Resumo: Examina-se a possibilidade de utilização do instrumento processual da denunciação da lide pelo Estado em face do agente público, nas hipóteses em que for acionado judicialmente a título de responsabilização extracontratual por danos causados a terceiros.
Palavras-chave: Processo Civil; Direito Administrativo; responsabilidade extracontratual do Estado; denunciação da lide; agente público
Sumário: 1. Introdução – 2. Divergência jurisprudencial – 3. Denunciação do agente e responsabilidade objetiva – 4. Denunciação do agente e responsabilidade subjetiva – 5. Conclusão
1Introdução
As discussões acerca da responsabilidade extracontratual patrimonial do Poder Público tiveram início há séculos atrás e evoluíram juntamente com o próprio conceito de Estado. Trata-se de um tema de relevância ímpar, pois regula a relação jurídica mais delicada na perspectiva de vida em coletividade: a relação entre o Estado e os indivíduos.
Como qualquer relação jurídica, é natural a assunção de posições antagônicas pelos seus integrantes, cada um na busca de seus interesses. Ordinária e historicamente não se consegue resolver os conflitos eventualmente surgidos entre as partes de maneira amigável, sendo necessário socorrer-se do Poder Judiciário.
É no alvitre de uma melhor prestação jurisdicional que se estabelecem regras processuais que melhor conduzirão o deslinde das questões postas em juízo. Nesse ambiente se destacam alguns institutos, como a denunciação da lide, que viabilizam de forma mais efetiva o exercício da função jurisdicional.
A denunciação da lide consiste em uma hipótese de intervenção de terceiros no processo, no qual se pretende resolver conjuntamente demandas que guardam alguma relação com o exercício do direito de regresso.
Dentre as hipóteses de regresso previstas em nosso ordenamento destaca-se a disposição constante do art. 37, §6º, da Constituição Federal, que regula a mais recorrente possibilidade legal de ajuizamento de demanda regressiva do Estado contra o agente público que causou algum dano a terceiro.
Surge então o questionamento: embora o comando constitucional disponha apenas de “ação regressiva”, seria possível a denunciação da lide ao agente público causador do dano? A questão encontra divergências até mesmo entre as duas maiores Cortes do país, fato que reflete a importância do tema abordado neste estudo.
Deve ser ressaltado que não é objetivo desta apresentação exaurir todos os temas relacionados aos institutos aqui versados, de maneira que alguns pontos receberam menores comentários e outros sequer foram abordados, não por sua menor importância, mas por sua menor relevância no contexto da problemática abordada neste estudo.
2Divergência jurisprudencial
Questiona-se se a Fazenda Pública poderia denunciar à lide, em ação de indenização contra ela interposta, o agente público causador do dano. As posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça apontam para conclusões em sentidos opostos, até mesmo como um reflexo da divergência existente na doutrina.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu cabível a denunciação do agente público (motorista) em demanda que versava sobre acidente de veículos, pelas seguintes razões (REsp 34.930/SP, DJ 17.04.1995):
PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR DANOS CAUSADOS EM ACIDENTE DE VEICULOS. PREPOSTO QUALIFICADO NO POLO PASSIVO. ART. 37, PARAGRAFO 6., CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ARTIGOS 15 E 896, CODIGO CIVIL. ARTIGO 70, III, CPC, LEI N. 4.619/65.
1. Ação promovida contra o Estado e seu preposto (motorista), com o fito de obter reparação por danos causados a terceiro, em acidente de trânsito. 2. Embora de natureza diversa, as responsabilidades do Estado (risco administrativo) e a do funcionário público (culpa), imputada a este a condução culposa do veículo, mostra-se incensurável o alvitre do autor em, prontamente, chamá-lo para o pólo passivo da relação processual. Se não incluído, desde logo, o preposto, surgiria a denunciação da lide (art. 70, III, CPC). Considerando o direito de regresso (art. 37, parágrafo 6º, CF), homenageando-se o princípio da economia processual , é recomendável que o agente público, apontado como responsável pelos danos causados a terceiros, apresente a sua resposta, produza prova e acompanhe a instrução até o julgamento. Demais não está vedada sua qualificação no pólo passivo.
Já o STF, em decisão unânime, decidiu pela sua impossibilidade (RE 93.880/RJ, DJ 05.02.1982):
Diversos os fundamentos da responsabilidade, num caso, do Estado, em relação ao particular, a simples causação do dano; no outro caso, do funcionário em relação ao Estado, a culpa subjetiva. Trata-se de duas atuações processuais distintas, que se atropelam reciprocamente, não devendo conviver no mesmo processo, sob pena de contrariar-se a finalidade específica da denunciação da lide, que é de encurtar o caminho à solução global das relações litigiosas interdependentes.
Perceba-se que as duas situações versadas nas decisões acima transcritas restringem-se a abordar hipóteses de responsabilização objetiva do Estado, com fundamento na teoria do risco administrativo, mas em vertentes opostas. A doutrina em geral se limita a debater esta questão específica (denunciação da lide ao agente público) apenas sob esta perspectiva.
Ocorre que é possível também a responsabilização subjetiva do Poder Público, fato que é desconsiderado pela grande maioria dos autores, quando de suas manifestações. Por esta razão é que se afigura salutar, neste momento, efetuar-se uma divisão do estudo em cada caso, para que se analise de forma mais completa e cautelosa as peculiaridades de cada um.
3Denunciação do agente e responsabilidade objetiva
O tema da denunciação do agente público nas ações indenizatórias promovidas contra a Fazenda Pública, com fulcro na responsabilidade objetiva, encontra uma resistência instransponível: a introdução de elemento novo na demanda.
Assim, afigura-se mais apropriada a posição adotada pela corrente majoritária no sentido de que a introdução de novo elemento atentaria contra o princípio da economia processual (fundamento da denunciação da lide), pois implicaria em atraso na prestação jurisdicional, provocado por uma produção probatória desnecessária ao deslinde da ação originária.
A lembrança desta posição foi efetuada agora na intenção de apontar uma evidente incoerência entre duas manifestações do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, se o egrégio Tribunal abraçou a tese[1] de que é impossível a denunciação da lide quando implicar em introdução de novo elemento na demanda, como pode defender sua possibilidade na hipótese de denunciação do agente público?
Ora, a responsabilidade do Estado no acórdão do STJ acima é objetiva, enquanto a do agente público (no caso, um motorista), é subjetiva, dependente da comprovação de dolo ou culpa. A dilação probatória exigida para o julgamento da denunciação é distinta e bem mais aprofundada – e, portanto, demorada - da que será operada na ação principal, ou seja, será introduzido nesta demanda um novo elemento, posição que a mesma Corte rejeita com convicção. Leonardo José Carneiro da Cunha (2012) com autoridade corrobora este entendimento afirmando:
Haveria, então, um elemento novo, a impedir a instauração da denunciação da lide pela Fazenda Pública. Realmente, sendo objetiva a responsabilidade da Fazenda Pública, não caberia a denunciação da lide, pois o direito de regresso estaria fundado em responsabilidade subjetiva, havendo, em tal hipótese, agregação de elemento novo à causa de pedir, causando a necessidade de uma instrução não exigida inicialmente.
Vê-se que a solução adotada pelo STJ no caso da denunciação do agente público, além de contrariar entendimento de caráter geral consolidado pela mesma Corte, causaria um prejuízo irreparável para o autor. Weida Zancaner[2] bem afirma nesse sentido:
Procrastinar o reconhecimento de um legítimo direito da vítima, fazendo com que este dependa da solução de um outro conflito intersubjetivo de interesses (entre o Estado e o funcionário), constitui um retardamento injustificado do direito do lesado, considerando-se que este conflito é estranho ao direito da vítima, não necessário para a efetivação do ressarcimento a que tem direito.
Neste diapasão, aparenta mais fragilidade a tese defendida por alguns doutrinadores, como José Roberto dos Santos Bedaque, de que o interesse público – representado pela aceitação da denunciação mesmo com introdução de novo elemento, com o julgamento de duas lides conjuntamente –, deve sempre prevalecer em detrimento do interesse individual. Basta observar que o eventual prejuízo suportado pelo Estado em aguardar o deslinde de uma ação regressiva autônoma é bem inferior ao do indivíduo que tem sua pretensão jurisdicional retardada por razões alheias à sua pretensão em juízo.
Pelo exposto, é de se concluir pela melhor adequação do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consistente em não admitir a denunciação da lide do agente público nas ações de responsabilidade objetiva do Estado, por “tratar-se de duas atuações processuais distintas, que não devem conviver no mesmo processo, sob pena de contrariar-se a finalidade específica da denunciação da lide”.
4Denunciação do agente e responsabilidade subjetiva
A responsabilização do Estado não se limita ao art. 37, §6º da CF, o qual cuida apenas dos casos de responsabilidade objetiva, aplicável somente às condutas comissivas dos agentes públicos.
Não são raros, todavia, os casos em que a responsabilidade da Fazenda Pública pode ser subjetiva, sendo necessária a comprovação de culpa pela parte demandante. É o que ocorre com as condutas omissivas do Poder Público.
São pouquíssimos os autores que abordam o assunto da denunciação do agente público nas ações indenizatórias propostas contra o Estado, fundadas na responsabilidade subjetiva, daí sua maior importância neste estudo.
É sabido que, na responsabilidade subjetiva, cabe ao particular o ônus de provar o dolo ou a culpa (negligência, imprudência ou imperícia) na omissão do Estado, além do dano e do nexo de causalidade, para se ver indenizado pelo prejuízo que suportou em decorrência da falta do serviço.
Neste caso, haverá, desde o início, a necessidade de proceder a uma instrução probatória mais aprofundada na ação principal, que certamente será suficiente para o julgamento da denunciação da lide ao agente público, cuja instauração não irá gerar a agregação de elemento novo, e nem desencadear a necessidade de uma instrução que, inicialmente, seria desnecessária. Cássio Scarpinella Bueno (2003) comunga dessa opinião:
Embora a ação indenizatória proposta contra o Estado possa se basear unicamente na responsabilidade objetiva do Estado, isto não quer dizer que, necessariamente, toda ação indenizatória proposta contra o Estado tenha que se valer unicamente desta fundamentação. Destarte, toda vez que a ação indenizatória também se basear na existência de culpa, a denunciação ao agente público não destoará da mesma fundamentação da ação principal. Deve, pois, ser admitida nestes casos.
Observe-se que o fato de se tratar de aplicação da teoria da culpa anônima não implica na impossibilidade de exercício de direito de regresso pelo Estado contra o agente. Isso porque a teoria da culpa anônima se dirige apenas ao particular, no sentido de que não é necessário apontar uma omissão específica de um agente, podendo fazê-lo de forma genérica. Contudo, nada impede que este mesmo agente seja responsabilizado na denunciação.
Imagine-se a mesma hipótese já comentada do indivíduo que busca abrigo próximo a posto policial no intento de se livrar de assalto, mas que é assaltado na frente dos policiais, que observam a cena sem tomar nenhuma atitude. Nesse caso, não será necessário ao autor da ação principal indicar especificamente os policiais que se omitiram na situação. Poderá comprovar a omissão de forma genérica, o que não impede que outras informações (horário da ocorrência e escala de trabalho, por exemplo) conduzam à identificação dos agentes e possibilitem sua responsabilização pela via da denunciação da lide.
Percebe-se, em uma situação como a exemplificada acima, que os elementos necessários à denunciação foram todos trazidos pelo demandante em sua petição inicial, daí porque a instrução seria uma só e não haveria retardamento na prestação jurisdicional principal. Por conta disso é que Leonardo José Carneiro da Cunha (2012) resume com sabedoria:
Assim, em razão do princípio da economia processual e dada a evidência de que não haveria acréscimo de qualquer elemento novo à demanda, admissível, não restam dúvidas, a denunciação da lide pela Fazenda Pública nos exemplos já citados de responsabilidade subjetiva desta.
Por todo o exposto, e mesmo sem precedentes a respeito nas duas principais Cortes do país, pode-se afirmar, com fiel respeito aos fundamentos que sustentam o instituto da denunciação da lide, que se afigura plenamente possível a denunciação do agente público pelo Estado nas demandas indenizatórias fundadas na responsabilidade subjetiva.
5Conclusão
A presente pesquisa teve como objetivo principal a identificação das hipóteses em que seria admitida a denunciação da lide do agente público pelo Estado por danos causados a terceiros. Propôs-se não a tão somente a repetir e corroborar o que é discorrido pelas posições majoritárias da doutrina e jurisprudência pátrias, mas a apontar os acertos e falhas destas manifestações, e ainda, abordar a questão de uma maneira ainda não apreciada pela jurisprudência[3] e que injustamente não mereceu atenção de muitos doutrinadores.
Antes de analisar as possibilidades de denunciação da lide do agente público em cada modalidade de responsabilização (objetiva e subjetiva), foi apontada a posição da jurisprudência e a contradição no tratamento da questão pelo Superior Tribunal de Justiça.
Por fim, concluiu-se pela impossibilidade da denunciação do agente público na primeira hipótese (responsabilidade objetiva) e pela sua possibilidade quando se tratar de ação indenizatória fundada na responsabilidade subjetiva do Estado.
Notas
[1] Não se admite a denunciação da lide pretendida com base no inciso III do art. 70 do Código de Processo Civil se o seu desenvolvimento invocar fato novo ou fato substancial distinto do que foi veiculado na defesa da demanda principal, como no caso, não estando o direito de regresso comprovado de plano, nem dependendo apenas da realização de provas que seriam produzidas em razão da própria necessidade instrutória do feito principal. (STJ, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, REsp 191.118, RSTJ 160:306, ac. De 07/05/2002).
[2] Apud Celso Antônio Bandeira de Mello, 2009.
[3] Referência à hipótese de denunciação da lide do agente público fundadas na responsabilidade subjetiva do Estado, ainda não tratada pelo STF e STJ.
BIBLIOGRAFIA
BUENO, Cássio Scarpinella. Partes e Terceiros no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 10ª edição, São Paulo: Dialética, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009.