Resumo: O presente texto analisa o papel que o processo desempenha na sociedade, enquanto instrumento para atuação do Direito. Para tanto, aborda, numa primeira etapa, a evolução do instituto ao longo dos séculos. Em seguida, trata da macro relação entre o poder e a sociedade, e da micro relação entre as partes e o juiz, que compõem a relação processual.
Palavras-chave: processo; relação jurídica; jurisdição, sociedade, poder.
1. O que é processo?
Processo não é procedimento. Tanto não é que a Constituição estabeleceu competência privativa à União para legislar sobre direito processual (art. 22, inc. I), ao passo que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, inc. XI). Procedimento é “apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo. É uma noção puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem.”(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 301). Como lecionou Liebman, o “conjunto de atos, na sua sucessão e unidade formal, tem o nome técnico de procedimento.” (LIEBMAN, p. 39).
Procedimento é, portanto, uma mera sucessão de atos, que disciplinam a marcha do processo, definindo o tempo e a forma desses atos processuais, voltados a determinado fim: a prestação jurisdicional.
Quanto ao processo, fato é que a sua definição, ditada pelos processualistas, modificou-se ao longo do tempo. Inclusive, já se concebeu processo e procedimento como se fossem a mesma coisa. E, ainda em tempos recentes, volta-se a falar do processo como procedimento, o que será analisado mais adiante.
Na verdade, as teorias sobre a natureza do processo estão ligadas à visão que se tem do instituto. O caráter publicista do processo é relativamente recente. Por muito tempo vigorou a concepção privatista. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, no clássico Teoria Geral do Processo (2011), explicam essas teorias, que permeadas ora por uma visão publicista, ora privatista, já conceberam o processo como contrato, quase-contrato, relação jurídica contratual, situação jurídica e procedimento informado pelo contraditório. Vejamos cada uma delas, segundo a lição dos mestres.
Na antiguidade, o processo era visto como um contrato pelo direito romano. As partes firmavam um acordo, o litiscontestatio, por meio do qual compactuavam em submeter a controvérsia instalada entre elas a um árbitro, o judex. Nesse modelo, “as partes se submetem voluntariamente ao processo e aos seus resultados, através de um verdadeiro negócio jurídico de direito privado (a litiscontestação).” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 303). O curioso é que as pessoas conseguiam realizar um acordo em que estabeleciam uma forma para resolver a lide. Mas a discórdia quanto ao direito material persistiria até ser resolvida por um terceiro, que não era um agente do Estado. Assim, não havia que se falar em jurisdição, como manifestação do poder estatal. O processo seria realmente um negócio estabelecido entre particulares, inclusive no que tange ao julgador.
Arnault de Guényvau, no século XIX, afirmou que “se o processo não era um contrato e se delito também não podia ser, só haveria de ser um quase contrato.” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 304). Mais uma vez é perceptível a tentativa de enquadrar o processo numa categoria do direito privado. Por sua vez, James Goldschmidt afirmava ser o processo uma situação jurídica, no sentido de que o direito subjetivo, enquanto estático, restava perfeitamente definido. Contudo, quando aquele direito se torna dinâmico, em razão do processo, ocorre uma transformação estrutural que o torna uma simples expectativa de direito, ou melhor, reduz o direito subjetivo a meras possibilidades.
Foi Oscar von Bülow quem estabeleceu um marco na história do processo, com a teoria da relação jurídica processual. CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO ensinam que outros estudiosos já haviam distinguido uma relação estabelecida entre autor, réu e juiz, distinta da relação de direito material em litígio. Mas, o “grande mérito de Bülow foi a sistematização, não a intuição da existência da relação jurídica processual”. (2011, p. 304).
Assim, a partir da obra Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias (1868), o mundo jurídico passou a conceber e admitir o processo como uma relação jurídica, formada por três partes, autor, juiz e réu, relação essa distinta daquela que é estabelecida em torno do direito material debatido. “Todas essas diferentes posições jurídicas subjetivas (autoridade, direitos subjetivos, sujeições, ônus) são agrupadas em um feixe na relação processual, representando a tessitura jurídica interna do processo.”
Não obstante, na segunda metade do século XX, Elio Fazzalari contestou a formulação da relação jurídica, retornando o processo à condição de procedimento, com uma qualificação: a abertura à participação mediante o contraditório.
Mas o processo não pode ser entendido apenas como o procedimento em contraditório. É na relação jurídica processual que o subjaz que repousam as suas características mais acentuadas. Ora, se o processo é uma garantia de índole constitucional endereçada ao cidadão, faz-se necessário que esse seja compreendido como um dos componentes desse instituto jurídico. É o reconhecimento de uma relação entre sujeitos, a relação jurídica processual, que imprime um aspecto substancial ao processo, pois uma garantia fundamental só pode ser utilizada pelo ser humano que busca a tutela do direito que afirma possuir.
E na condição de garantia do indivíduo, o processo, em sua essência, consubstancia-se num “valor permanente e inalterável” na condição de instrumento da “definição e realização do direito” (BURNIER Jr.: 2000, p. 21).
Por outro lado, o processo é também instrumento da jurisdição, a afirmação do poder estatal (escopo político) que almeja alcançar a pacificação social (escopo social) por meio da realização do direito material de cada indivíduo (escopo jurídico). Cuida-se, portanto, de “garantir que o direito objetivo material seja cumprido, o ordenamento jurídico preservado em sua autoridade e a paz e ordem na sociedade favorecidas pela imposição da vontade do Estado”, na sempre precisa lição de Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, que vão concluir com maestria que é por isso que o “mais elevado interesse que se satisfaz através do exercício da jurisdição é, pois, o interesse da própria sociedade (ou seja, do Estado enquanto comunidade)” (2011, p. 151). E é por meio do processo que se atingirá tal desiderato.
Nessa perspectiva, há que se ter em conta que o Estado se faz presente na relação jurídica processual, na pessoa do magistrado, que“não participa do jogo de interesses contrapostos, mas comanda toda a atividade processual, distinguindo-se das partes por ser necessariamente desinteressado (no sentido jurídico) e portanto imparcial.” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, p. 311).
Esse agente estatal ganha cada vez mais proeminência nesse novo cenário que se convencionou chamar ativismo judicial, no qual a presença do juiz contribuirá de forma relevante para a definição da forma, do conteúdo e da extensão do exercício do direito de ação das outras partes (autor e réu) que compõem a relação processual . É inegável a existência de tal relação, que anima e impulsiona o processo.
É certo que a participação das partes no processo, mediante o contraditório substancial, entendido como a possibilidade de influência na decisão, na lição de DIDIER JR., complementa o conceito do processo. Da mesma forma que um procedimento pré-estabelecido, com regras rígidas e aplicadas igualitariamente, integra a garantia fundamental do devido processo legal. Mas esse procedimento e a decorrente participação das partes só é possível porque, antes mesmo de se iniciar o procedimento (ou ao menos concomitantemente), há uma relação jurídica processual, estabelecida entre autor e réu, como partes contrapostas, e o Estado-juiz, com autoridade e poder para resolver o litígio.
2. Processo, sociedade e poder
Viver em sociedade é essencial. É nela que o homem encontra os meios e recursos necessários à sua sobrevivência, ao seu desenvolvimento eà sua realização, numa infindável busca pela felicidade (ou ao menos pela ausência de sofrimento). E o Estado é indispensável para a (tentativa de) manutenção da paz e da harmonia em determinada sociedade. Na antiguidade Aristóteles já havia vislumbrado que a “finalidade do Estado é a felicidade na vida. Todas essas instituições visam à felicidade. A cidade é uma reunião de famílias e pequenos burgos que se associam para desfrutarem juntos uma existência inteiramente feliz e independente.” (ARISTÓTELES; p. 94).
O Estado regula a vida social por meio de um complexo de regras que impõe coercitivamente ao grupo, mediante o manejo de um aparato que lhe permita a consecução de seus fins, pelo uso da força, se e quando necessário. E não obstante se constatar uma parcela de violência na atuação estatal, violência essa que será percebida em maior ou menor medida a depender do caráter democrático instrumentalizado pelo governo e legitimado pelo ordenamento jurídico, tanto no que tange à sua produção quanto ao que refere à sua aplicação, tal característica se mostra indispensável à vida em comunidade. Thomas Hobbes, ainda no século XVII, imaginou como seria a vida humana sem a presença do Estado. Merece transcrição a realidade paralela vislumbrada pelo filósofo:
Nesse tempo não pode haver lugar para a faculdade inventiva, pois seus resultados são incertos; consequentemente, não é possível cultivar a terra nem navegar, e não são utilizadas mercadorias importadas que cheguem por via marítima; não há construções cômodas, nem máquinas para remover grandes pesos; o conhecimento não se desenvolve sobre a face da terra; o tempo não é contado; não há artes; não há cartas nem sociedade; e, o que é pior: há um temor contínuo e a ameaça de morte violenta. A vida do homem é, então, solitária, pobre, embrutecida, curta. (HOBBES; p. 95)
A violência desenfreada dos dias atuais revela que Hobbes não estava errado quanto à natureza humana. É inviável pensar um mundo sem um aparato apto a, coercitivamente, impor padrões mínimos de comportamento.
A existência em estado de natureza, ou seja, sem as regras de conduta fixadas pela sociedade política, seria insuportável. O homem estaria entregue à sua própria sorte, passível de sofrer todo tipo de violência, vivendo numa permanente situação de ameaça. É no Estado que o indivíduo encontrará as condições mínimas necessárias à sua sobrevivência e ao seu desenvolvimento, condições essas, nas palavras de Sahid Maluf, “tendentes à realização dos imperativos naturais da pessoa humana.” (MALUF; p. 282).
E nessa relação entre o indivíduo e a sociedade política, cada um deve ceder parcela de sua liberdade ao Estado (teoria contratualista), com o objetivo de usufruir, em contrapartida, dessa mesma liberdade, ao menos o que resta, numa fórmula de compensação.
Conforme Hobbes, o indivíduo cede parcela de sua liberdade e submete-se às regras da sociedade política para superar a condição de guerra, que é uma consequência necessária das paixões naturais dos homens e só pode ser suplantada “se houver um poder visível que os mantenha em atitude de respeito, forçando-os, por temor à punição, a cumprir seus pactos e a observar as leis naturais.” (HOBBES; p. 123).
A questão, então, é legitimar a existência desse poder central, cuja submissão aos seus comandos custa uma parcela da liberdade dos cidadãos. De fato, vivemos em um mundo material onde os desejos são insaciáveis, mas os recursos limitados. E a definição da apropriação, do uso e do gozo desses recursos implica num tratamento desigual entre os membros de determinada comunidade, o que gera a demanda de um instrumento legitimador que permita uma convivência o mais pacífica possível, mediante a introdução no seio social de um sentimento de aceitação e conformação.
E aqui entra o Direito que, na lição de Calmon de Passos, “antes de ser um agente conformador ou transformador da convivência social é, quase que exclusivamente, um instrumento assegurador de determinado modelo dessa convivência, o que só alcança em virtude de sua impositividade que, por sua vez, o vincula necessariamente ao poder político institucionalizado” (p. 51). Assim, o Direito encontra-se umbilicalmente ligado ao Poder, numa simbiose irrefutável, conforme arremata o inigualável jurista baiano, para quem “sem poder não há impositividade e sem impositividade não há Direito.” (p. 51).
O Direito é, conforme Calmon de Passos, um instrumento de legitimação do poder político e de realização da atividade política, por meio da qual são definidos os objetivos a serem coletivamente perseguidos e os valores correspondentes. (PASSOS, p. 50).
Mas não basta estabelecer as opções políticas; é preciso conferir-lhes efetividade. De nada adiantariam as regras abstratamente impostas, se não houvessem instrumentos coercitivos que lhe assegurassem a observância prática. “Para isto se faz indispensável institucionalizar um poder que monopolize a coerção e possa fazer uso legítimo da força, sem o que inexistiria ordem social e careceriam de sentido aquelas primeiras opções institucionalizadas. A decisão a nível macro pede sua efetividade a nível micro.” (PASSOS, p. 50).
E essa efetividade a nível micro, ou seja, a realização da decisão política institucionalizada, a proteção dos fins perseguidos pelo Estado, que visa em última análise permitir a própria existência da sociedade, realiza-se através do processo. Debruçando-se sobre a lição deixada por Calmon de Passos, talvez indo a um ponto mais específico de seu pensamento, seria possível identificar o processo como instrumento de realização do próprio Direito, esse concebido como ferramenta legitimadora da atividade política. Em outras palavras, o processo é o meio de atuação e concretização individualizada do Direito. É por isso que, dentre os institutos da teoria geral, o processo se identifica mais com a jurisdição (poder) do que com a ação (direito). Por que muito mais do que direito ou garantia da parte, o processo é um instrumento de afirmação e atuação do poder. “Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo instrumento para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as atividades estatais...” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 302).
Processo é um utensílio do aparelho estatal, utilizado a nível micro, no âmbito das relações intersubjetivas, que mais que a realização da justiça, visa a afirmação do Poder no seio da sociedade, por meio da atuação do Direito objetivo, legislado, criado pelo Estado.
E sendo o Processo o meio de atuação do Direito, constata-se que ele também é um instrumento de dominação, na medida em que busca pacificar conflitos mediante a imposição da vontade do Estado (legislação), que não necessariamente corresponde ao que os indivíduos desejariam como resultado da resolução de um conflito, caso não existisse um ato normativo que estabelecesse abstratamente um modelo para cada situação jurídica. Ainda que a parte da relação jurídica fique abatida, porque vencida, o processo consegue incutir-lhe no espírito a sensação de que foi realizada a justiça dos homens.
O curioso é que grande parte dos conflitos resolvidos pelo Processo, são originados pelo mesmo Poder a quem ele serve. São disputas motivadas pela desigual distribuição da riqueza produzida pelo trabalho social, desigualdade essa gerada e regulada pelo Poder. Pois além da desigualdade física, que é natural e verificada na diferença de idades, de saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, há também a diferença gerada pelo Poder, seja ele o econômico ou o político, o que Rousseau denominou desigualdade moral ou política, e que advém das convenções estabelecidas pelos homens. (ROUSSEAU, p. 33).
O Estado estabeleceu o direito de propriedade e as normas que regem as relações de trabalho. O Poder estabelece classes: em sua faceta econômica, situa empregadores e empregados, proprietários e desprovidos, exploradores e explorados; no viés político, institui governantes e governados, dominantes e dominados.
Se não há dúvidas de que o processo é um instrumento do Poder, há que se ter em conta que esse instituto jurídico é multifacetário. Nesse contexto, urge resgatar o seu aspecto de garantia do cidadão, alçado que foi à categoria constitucional.
E como realizar tal desígnio? Humanizando o processo judicial, o que começa pelo reconhecimento da relação jurídica processual que deve sobrelevar o mero procedimento, relação essa onde está inserido o próprio Estado, na pessoa do magistrado, que embora não possua interesse direito na causa, deve zelar por um dos interesses primários de um Estado Democrático de Direito: a realização da justiça, por meio da qual se alcança a pacificação social. Para tanto, é preciso reconhecer que o ordenamento jurídico nem sempre fornecerá soluções ideais para tal propósito. O Direito, conquanto instrumento de dominação, não está pronto com sua mera positivação pelo legislativo. O seu processo de formação é aperfeiçoado e concluído no seio de uma relação jurídica intersubjetiva, desenvolvida no âmbito da Jurisdição.
Referências:
ARISTÓTELES. Política. Trad.: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002.
BURNIER Jr., João Penido. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Campinas: Copola, 2000.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1. Salvador: Juspodvm, 2007.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad.: Rosina D'Angina. São Paulo: Martin Claret, 2010.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil, vol. 1. Trad.: Cândido Rangel Dinamarco. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012.