1 - ASPECTOS GERAIS DA DEMOCRACIA
Tratando-se do assunto Democracia, não há como deixar de fazer uma breve introdução de sua origem e seus aspectos históricos ao longo dos anos, mormente em seu surgimento na Grécia Antiga.
De início, cabe salientar que o vocábulo “Democracia”, comportou certa discussão acerca de seu real significado. Ao que consta, utilizado pela primeira vez por Heródoto, há mais de dois milênios, o seu real sentido vem sofrendo mutações ao longo da história.
Como bem assinala José DUARTE NETO[1],
a democracia não é um conceito estático, acabado, possível de ser transportado e exportado como modelo para as imperfeições dos diversos tipos de Estado. É um processo e, como processo, implica um constante evoluir, um permanente acrescer, uma mutação qualificada pela busca da auto determinação e liberdade do homem, ideal de submissão exclusiva às regras que tenham sido conjuntamente criadas, fruto da contribuição individual de cada qual no produto coletivo, por intermédio da participação política.
A dificuldade em se solidificar um conceito efetivamente uníssono, acerca do tema democracia, afetou a definição de muitos regimes de governo que se auto intitulavam democráticos ou não. Nesta difícil empreitada de se definir o real sentido de Democracia, Darcy AZAMBUJA[2] assevera que
Alguns a definem gramaticalmente, e então se percebe que ela nunca existiu e talvez não existirá jamais. Outras procuram descreve-la tal como ela é, e então verificam que houve e há tantas democracias quantos Estados a praticaram e praticam. E há os que a conceituam tal como devia ser, e nessa perspectiva a inteligência e a imaginação cria sistemas que vão do provável ou possível até magníficas ou atrozes utopias. Não nos devemos, porém, intimidar diante desse torvelinho ideológico; a observação e a reflexão podem nele descobrir tendências e valores que são realidades na evolução política dos povos. O pensamento de grandes homens do passado ensina muito, a ciência e a filosofia políticas deste século têm progredido bastante para oferecer possibilidades de entender como é e como poderá ser a Democracia.
Assim, verifica-se que a conceituação de Democracia sofreu e continua a sofrer modificações, que vão deste uma análise empírica do instituto até o campo filosófico, inclusive.
Parece, de qualquer modo, que o conceito de Democracia arquitetado por Lincoln, como sendo “O governo do povo pelo povo e para o povo”, aquele que merece maior adesão.
Neste lanço, José AFONSO DA SILVA[3] elaborou uma definição mais ampla, considerando a Democracia como sendo um “processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo”.
A democracia teve origem na Grécia Antiga, onde era exercida de forma direta pelos cidadãos reunidos na agora (praça pública) formando uma assembléia política denominada eclésia, para decidirem questões fundamentais da sociedade.
Entretanto, a democracia ateniense nunca foi exercida exclusivamente pelo povo, pois, a prerrogativa de participar das decisões políticas ficava concentrada estritamente na classe mais abastada, uma vez que os escravos, mulheres e crianças não participavam das assembléias políticas.
Jorge MIRANDA[4], ao esquematizar a estrutura essencial do Estado grego, arremata que
O contributo mais original da Grécia para o pensamento político-constitucional acha-se no período áureo da democracia ateniense — mas democracia distinta da actual, não só por ser outra a concepção de liberdade como por apenas terem direitos políticos os cidadãos de certo estrato da população, e apenas os homens, e eles o exercerem em governo directo [...]
De qualquer sorte, o modelo grego de democracia é, indubitavelmente, o termo inicial de toda e qualquer análise histórica e crítica sobre o tema.
Desde aquela época, o tempo cuidou de assentar, basicamente, três regimes constitucionais do exercício da democracia, a saber: democracia direita, representativa e a semi-direta.
A democracia direta é aquela exercida diretamente pelos cidadãos em assembléias, normalmente em praças públicas, com a participação do povo. Este modelo foi o utilizado (ou criado) pelo antigo Estado grego, mas pela forma como era exercido naqueles tempos guardava certa similitude com a aristocracia.
Modernamente este paradigma de participação popular não possui mais sustentáculos nos regimes constitucionais, com a exceção de poucos cantões na Suíça que ainda o utilizam.
Isso porque, antigamente, a extensão dos territórios, normalmente curta, permitia a forma direta de governo popular, notadamente no curto Estado grego, além de que poucos eram os cidadãos que tinham direito de voto nas assembléias. Tais fatores habilitavam, portanto, o seu exercício.
A democracia representativa ou indireta, nascida na Inglaterra, é exercida por mandatários, em nome do povo, que são eleitos ou nomeados, periodicamente, para tal mister. O tema sempre foi pautado por muitas discussões ao longo da história sobre a sua viabilidade na sua utilização em termos práticos.
German Jose Bidart CAMPOS[5] ataca severamente o sistema representativo. Para ele
La representación arranca del supuesto de que el pueblo es uma unidad susceptible de representación. Y la verdad es lo contrario: el pueblo reúne a uma pluralidad de intereses, de indivíduos y de sectores que carecen de homogeneidad, y que tampoco pueden adqurirla. El pueblo como coletividad, no solo no es uma persona moral ni jurídica, sino que está privado de esa unidade que se le atribuye. Y ello impide la representación del pueblo; porque se puede representar a una persona —física, moral o jurídica—, a una institución, a un grupo de intereses coincidentes, pero no a una pluralidad diversificada. No hay, pues, ni mandato ni representación del pueblo; el gobierno que ejercen uno o pocos —y que la teria representativa imputa y atribuye a la totalidad del pueblo— es solamente una ficción para salvar el supusto básico de que el pueblo se gobierna a sí mismo.
Dalmo de Abreu DALLARI[6] adverte que após a consolidação da ideia de Estado Democrático de Direito, três princípios passaram a nortear os Estados, como exigências da democracia, dentre eles o que denomina de “supremacia da vontade popular”. Para o autor,
A supremacia da vontade popular, que colocou o problema da participação popular no governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências, tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos sistemas eleitorais e partidários.
Rosseau e Montesquieu fizeram surgir duas linhas de pensamento a partir do século VIII. A polêmica travada entre os pensadores foi sintetizada com distinta clareza por DUARTE NETO[7], ao explicar que, verificadas as debilidades do regime constitucional representativo, duas linhas ideológicas surgiram, como apanágio às insuficiências desse sistema.
De um lado, Rosseau, como seu maior expoente, vislumbrava a democracia como arquétipo irrenunciável. As decisões políticas tomadas, quando não pelo povo diretamente, nada mais eram que simulacros. Entendia que a única forma adequada de superar o déficit de legitimidade acumulado com a prática representativa seria o retorno dos modelos de participação direta.
Em situação oposta, outra corrente de pensamento, também de não menor importância, tinha como arauto Montesquieu, que se resignava com a impossibilidade material de organização do povo em assembléia. Tinha o modelo representativo como insuperável conquista histórica, devendo ser exclusivamente aperfeiçoado, mas nunca abandonado.
2 - CONCEITO E EVOLUÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Conceitualmente a Democracia Participativa pode ser entendida como sendo uma espécie do gênero democracia, na qual o Estado proporciona aos seus cidadãos mecanismos de efetiva participação popular nas discussões políticas da sociedade a que estão integrados.
José Joaquim Gomes CANOTILHO[8] a conceitua como sendo “a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controlo crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos.”.
Essa “estruturação de processos” aludida pelo professor da Faculdade de Direito de Coimbra, caracteriza-se pelo exercício da cidadania pessoal, ou seja, pela participação direita do povo nas decisões fundamentais da vida socialmente organizada.
De acordo com AFONSO DA SILVA[9], “As primeiras manifestações da democracia participativa consistiram nos institutos de democracia semidireta, que combinam instituições de participação direita com instituições de participação indireta”.
Bem de se ver, portanto, que, do ponto de vista semântico, democracia participativa e democracia semi-direta são sinônimos, de modo a expressar a representação no poder por mandatários eleitos pelo povo, mas com a participação direta deste em alguns casos.
Como visto, Atenas foi o berço da democracia direta, contando com a participação dos grandes pensadores que viveram nessa época e que registraram para a eternidade os primeiros fundamentos da democracia.
Desde então, a democracia sofreu diversas mutações ao longo dos tempos, surgindo, desse modo, a concepção básica de democracia participativa. A estruturação normativa deste modelo democrático teve origem no século XIX, principalmente pela difusão dos sistemas de participação popular nas estruturas constitucionais da Suíça e dos Estados Unidos.
Napoleão I e seu sobrinho, Napoleão III, e mais recentemente Hitler, marcaram a utilização do plebiscito, mecanismo de exercício da democracia semi-direta, pois o fizeram para, de forma mascarada, consolidar-se no poder. A esta malfadada forma de utilização da democracia participativa, Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO[10] atribuiu o nome de “democracia plebiscitária” ou “cesarista” explicando que
Teoricamente o seu caráter democrático é sustentável: o poder vem do povo como vem do povo o dos parlamentares ou do presidente. Na realidade, porém, sempre foi ela uma ditadura disfarçada pelo chamamento das massas a referendar entusiasticamente as decisões do homem forte. Esse resultado é obtido de um lado pelo controle da propaganda que opera num único sentido, de outro pelo que os psicólogos chamam de ‘horror ao vazio’. Todo povo posto diante da escolha entre alguma ordem e o caos, a incerteza, opta, por essa ordem qualquer. Destarte, sempre diz sim ao césar. Por outro lado, em tal regime não há freios nem limites ao poder do chefe, já que o mesmo, pela invocação do voto das massas, pode a qualquer instante superar os existentes.
Após este nebuloso período, a democracia participativa ganhou novos rumos, principalmente pela maior conscientização política dos cidadãos, e vem, pouco a pouco, surgindo com uma nova tendência para as aspirações populares no mundo moderno, ante as deficiências do sistema representativo.
3 - A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NO ESTADO BRASILEIRO
Especificamente no Brasil, a implantação da democracia semi-direta desde a fase pré-constituinte é objeto de discussão para a sua positivação em nosso ordenamento jurídico. Contudo, as propostas de inclusão das formas de democracia semi-direta no Estado brasileiro raramente deixaram os debates e estudos de sua viabilidade para efetivamente serem colocadas em prática.
Nesta análise histórica da evolução da democracia semi-direta em nossa ordem jurídica, Maria Victória de Mesquita BENEVIDES[11] apresenta dados interessantes e que subsidiam sobremaneira a análise político-social dos mecanismos de soberania popular.
O primeiro instrumento de participação popular no Brasil de que se tem notícia é o da revogação dos mandatos políticos, em 1822, por ocasião da instalação do Conselho de Procuradores do Estado, onde se estabeleceu a possibilidade de perda do mandato dos eleitos por iniciativa de seus eleitores. Nessa mesma época surgiu também a ação popular, que também é considerado um tipo de participação direta do povo.
Em âmbito legislativo, no entanto, até a Constituição Republicana de 1891, não houve qualquer instituto de democracia semi-direta regulamentado no país. Pouco tempo depois, constituições dos Estados da Federação previram em seus textos a existência do veto popular.
A Constituição Federal de 1934, igualmente, não previa os instrumentos de democracia semi-direta, até que, com a promulgação da Carta de 1937, que inclusive deveria ter sido aprovada mediante plebiscito, mas não o foi, é que surgiu no texto constitucional a possibilidade de utilização do plebiscito em casos expressamente previstos.
Sustenta BENEVIDES[12] que
Os ventos democratizantes de 45, com a queda da ditadura Vargas, não se dirigiram para propostas inovadoras no campo da participação política. Pelo contrário. Instituições de democracia semi-direita — como o plebiscito — permaneceram contaminadas pela lembrança do ditador e da doutrina francesa sobre o cesarismo. Predominou, entre os liberais constituintes, o princípio da democracia representativa “pura”, repudiando-se, conseqüentemente, qualquer veleidade de mandato imperativo, ou recall.
Em 1963 houve a realização de um plebiscito, oriundo do golpe de Estado levado a efeito contra o então Presidente da República Jânio Quadros, com supedâneo na Emenda Constitucional nº 4, de 02 de setembro de 1961 que instituiu o parlamentarismo no Brasil. Para manutenção (ou não) do novo sistema de governo o texto da Emenda previa fosse realizado plebiscito popular.
Desde aquela época, alguns projetos que regulavam o exercício da democracia semi-direta foram apresentados no Congresso Nacional, sem que obtivessem êxito, contudo.
As discussões políticas acerca da implantação dos mecanismos de participação popular começaram a ganhar força por ocasião da instalação da Assembléia Constituinte em março de 1987[13].
Diversos juristas apresentaram projetos em que o povo teria, de fato, participação nas decisões políticas do país. Dentre eles destacaram-se José Afonso da Silva, que apresentou projeto no qual havia a previsão do referendo, iniciativa popular, o veto popular e a revogação dos mandatos, Fábio Konder Comparato e Dalmo de Abreu Dallari.
No entanto, fortes discussões sobre a participação direta do povo nas questões legislativas principalmente foram objeto de duras críticas, de modo que, embora todo o esforço envidado pelos constitucionalistas da época, a verdade é que muitos dos projetos apresentados chegaram, no máximo, a serem aprovados no primeiro turno do Congresso Constituinte.
O jurista Paulo Bonavides[14], árduo defensor da democracia participativa, fornece elementos concretos acerca da viabilidade, em nosso sistema constitucional, desse regime. Segundo ele
No Direito Constitucional positivo do Brasil já existe um fragmento normativo de democracia participativa; um núcleo de sua irradiação, um germe com que fazê-la frutificar se os executores o operadores da Constituição forem fiéis aos mandamentos e princípios que a Carta Magna estatuiu.
Com efeito, essa democracia ore em fase de formulação teórica, e que é, num país em desenvolvimento como o nosso, a única saída à crise constituinte do ordenamento jurídico, já se acha parcialmente positivada, em termos normativos formais, no art. 1º e seu parágrafo único, relativo ao exercício direito da vontade popular, bem como no art. 14, onde as técnicas participativas estatuídas pela Constituição, para fazer eficaz essa vontade, se acham enunciadas, a saber: plebiscito, o referendum e a iniciativa popular.
Em síntese, a Constituição de 1988 adotou cinco mecanismos de exercício de participação popular: o sufrágio universal, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular e a ação popular, assim previstos em seu texto:
Art. 5 [...]
LXXIII. qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
[...]
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.
Importante salientar, desde logo, que tais institutos, tal como concebidos na sistemática atual, constituem-se mecanismos de democracia semi-direta e não somente direta, como defendem alguns autores.
4 - PONTOS NEGATIVOS E POSITIVOS DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Nosso sistema de governo, como é de conhecimento, rege-se, em quase sua totalidade (ao menos do ponto de vista pragmático), amparado pela democracia representativa. Trata-se de regime onde a participação do povo é indireta, periódica e regida por procedimento técnico e formal. Os “representantes do povo” exercem o poder por meio do mandato representativo.
De acordo com AFONSO DA SILVA[15],
“O mandato representativo” é criação do estado liberal burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade, e mais uma forma de tornar abstrata a relação povo-governo. Segundo a teoria da representação política, que se concretiza no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual; é geral, livre, irrevogável em princípio, e não comporta ratificação dos atos do mandatário.
MIRANDA[16] apresenta um conceito esclarecedor acerca do tema. Aduz o professor lusitano que
Governo representativo significa a forma de governo em que se opera uma dissociação entre a titularidade e o exercício do poder — aquela radicada no povo, na nação (no sentido revolucionário) ou na colectividade, e este conferido a governantes eleitos ou considerados representativos de toda colectividade (de toda a colectividade, e não de estratos ou grupos como no Estado estamental).
A base fundamental da representação radica na idéia expostos por Montesquieu de que os homens em geral não possuem capacidade para apreciar e decidir problemas de ordem política. Quando de sua implantação, o sistema representativo tinha caráter aristocrático, ou seja, a os governantes, que faziam parte de uma minoria, eram também escolhidos por uma minoria dentre o povo, por meio do sufrágio censitário, ficando excluídos os pobres. Nesse ponto, aliás, o art. 94, I, da Constituição de 1824 trazia consigo essa exigência. Note-se:
Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
Após várias transformações no processo representativo, surgiram no século XX os partidos políticos que, atualmente, são o canal oficial por onde se exprime a opinião pública.
Várias críticas tendo sido feitas pelos estudiosos sobre as inconveniências causadas pelos partidos na evolução do processo democrático, propriamente dito. Os partidos, normalmente, conscientes do próprio interesse eleitoral, estabelecem seu programa em torno de generalidades e questões de princípio que agradam e atraem os eleitores menos politizados, e nunca em função de opções que desagradam e geram oposição. Daí por que eles (os partidos) dão preferência a questões abstratas e ideológicas, as quais, na maioria das vezes, nada significam para a solução de problemas concretos[17].
Bem de se ver, portanto, que o sistema representativo, desde muito, não atende, com precisão, os anseios populares. AFONSO DA SILVA[18] elucida a questão:
Há muito de ficção, como se vê, no mandato representativo. Pode-se dizer que não passa de simples técnica de formação dos órgãos governamentais. E soa a isso se reduziria o princípio da participação popular, o princípio do governo pelo povo na democracia representativa. E, em verdade, não será um governo de expressão da vontade popular, desde que os atos de governo se realizam com base na vontade popular, desde que os atos de governo se realizam com base na vontade autônoma do representante. Nesses termos, a democracia representativa acaba fundando-se numa idéia de igualdade abstrata perante a lei, numa consideração de homogeneidade, e assenta-se no princípio individualista que considera a participação, no processo do poder, do eleitor individual no momento da votação[...]
Além disso, a figura do mandato político tem se mostrado alheia ao seu verdadeiro mister, qual seja, atender com eficácia os anseios populares na busca do bem comum. Essa crise de “identidade” causa sérios questionamentos acerca da legitimidade desse sistema.
Surge, pois, a democracia participativa, como elemento fundamental para balancear o uso do poder estatal. Como dito alhures, a própria Constituição Federal de 1988 contempla, expressamente, a adoção desse regime.
No entanto, há os que apontam os aspectos negativos da participação popular. Justificam os adeptos dessa corrente que o povo seria incompetente para decidir questões que não entendem, pois dada a sua ignorância, não teriam a capacidade escolher o que de melhor para a nação.
BENEVIDES[19] fornece importantes subsídios acerca da discussão deste tema. De acordo com ela, dentre os argumentos negativos à instituição da democracia participativa, costuma-se destacar os seguinte:
· o povo é incompetente para votar em questões que “não pode entender”; é incoerente em suas opiniões (quando as tem) e é, ainda, politicamente irresponsável, nada lhe sendo cobrado;
· o povo tende a votar de forma mais “conservadora” e, quando muito solicitado, torna-se “apático” para a participação política;
· o povo é mais vulnerável, do que seus representantes, às pressões do poder econômico e dos grupos “superorganizados”;
· o povo é dirigido pela “tirania da maioria” e dominado pelas “paixões”.
Para rebater essas críticas, os defensores da democracia participativa sustentam o ponto central que habilita o povo a decidir reside exatamente na ampla discussão que lhe deve ser oferecida sobre a questão a ser decidida. Os meios de comunicação em massa devem estar preparados para veicular e incentivar as discussões envolvendo as questões submetidas ao exame popular.
No mesmo passo, AZAMBUJA[20], com precisão, expende que povo seria capaz de decidir questões de seu interesse tanto quanto os governantes. Para o autor
A verdade que a capacidade do povo para bem decidir as questões que o regime democrático lhe apresenta, não é maior nem menor do que as dos melhores governantes para bem desempenhar as complexas e inumeráveis atribuições do governo. Se se fosse julgar pelos erros cometidos e pela possibilidade de cometê-los, nenhum homem poderia governar.
DALLARI[21] entende que a democracia implica no que ele chama de “autogoverno”, exigindo que os próprios governados decidam sobre questões fundamentais do Estado. Adverte, ainda, na mesma linha de pensamento de Azambuja, de que o argumento de que o povo é incapaz de avaliar qual decisão seria mais coerente para ele mesmo deve se rechaçada, pois, nesse caso, há o pressuposto de que alguém está decidindo se a vontade emanada do povo é boa ou não. E arremata:
Basta atentar para o fato de que, qualquer que seja a decisão popular, sempre haverá grupos altamente intelectualizados e politizados que irão considerá-la acertada, como haverá grupos opostos, também altamente qualificados, que a julgarão errada.
De fato, a democracia representativa pura não encontra mais tanta legitimidade no Estado Democrático de Direito brasileiro. Diante desse quadro, resta a necessidade de se criar novos mecanismos para efetiva contribuição popular nas decisões políticas do país, extirpando, por conseguinte, vícios irreparáveis advindos do sistema representativo.