Resumo: Examina-se as hipóteses de cabimento da denunciação da lide, com ênfase doutrinário e jurisprudencial.
Palavras-chave: Processo Civil; intervenção de terceiros; CPC; denunciação da lide
Sumário: 1. Introdução – 2. Conceito e particularidades – 3. Necessidade de preenchimento dos pressupostos processuais e das condições da ação – 4. Hipóteses de cabimento – 5. Obrigatoriedade da denunciação – 6. Sentença e condenação direta do denunciado – 7. Princípio da economia processual como justificativa para a denunciação da lide – 8. A denunciação da lide prevista no inciso III do art. 70 do CPC e a agregação de elemento novo na demanda – 9. Conclusão
1.Introdução
A denunciação da lide apresenta-se, certamente, como a espécie de intervenção de terceiros que mais despertou divergências no campo doutrinário e jurisprudencial. Tais discussões demonstram a relevância deste instituto processual, o qual foi mantido no Projeto do Novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010), embora com outra nomenclatura (“Chamamento”), decorrente de sua fusão com o atual instituto do chamamento ao processo.
Na presente discussão, são analisadas, uma a uma, todas as hipóteses de cabimento da denunciação da lide.
2.Conceito e particularidades
Questão primordial, no que concerne ao estudo da denunciação da lide, consiste na necessidade de uma análise mais acurada do seu conceito. Embora a quase totalidade dos autores processualistas consiga expressá-lo de maneira fiel à natureza do instituto, seus parâmetros parecem ser relegados quando de sua aplicação a casos concretos, situação que, frequentemente, conduz ao desvirtuamento de seus elementos essenciais, seja por meio de posicionamentos doutrinários, seja quando da prolação de decisões judiciais[1].
Seguindo este raciocínio, afigura-se relevante, antes de maiores considerações, proceder à exposição dos traços caracterizadores da espécie de intervenção de terceiros objeto do presente estudo, valendo-se, para tanto, das lições transmitidas por alguns autores consagrados.
Cândido Rangel Dinamarco (2009) conceitua a denunciação da lide como “a demanda com que a parte provoca a integração de um terceiro ao processo pendente, para o duplo efeito de auxiliá-lo no litígio com o adversário comum e de figurar como demandado em um segundo litígio”.
Já no entendimento de Ernani Fidélis dos Santos (2011), “a denunciação à lide constitui ação condenatória incidente que permite ao juiz, cumulativamente, ao julgar procedente o pedido, estabelecer a responsabilidade do terceiro para com o denunciante”.
Em ambas as exposições acima transcritas resta evidenciada uma das principais características da denunciação da lide: a condição de ação autônoma, distinta da ajuizada anteriormente, embora versadas em um mesmo processo. Assim, são processadas conjuntamente duas relações jurídicas materiais e processuais distintas: a primeira, estabelecida entre o autor e o denunciante; a segunda (denunciação), entre o denunciante e o denunciado.
Perceba-se que, embora o denunciado possa ocupar, simultaneamente, a posição de assistente na demanda originária e de réu na denunciação, sua vinculação restringe-se somente ao denunciante, e por esta razão permanecem inalterados os pólos da primeira ação.
Outra particularidade da denunciação merecedora de destaque é a sua eventualidade. Significa que, em virtude de sua natureza regressiva (exercício do direito de regresso), somente será apreciada pelo órgão julgador se o denunciante for vencido, pelo mérito, na ação principal. Esta é a noção claramente transmitida por Marcelo Abelha Rodrigues (2003):
A denunciação da lide é espécie de intervenção de terceiro provocada, que possui natureza jurídica de ação condenatória eventual. É eventual porque só será julgada se, e somente se, o responsável pela denunciação (denunciante) for vencido pelo mérito na ação principal.
Desta feita, quando o denunciante for vitorioso na causa principal, a apreciação da denunciação ficará prejudicada, não havendo sequer julgamento de mérito na demanda regressiva[2].
É o bastante, para o momento, a fixação dos dois traços característicos extraídos da conceituação da denunciação da lide e que devem ser memorizados: trata-se de ação autônoma e eventual.
3.Necessidade de preenchimento dos pressupostos processuais e das condições da ação
Antes da passagem à análise das hipóteses de cabimento da denunciação da lide previstas no art. 70 do Código de Processo Civil, não se pode esquecer que esta, como ação própria que é, deve atender aos pressupostos processuais e condições da ação que lhe são inerentes.
Arruda Alvim (2007) destaca a importância do preenchimento de tais requisitos ao considerar que “dever-se-á atentar, para ter cabimento a denunciação da lide, que haverão de estar presentes os pressupostos processuais e condições da ação, que à denunciação digam respeito”.
Desta feita, hão de ser indeferidos os pedidos de denunciação quando, por exemplo, carecerem de possibilidade jurídica. Seria o caso da denunciação pretendida em hipótese vedada por lei (v.g. art. 13, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor), ou diante da existência de cláusula contratual excluindo expressamente o denunciado da obrigação.
O mesmo se infere quando de sua formulação pelo réu que argua, simultaneamente, na ação principal, sua ilegitimidade passiva ad causam. Com efeito, se o denunciante réu se diz parte ilegítima na contestação, não pode pretender exercer um direito de regresso através da denunciação, tendo em vista a incompatibilidade entre sua defesa e a pretensão regressiva[3].
De igual forma se procede no tocante à causa de pedir da denunciação, que deve conter relação com a causa de pedir da ação movida contra o denunciante. Assim, não sendo preenchidos os requisitos de admissibilidade, deve a denunciação da lide ser liminarmente indeferida pelo órgão julgador.
4.Hipóteses de cabimento
O art. 70 do Código de Processo Civil indica, em seus três incisos, as hipóteses de denunciação da lide, assim dispondo, verbis:
Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:
I – ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta;
II – ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada;
III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.
A previsão do inciso I trata da denunciação da lide na hipótese de evicção – que nada mais é do que a perda da coisa por sentença judicial, em razão de vício anterior à alienação – relacionada ao domínio. Conforme será abordado mais à frente em tópico específico, consiste em hipótese de denunciação obrigatória, sob pena de perda do direito de regresso, em virtude de disposição de norma substancial (art. 456 do Código Civil).
Embora tenha sido empregada a expressão “reivindica”, o inciso I não pretende restringir sua aplicação à ação reivindicatória, daí porque a referida norma incide sobre qualquer espécie de ação em que o adquirente do domínio de determinada coisa venha a perdê-lo por sentença judicial. Sobre esta questão, assim se manifesta Luiz Fux (2005):
O inciso I parece indicar o cabimento da denunciação apenas nas hipóteses de ação reivindicatória. Nada obsta, entretanto, a que o instituto seja utilizado em ação declaratória, onde se infirma o direito de propriedade do adquirente, que, por isso, deve denunciar a lide ao alienante.
O inciso II permite àquele que tenha adquirido a posse direta denunciar a lide ao possuidor indireto ou proprietário que lhe transferiu a senhoria sobre a coisa, quando acionado em nome de um destes.
Apesar da possibilidade de sua redação ensejar o entendimento de que este dispositivo cuida da mesma função desempenhada pelo instituto da nomeação à autoria[4], com esta não se confunde. De fato, diferente do que ocorre com esta outra espécie de intervenção de terceiros, o denunciante, além de ser possuidor direto da coisa (e não mero detentor), não é excluído do processo, permanecendo na condição de parte legítima.
Não obstante o pensamento esboçado por respeitável parcela da doutrina e da jurisprudência no sentido de que, em algumas hipóteses, a denunciação seria uma opção entre as demais alternativas (nomeação à autoria e argüição de ilegitimidade), afigura-se mais ponderado o entendimento fixado por Arruda Alvim (2007), segundo o qual a denunciação da lide deve ser utilizada nas seguintes condições:
Em nosso sentir, entretanto, só tem sentido fazer uso o possuidor direto do instituto da denunciação à lide quando: a) haja um conflito potencial entre ele – denunciante – e o denunciado; b) e, também, quando haja uma razão em virtude da qual deva o denunciante permanecer no processo.
O mesmo inciso II comporta ainda os demais casos de evicção não elencados no inciso I – o qual trata somente da perda de domínio. Como se sabe, os direitos resultantes da evicção não se limitam à transferência de propriedade, mas também, de posse e de uso.
Já a redação do inciso III[5] indica, genericamente, a possibilidade de denunciação da lide em todas as situações de regresso contempladas na lei ou no contrato. Na hipótese, a presença do terceiro – denunciado – é justificada pela garantia que deu à parte – denunciante.
5. Obrigatoriedade da denunciação
Conforme disposição inserida no caput do já mencionado art. 70 do Código de Processo Civil, a denunciação da lide é medida obrigatória. Entretanto, a interpretação dessa regra deve ser procedida com cuidado.
Na verdade, a leitura do artigo deve ser compatível com a realidade jurídico-material, ou seja, a obrigatoriedade imposta pelo legislador está relacionada à idéia de ônus processual. Em outras palavras, a denunciação da lide seria o único meio através do qual a parte pode assegurar o exercício do seu direito de regresso no mesmo processo em que foi acionada. O destaque é que o pleito regressivo é apresentado em juízo antes mesmo de verificada sua existência e exigibilidade.
Registre-se que a inobservância da regra processual em apreço não implica, necessariamente, na perda do direito do regresso, sendo permitido à parte que deixar de denunciar a lide ao terceiro deduzir sua pretensão em juízo através de ação autônoma. Contudo, a referida atitude não gozaria dos principais benefícios obtidos com a denunciação: economia processual e possibilidade de evitar julgamentos contraditórios.
Ocorre que, embora o ônus processual decorrente do dispositivo em questão não implique na perda do direito no plano material, nada impede que norma de direito material assim disponha, como o faz o art. 456 do Código Civil[6], que cuida da evicção, que é exatamente uma das hipóteses de denunciação da lide, enquadrando-se no inciso I e em algumas hipóteses do inciso II do art. 70 do Código de Processo Civil.
De fato, embora o inciso I configure a regra geral de evicção, tratando da perda de domínio, os direitos dela resultantes não se limitam à transferência de propriedade, mas também de posse e de uso. Assim, o inciso II também alberga algumas hipóteses de evicção relacionadas à perda da posse ou do uso, transferidos por contratos onerosos.
Desta feita, em virtude da disposição contida em norma material, e não processual, a denunciação é obrigatória em qualquer das hipóteses de evicção, sob pena da perda do direito de regresso.
Merece ser registrado que esta regra de denunciação obrigatória nos casos de evicção não é absoluta, devendo ser relativizada quando a ação principal tramitar sob o procedimento sumário, que não admite esta intervenção de terceiro. Nesta hipótese, será possível o ajuizamento de ação autônoma de regresso, ou do contrário haveria cerceamento das garantias constitucionais do livre acesso à justiça e do devido processo legal.
Fazendo uso de raciocínio inverso, toda a explanação acima conduz a irretocável conclusão de que inexiste obrigatoriedade na denunciação no inciso III do art. 70 do Código de Processo Civil – a qual interessa mais propriamente a esta exposição. Assim, em qualquer situação em que a parte estiver obrigada, por lei ou contrato, a indenizar o prejuízo daquele que perder a demanda, poderá o mesmo fazê-lo por meio da denunciação da lide ou por via de ação autônoma de regresso.
6.Sentença e condenação direta do denunciado
A sentença da ação de denunciação da lide possui natureza condenatória e é proferida no mesmo instrumento de julgamento da ação principal, ou seja, são julgadas, em uma mesma sentença de um mesmo processo, duas lides distintas.
É importante frisar que o legislador foi infeliz quando da formulação da redação do art. 76 do Código de Processo Civil[7], pois vislumbrou apenas a possibilidade de procedência da ação. Foi esquecida a hipótese de o denunciante ser autor da ação, quando a improcedência também implicaria na condenação do denunciado, como elucida Moacyr Amaral dos Santos (1999):
Mas, no caso da ação ser julgada procedente? Por que obrigatória a denunciação da lide também pelo autor (cód. cit., arts. 70, ns. I e III, 71, 74), se aquele ato não é considerado na sentença, resolvendo quanto ao evicto ou sobre a responsabilidade por perdas e danos do denunciado? Vencido o autor, evidentemente que a sentença deverá abranger a responsabilidade, se houver, daqueles que por ele foram denunciados da lide. Ainda aqui, portanto, estamos com CELSO AGRÍCOLA BARBI ao lecionar que o referido art. 76 “deve ser entendido como se dissesse que a sentença, quando o denunciante for vencido na ação principal, declarará o direito do evicto ou a responsabilidade pelas perdas e danos decorrentes daquela derrota”.
Assim, a afirmação mais adequada é de que somente haverá sentença relativa à denunciação da lide se o denunciante for vencido na ação principal.
Questão interessante e defendida por abalizada parcela de juristas vem a ser a possibilidade de, na sentença, ser o denunciado condenado diretamente, sob o fundamento de que este teria assumido a posição de litisconsorte do réu na ação principal. O pronunciamento judicial precursor dessa corrente é de autoria de Ruy Rosado Aguiar[8]:
Sempre me pareceu que o instituto da denunciação da lide, para servir de instrumento eficaz à melhor prestação jurisdicional, deveria permitir ao juiz proferir sentença favorável ao autor, quando fosse o caso, também e diretamente, contra o denunciado, pois afinal ele ocupa a posição de litisconsorte do denunciante.
A iniciativa expressada no referido precedente é louvável sob a ótica da moderna processualística, que não aceita soluções exegéticas desvinculadas de suas funções institucionais. Nessa ordem de idéias, afigurar-se-ia correto e aconselhável o recurso à execução direta contra o denunciado, em observância à garantia constitucional de efetividade da prestação jurisdicional.
Contudo, deve ser registrado que na oportunidade não foram estabelecidos ou mesmo sugeridos os parâmetros dentro dos quais seria possível a condenação direta do denunciado. Perceba-se que o próprio jurista deixou um espaço para interrogações ao fazer a ressalva com a expressão “quando fosse o caso”.
Ordinariamente, as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça têm seguido esse entendimento quando se trata de companhia seguradora na posição de denunciada, mas trata-se de uma hipótese singular, especialmente com o advento do Novo Código Civil, que alterou profundamente a estrutura do seguro de responsabilidade civil.
Na verdade, de acordo com o art. 787 do referido diploma legal[9], o seguro não mais apenas garante o reembolso da indenização custeado pelo segurado; garante o pagamento das perdas e danos, pela seguradora, diretamente ao terceiro prejudicado pelo sinistro.
Perceba-se, portanto, que a condenação direta da seguradora encontra respaldo em norma de direito material[10]. A generalização da regra a partir dessa hipótese apresenta-se perigosa, pois não há um indicativo – legal, doutrinário ou jurisprudencial – de quais situações fáticas permitiriam tal procedimento.
De outra sorte, e até mesmo questionando a insegurança provocada por esta incerteza, apresentam-se respeitáveis e consistentes os argumentos daqueles que adotam o posicionamento contrário à condenação direta do denunciado. Atente-se para o fato de que tais argumentos são sustentados pela coerente necessidade de respeito à natureza do instituto da denunciação da lide[11].
O primeiro argumento consiste no fato de a denunciação ser uma ação autônoma, cujo ingresso no processo não interfere na composição dos pólos da ação principal, não existindo qualquer vínculo jurídico entre o autor ou réu da causa primária e o denunciado.
Argüi-se que, embora o denunciado possa aditar a inicial e contestar a ação principal, a posição que assume seria de assistente, e não de litisconsorte. Isso porque o termo “litisconsorte” teria sido utilizado nos arts 74 e. 75, inciso I do Código de Processo Civil[12] não em seu sentido estrito, e sim, com o escopo de realçar que o denunciado tem interesse no julgamento da demanda favorável ao denunciante.
Outro argumento é de a execução da denunciação somente é possível após materializado o dano do denunciante, ou seja, após ter sido vencido na ação principal. Neste tocante, em interessante estudo, Donaldo Armelin (1999, apud CARNEIRO, 2010) expressa sua posição, ponderando que, se procedente a ação e denunciação, formam-se dois títulos executivos, e então:
(...) parece estar condicionada a exigibilidade daquele instituído em favor do litisdenunciante ao adimplemento por este da obrigação reconhecida na sentença condenatória proferida em seu desfavor. (...) possibilitar que o litisdenunciante execute o litisdenunciado antes de ser solvido seu débito para com o vencedor na ação principal, pode permitir um resultado paradoxal, como o que resultar da satisfação de um crédito até então inexistente, porque não efetuado ainda o pagamento, que geraria tal crédito.
Aduz-se ainda, contra a possibilidade de condenação direta do denunciado, que nosso ordenamento jurídico processual não alberga essa possibilidade excepcional. Cândido Rangel Dinamarco (2009) afirma que “ainda que a condenação direta apresentasse vantagens, só por disposição expressa de lei ela poderia ser admitida”.
Sobre este ponto específico – vínculo jurídico entre autor da demanda principal e o denunciado –, Humberto Theodoro Júnior (2011) até esclareceu sua visão, afirmando:
Mesmo que não se veja uma relação creditícia direta entre o autor e o denunciado, não há razão para, funcionalmente, se lhe negar uma sub-rogação nos direitos do réu-denunciante em face do terceiro denunciado, no que diz respeito à garantia a seu cargo.
Por esta breve exposição já se tem uma noção de como o tema encontra-se distante de uma pacificação. Isso porque, embora a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça revista-se da intenção de conferir efetividade à prestação jurisdicional, não indica parâmetros objetivos para sua aplicação e acaba por ferir premissas básicas do instituto da denunciação.
Não se nega a necessidade de conferir maior efetividade à prestação jurisdicional, mas até o momento as tentativas neste sentido esbarram na temerosidade das conseqüências ao sistema jurídico que uma aceitação irrestrita da possibilidade de condenação direta do denunciado poderia trazer. Ao que parece, somente uma profunda reforma legal nos dispositivos aplicáveis à questão em apreço poderia lhe conferir a segurança jurídica necessária.