O retrocesso havido na condução da reforma do Judiciário, em curso na Câmara dos Deputados, mereceu de advogados e magistrados, personagens centrais na administração da Justiça, a mais viva repulsa. Não é para menos. As emendas ao relatório da deputada Zulaiê Cobra restabelecem os excessos do relatório anterior, do deputado (hoje ministro) Aloysio Nunes Ferreira.
A adoção da avocatória (eufemisticamente chamada de "incidente de inconstitucionalidade"), instrumento pelo qual o Supremo Tribunal Federal pode chamar a si decisão sobre questões que tramitam nas justiças estaduais ou em outras instâncias judiciárias, fere o princípio federativo e elimina o inalienável direito ao juiz natural, aquele que conhece a realidade social que gerou a demanda, as razões emocionais que a provocaram, sua ambiência, em suma.
Conjugada a dispositivos como súmula vinculante, ação direta de inconstitucionalidade, e a ação declaratória de constitucionalidade, a avocatória verticaliza a Justiça brasileira, transformando-a numa instituição militarizada .
Numa palavra, engessa a magistratura, transformando-a em mera aplicadora de decisões oriundas do STF. De parlamentares da base governista, ouvi comentários de que não apresentariam o destaque para a avocatória se a soubessem conjugada àqueles dispositivos. Jamais, em toda a história republicana brasileira, houve tal concentração de poderes na cúpula do Judiciário. Nem mesmo o " pacote de abril ", de 1977, ousou tanto.
A Ordem dos Advogados do Brasil tem sido acusada pelos que sustentam essas distorções de estar sendo corporativista. A avocatória, segundo essa argumentação, resolveria no nascedouro ações sobre matéria constitucional, evitando uma série de recursos até que a questão chegue ao Supremo. Ou seja, reduziria o mercado de trabalho dos advogados . Ledo engano.
Nenhum advogado, em sã consciência, pode ser contra o aperfeiçoamento da Justiça, sua maior agilidade e eficiência. Quanto mais funcional e acreditada, mais demandas estimulará, aumentando o fluxo do mercado de trabalho. Na medida em que a Justiça não funciona, inúmeros cidadãos deixam de procurá-la, o que, como é óbvio, reduz o mercado para os profissionais do Direito.
Claro que queremos uma Justiça mais rápida. Justiça que tarda é injustiça manifesta, já ensinava Rui Barbosa. O que não podemos admitir é que, em nome de uma suposta celeridade, se prejudique a boa e justa distribuição da justiça. A busca de celeridade a qualquer preço gerou na Inglaterra uma anomalia: a constituição de um órgão para rever sentenças, inclusive as transitadas em julgado. Aí, sim, afeta-se a independência e a credibilidade do Poder Judiciário.
A avocatória e os efeitos colaterais que gera não estão sendo questionados apenas por nós, advogados. Vejam o que diz o manifesto da Associação dos Magistrados Brasileiros, assinado por seu presidente, Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho:
"O incidente de inconstitucionalidade, gerado na linha de engessamento inspirada pela súmula vinculante, representa o culto ao economicismo na prestação de Justiça. Despreza, por isso, o valor do debate para o aprimoramento da jurisprudência e fortalece a concentração de poder na cúpula do sistema judiciário, renegando a própria natureza da jurisdição como instrumento democrático de garantia dos direitos fundamentais e contra a opressão."
O que tememos - e denunciamos - é a tentativa de se sobrepor ao Estado Democrático de Direito, pelo qual tanto lutou a sociedade brasileira, um Estado de Justiça.
A OAB, nessa questão, sustentará sem receio suas convicções, na certeza de que contemplam o interesse da sociedade. Não temos vínculos ou compromissos partidários. Não "rompemos" com o governo, como chegaram a noticiar alguns jornais - e por um motivo simples: jamais tivemos vínculos com o governo, este ou qualquer outro.
Sempre nos colocamos à disposição para o debate e nossas propostas haviam sido acolhidas pela relatora, deputada Zulaiê Cobra, que é da base governista. Nos seus contatos com a sociedade civil, ela constatou a procedência e a consistência de nossos argumentos. Subitamente, porém, o governo aciona sua maioria e estabelece o retrocesso na reforma.
Nossa decepção é grande, mas continuaremos a lutar por nossos pontos de vista. O que buscamos é o aprimoramento da Justiça brasileira, de modo a que cumpra sua mais elementar função, que é a de chegar a todos. Essa preocupação não parece ser a do governo, já que deixou de lado os problemas básicos do Judiciário - entre outros, acesso à justiça, morosidade na primeira instância, escassez de juízes, custas judiciais elevadas - e cuidou apenas de concentrar poderes políticos na cúpula do Poder, amordaçando a base da magistratura.