Desde o advento da Lei n. 9.840/1999, que incluiu o artigo 41-A (compra de voto) na Lei 9.540/1997 (Lei das Eleições), o processo eleitoral brasileiro sofreu benéficas e consideráveis mudanças.
Não obstante as valorosas alterações, que trataram de tipificar ilícito que há muito assolava o sistema eleitoral brasileiro, tal artigo trouxe consigo uma carga negativa.
No afã de cassar o suposto político corrupto, parte do Ministério Público e também aqueles legitimados a propor representações capituladas no artigo 41-A acabam por ultrapassar os limites jurídicos aceitáveis.
Sabe-se que a captação ilícita de sufrágio é muito difícil de ser provada, pois o ilícito, para acontecer, necessita do sujeito ativo (corrupto), do sujeito passivo (eleitor), da promessa ou entrega de algum beneficio, e por fim o pedido explícito ou implícito do voto.
Dadas tantas peculiaridades, a prova na maioria das vezes fica adstrita essencialmente ao depoimento testemunhal.
Ocorre que tem se admitido que o sujeito passivo (eleitor) sirva como testemunha nas representações por compra de voto.
Mas aí é que mora o perigo. Os eleitores que recebem benesses em troca de seu voto são, obrigatoriamente, coautores dos ilícitos, ao menos na esfera criminal.
Assim, considerando que no ordenamento jurídico brasileiro – e na maioria daqueles vigentes nos Estados Democráticos de Direito – impera a máxima de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si, o sujeito passivo, se ouvido como testemunha, não está obrigado a dizer a verdade, pois quaisquer depoimentos colhidos em sede de representação eleitoral poderiam servir para sua própria condenação ou para incriminá-lo em outras esferas.
Tanto a Constituição Federal (art. 5º, inciso LXIII) quanto o Código de Processo Penal (art. 186) desobrigam o réu a depor contra si mesmo.
Dado isso, é um contrassenso ouvir como testemunha alguém que, em sua essência, não poderia prestar o compromisso legal de dizer a verdade (art. 203, do CPP).
Nessa esteira já decidiram os Tribunais, dentre eles o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará:
HABEAS CORPUS . DELITO PREVISTO NO ARTIGO 7o, III, DA LEI 7.492/96. OITIVA DE CO-RÉU COMO TESTEMUNHA. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA.
1. A oitiva de co-réu na condição de testemunha, na mesma ação penal, não é possível ante a incompatibilidade entre o seu direito constitucional ao silêncio e à obrigação de dizer a verdade imposta a quem presta depoimento, nos termos do Código de Processo Penal.
2. Ordem denegada. (STJ - HABEAS CORPUS: HC 88223 RJ 2007/0180084-9)
ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2004. RECURSO ELEITORAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. QUESTÕES PRELIMINARES. CERCEAMENTO DE DEFESA. CONTRADITA DE TESTEMUNHAS. REJEIÇÃO. PROVA ILÍCITA. FILMAGEM SUB-REPTÍCIA. VIOLAÇÃO À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR. AUSÊNCIA DE IDONEIDADE PARA FORMAR O CONVENCIMENTO DESTE ÓRGÃO JULGADOR. PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO. APLICAÇÃO DA TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE VENENOSA. MÉRITO. ABUSO DO PODER ECONÔMICO. CORRUPÇÃO ELEITORAL. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. AUSÊNCIA DE PROVAS ROBUSTAS E INCONTROVERSAS. ÔNUS PROBATÓRIO DOS IMPUGNANTES. NÃO DEMONSTRADA A ILICITUDE. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA.
7. O julgador não pode ignorar o princípio segundo o qual o depoente tem o direito de silenciar sobre o que eventualmente o incrimine (nemo tenetur se detegere). Essa prerrogativa de estatura constitucional é assegurada não apenas ao indiciado ou ao réu, mas a qualquer pessoa, inclusive a testemunha em processo judicial, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
8. " A garantia contra a auto-incriminação se estende a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possa advir à imputação ao declarante da prática de crime, ainda que em procedimento e foro diversos". Destarte, se o objeto do processo é mais amplo do que os fatos em relação aos quais o cidadão intimado a depor tem sido objeto de suspeitas, "do direito ao silêncio não decorre o de recusar-se de logo a depor, mas sim o de não responder às perguntas cujas respostas entenda possam vir a incriminá-lo" (STF. HC 79244/DF. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJU 24.3.2000).(...)1
4. As demais provas decorrentes da gravação sub-reptícia também serão excluídas do acervo probatório, por aplicação da doutrina dos frutos da árvore venenosa, segundo o qual a prova ilícita originária contamina as demais provas dela decorrentes. (TRE-CE, RECURSO ACAO IMPUGNACAO MANDATO ELETIVO nº 11052, Acórdão nº 11052 de 21/06/2006, Relator(a) CELSO ALBUQUERQUE MACEDO, Publicação: DJ - Diário de Justiça, Tomo 124, Data 05/07/2006, Página 157 )
Imprescindível salientar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a sétima questão de ordem na Ação Penal n° 407, decidiu na mesma linha de raciocínio ora exposta:
"(...) O sistema processual brasileiro não admite a oitiva de co-réu na qualidade de testemunha ou, mesmo, de informante, como quer o agravante. Exceção aberta para o caso de co-réu colaborador ou delator, a chamada delação premiada, prevista na Lei 9.80711999. A hipótese sob exame, todavia, não trata da inquirição de acusado colaborador da acusação ou delator do agravante, mas pura e simplesmente da oitiva de codenunciado. Daí por que deve ser aplicada a regra geral da impossibilidade de o co-réu ser ouvido como testemunha ou, ainda, como informante. Agravo regimental não provido. (AP 470 AgR-sétimo/MG, Rei. Mm. Joaquim Barbosa, DJe 2.10.2009).
Assim, com essas considerações, conclui-se que apurar a compra de votos é de suma importância, e deve ser cada vez mais investigada, pelo Ministério Público, Partidos, Coligações e Candidatos, mas não se pode, com essa justificativa, permitir que pessoas autorizadas por Lei a mentir, caso queiram, sirvam como testemunhas em processos dessa espécie.