtos, em diferentes Estados, aplicáveis às operações internas nos Estados, não é um problema real do ICMS e esse fato não deveria ser eleito como um objetivo a ser alcançado por uma eventual reforma da legislação nacional do imposto[xix].

Vamos analisar a questão da alíquota aplicável às operações interestaduais no tópico seguinte, junto com os benefícios tributários relativos ao ICMS.


2 - Benefícios Tributários e a Guerra Fiscal

Com limitações previstas na legislação nacional do imposto[xx] à autonomia estadual em legislar sobre o ICMS, pensou-se que seria viável manter o sistema em que o imposto pago a um Estado (origem) poderia ser deduzido do imposto a ser pago em outro Estado (destino), nas operações interestaduais entre contribuintes, sem maiores problemas. Isso aconteceu, especialmente durante os anos do regime militar, quando o poder do Governo federal mantinha os Estados dentro dos limites legais. Todavia, a partir da abertura democrática na década de 1980, foi-se instalando o que hoje se denomina “guerra fiscal” do ICMS. Esse fenômeno se caracteriza pela competição para atrair certas empresas ou atividades para determinado Estado, mediante a concessão de benefícios relativos ao ICMS, pelo Estado ao empresário, em desacordo com os limites legais previstos na legislação nacional e, portanto, como uma conduta ilegal[xxi].

Os Estados justificam essas atividades como sendo dentro de seu “direito” natural à busca do desenvolvimento ou, ainda, como sendo dentro de sua “autonomia”, como se, no âmbito de uma federação, os Estados subnacionais pudessem violar as regras estabelecidas nacionalmente, em prejuízo dos demais, sem qualquer problema.

Todavia, como por diversas vezes o fato ocorreu sem que nenhuma punição fosse aplicada aos agentes públicos que a realizaram ou aos empresários que se beneficiaram, ao longo de décadas, o que era inicialmente fato isolado se tornou “a regra do mercado” ou pode-se dizer que atingiu um clima de “fim de feira”[xxii].

Em termos da literatura econômica internacional, a competição tributária entre governos locais (Estados ou Municípios dentro de uma federação) é tida como um fenômeno saudável para o desenvolvimento econômico e para o bem estar da população[xxiii].

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Então, por que no Brasil a competição entre os Estados pela atração de empresas e atividades, com base em benefícios fiscais relativos ao ICMS, é vista por muitas pessoas[xxiv] como um problema e não como um fenômeno saudável da democracia e da livre iniciativa?

Primeiro, por uma questão jurídica. A competição entre os Estados com base em benefícios fiscais relativos ao ICMS se dá à margem da legislação nacional e, portanto, é ilegal. Sendo ilegal, gera custos e riscos para as empresas envolvidas, estimula atividades com pouco capital investido[xxv] e desestimula a entrada e permanência no mercado de empresas que, por questões de governança interna, não adotam práticas ilícitas ou de grande risco jurídico[xxvi].

Segundo, por uma questão econômica. Como a alíquota aplicável às operações interestaduais é elevada (12%[xxvii]) em relação à alíquota interna (em geral de 17% ou de 18%), isso significa que, quando uma indústria ou um atacadista localizado em um Estado vende uma mercadoria para um varejista localizado em outro Estado, quase metade[xxviii] do imposto incidente sobre a venda realizada pelo varejo (saída interna no Estado de destino) fica para o Estado de origem, em razão da dedução dos valores cobrados por ocasião da operação interestadual[xxix].

Como essa proporção alocada ao Estado de origem é bastante elevada (metade de todo o imposto), descobriu-se que uma forma eficiente de se atrair empresas e atividades para determinado Estado era conceder benefícios tributários relativos ao ICMS nas operações interestaduais, mediante um “desconto” na parcela destinada ao Estado de origem, sem que esse “desconto” seja mencionado no documento fiscal relativo à operação, de forma que o contribuinte destinatário pudesse se “creditar” do imposto interestadual “na íntegra” mesmo que ele não tenha sido cobrado.

Vamos apresentar um exemplo para ilustrar o caso. Suponha que um varejista localizado no Estado “A” deseje comprar alguns equipamentos eletrônicos importados para vender e que tais equipamentos sejam tributados pelo ICMS à alíquota interna de 18%. Se o importador “1”, localizado no mesmo Estado “A”, importar esses equipamentos para revender, vai pagar na importação uma alíquota de 18% de ICMS e depois, ao revender o equipamento com margem de 30% ao varejista vai pagar novamente o ICMS com alíquota interna de 18%[xxx].

 

Valor

Alíquota

ICMS

Crédito

ICMS a pagar

Importação

100,00

18%

18,00

0,00

18,00

Venda ao varejista

130,00

18%

23,40

18,00

5,40

Venda ao consumidor

182,00[xxxi]

18%

32,76

23,40

9,36

Total do ICMS

       

32,76

Se o Estado “B” oferecer um crédito outorgado de 90% para o importador “2” realizar operações de importação e subsequente venda interestadual em seu território e adotando as mesmas bases, teríamos a seguinte situação.

 

Valor

Alíquota

ICMS

Crédito

ICMS a pagar

Importação

100,00

18%

18,00

13,08[xxxii]

4,91

Venda ao varejista

121,13[xxxiii]

12%

14,53

18,00

-3,46

Venda ao consumidor

182,00

18%

32,76

14,53

18,22

Total do ICMS

       

19,67

Com tal medida, o Estado “B” atrai a atividade de importação para seu território e “ganha” uma receita tributária de R$ 1,45[xxxiv]. Por outro lado, o Estado “A” tem uma perda de arrecadação de R$ 14,54[xxxv]. Além disso, o importador “2” pode tirar mercado do importador “1”, pois, com o ganho adicional de R$ 13,08 sobre a venda dos equipamentos, poderá repassar parte do ganho para o preço de revenda[xxxvi], conquistando o cliente, mesmo pagando os custos adicionais[xxxvii] de transporte (do Estado “B” para o Estado “A”), e jurídicos se, eventualmente, o que é pouco provável, um dia tenha que se defender na justiça por ter usufruído de um benefício tributário ilicitamente concedido pelo Estado “B”.

Como o Governo central, desde o final da década de 1980, não tem conseguido impor um controle político à ação dos Estados, como ocorria durante os anos do regime militar (1964 a 1984), e como o sistema judicial[xxxviii] também não logrou apresentar uma sanção crível[xxxix] para os agentes políticos que concedem benefícios tributários relativos ao ICMS em desacordo com as normas nacionais do imposto[xl], o fenômeno (ilegal e com grande externalidade negativa) tem aumentado dia a dia.

Assim, como regra geral, a competição entre os Estados para atrair empresas para seus territórios, mediante a redução de tributos, é uma atividade saudável, mas, no Brasil, (i) face às peculiaridades do ICMS (operações interestaduais tributadas, com parte do valor atribuído ao Estado de origem, e possibilidade de creditar do valor do imposto supostamente pago em outro Estado), (ii) ao enfraquecimento do poder político do Governo central e (iii) às limitações práticas operacionais do sistema judicial, o que poderia ser saudável se transformou em uma verdadeira “guerra fiscal” em ambiente de “fim de feira”.

Tal realidade tem causado prejuízo ao desenvolvimento nacional, pois afasta as empresas sérias que poderiam investir no Brasil (não desejam se sujeitar aos riscos legais de infringir as leis nacionais) e incentiva as operações simples e de curto prazo como as de importações de produtos de consumo produzidos no exterior. Poderíamos dizer que muitas vezes são incentivos da China ou pró China.

Assim, entendemos que a competição tributária entre os Estados para atrair determinado tipo de empresa ou de atividade empresarial para seus territórios não é um fenômeno, em si, ruim, ou negativo, ao contrário, pode ser um bom mecanismo de alocação de recursos e de promoção de desenvolvimento regional e sustentável[xli].

Todavia, face às peculiaridades do ICMS e do Brasil, a atual “guerra fiscal”, travada no campo da ilegalidade, em que (i) os Estados concedem benefícios em desacordo com a legislação nacional vigente para conquistar arrecadação a qualquer custo (para cada R$ 1,45 de receita adicional para um Estado pode ocorrer uma perda de R$ 14,54 em outro Estado – ganha um perde dez), (ii) as mercadorias são desembarcadas no porto de Santos ou do Rio e percorrem milhares de quilômetros em rodovias[xlii], rumo ao centro oeste do Brasil, para trocar a nota e voltar novamente para serem consumidas nos Estados da Região Sudeste, (iii) as empresas são “forçadas” a assumirem elevados riscos jurídicos tributários ou perecerem face aos concorrentes e (iv) o investimento de longo prazo é suplantado pelo movimento rápido de importar e revender, deve acabar, antes que ela acabe com as possibilidades de o Brasil se tornar um país desenvolvido.

Assim, entendemos que não devemos eleger como objetivo o “fim da competição tributária” entre os Estados, mas, sim, fazer com que tal competição ocorra de forma saudável para a federação, induzindo os Governos estaduais a competir dentro dos limites legais e os empresários a investimentos de longo prazo em indústrias e outras atividades complexas, com segurança jurídica que os viabilize.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rodrigo Frota da Silveira

Graduado em Administração e Direito. Mestre em Administração (FEA USP). Juiz do TIT (Tribunal de Impostos e Taxas de SP). Professor Assistente Fiscal da Fazesp - Escola Tributária da SEFAZ/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Rodrigo Frota. A guerra fiscal e a unanimidade no Confaz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3445, 6 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23174. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos