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A banalização da promoção por ato de bravura e sua repercussão deletéria na Polícia Militar de Alagoas

28/01/2013 às 17:39
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A promoção por ato de bravura se desvela no reconhecimento do Estado em contraprestação a uma conduta exemplar, dispensada ao policial militar, mas a obsessão em alcançar a tão sonhada promoção pelo caminho mais curto conduz tal figura jurídica à vulgarização irresponsável.

A atividade típica da polícia militar consiste no policiamento preventivo ostensivo fardado, visando à preservação da ordem pública, na forma do artigo 144, § 5°, da Constituição Federal. Nesses termos, juntamente com a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal e as Polícia Civil dos Estados, os militares estaduais compõem o conjunto de órgãos responsáveis pela segurança pública.

Não significa isso dizer que não tenha a Polícia Militar outras atribuições previstas na ordem jurídica pátria, as chamadas atividades atípicas, secundárias. A própria Carta Política, ainda que reflexamente, destina a essa força a incumbência de instaurar inquérito policial militar (artigo 144, § 4°), visando à apuração de crimes militares, e também a instauração de processos administrativos disciplinares quando há indícios de transgressões disciplinares (artigo 125, § 5°), isso sem falar que a legislação infraconstitucional prescreve em detalhes a sua atuação.

De mais a mais, cumpre pontuar que, mesmo não prevista na Constituição, é imperioso lembrar ainda outra atividade. Vale dizer, a possibilidade de instauração de Conselho Especial, na hipótese de investigação para avaliar se o policial militar praticou, ou não, ato de bravura com vistas à respectiva promoção.

Não é demais acrescentar que em todas as polícias militares do Brasil, inclusive as Forças Armadas, têm nas correspondentes legislações hipótese para essa modalidade de promoção.   No caso da PMAL, cuida da matéria o artigo 14, § 2°, da Lei 6.514/04, sendo este o objeto do presente ensaio.

Nessa perspectiva, iniciando o estudo do que seja o instituto do ato de bravura, antes de tudo, deve-se analisar o artigo 13 da espécie normativa em comento, in verbis:

Art. 13. A promoção por bravura, forma excepcional de promoção, resulta de atos incomuns de coragem e audácia, que ultrapassando os limites normais de cumprimento do dever, representam feitos indispensáveis ou úteis às operações militares, pelos resultados alcançados ou pelo exemplo positivo deles emanados. 

Conforme estabelece o preceptivo acima, a conduta do policial militar albergado por esta modalidade de promoção - conduta esta que deve reputar-se excepcional - consiste na prática de atos incomuns de coragem e audácia, que, ultrapassando os limites comuns, normais do cumprimento do dever legal, caracterizam feitos indispensáveis às atividades policiais militares. Ou seja, cuida-se de atos que superem – e muito – aqueles praticados pelo policial militar nas suas atividades cotidianas, a ponto de destacá-lo dos demais.

Em verdade, a expressão “atos incomuns de coragem e audácia” trata-se de conceito jurídico indeterminado, expressão fluida, porosa, aberta, pois nem a Lei 6.514, de 23 de setembro de 2004, nem o Decreto nº 2.356, de 14 de dezembro de 2004, definiram os seus contornos, o que torna extremamente difícil a sua delimitação por parte do intérprete, pois o administrador que aplicar a regra em alusão deve estar adstrito aos institutos da oportunidade e conveniência da Administração Pública. Vale dizer, mérito administrativo, cuidando-se, portanto, de ato discricionário.

E, no que tange à discricionariedade, Celso Antônio Bandeira de Mello, magistralmente, assim a conceitua:

Discricionariedade é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.[1]

Aliás, no respeitante a atos incomuns, a discricionariedade está presente em todas as legislações castrenses, quer nas Forças Armadas ou nas Forças Auxiliares. Nenhuma espécie normativa, seja lei, decreto ou portaria pontua em que consistem atos incomuns de coragem e audácia, hipóteses que deixam grande margem para o administrador decidir, dentro, é claro, do que estabelece a lei. Nesta medida, há situações em que é bem evidente classificar se tal ou qual conduta está de acordo ou não com a previsão legal. Entretanto, existem outras que se encontram numa região cinzenta, obscura, de difícil delimitação.

Sobre este ponto, é importante, mais uma vez, destacar o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, que bem aclara a respeito:

Se é certo que não se porá em dúvida a presença de tal atributo em alguns casos muito silentes, e se é segura a negação de sua existência em outros tantos assim evidentes, entre as duas situações paradigmáticas vai mediar uma zona de incertezas.[2]

Em casos tais - leciona o administrativista -  “não há negar incumba à Administração certa discricionariedade, alguma liberdade, em situações quejandas.”[3] É cediço que a discricionariedade existe em razão de constar na legislação conceitos jurídicos indeterminados, abertos, que facultam ao administrador certo poder de discricionariedade para a resolução das contendas existentes no caso concreto, pois é humanamente impossível  o legislador prever todas as hipóteses possíveis. Em virtude disso, são utilizadas as expressões notório saber jurídico, reputação ilibada, conduta escandalosa, proceder de forma desidiosa, conduta irregular, honra pessoal, pundonor policial militar, decoro da classe, sentimento do dever, dentre outras.

Sobre conceito jurídico indeterminado, é interessante o escólio de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

A expressão conceito jurídico indeterminado, embora bastante criticável, ficou consagrada na doutrina de vários países, como Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e, mais recentemente, no Brasil, sendo empregada para designar vocábulos ou expressões que não têm um sentido preciso, objetivo, determinado, mas que são encontrados com grande frequência nas normas jurídicas dos vários ramos do direito. Fala-se em boa-fé, bem comum, conduta irrepreensível, pena adequada, interesse público, ordem pública, notório saber, notória especialização, moralidade, razoabilidade e tantos outros.[4]

Conforme se verifica, são locuções que carecem de sentido a ser dado pelo aplicador da norma no caso concreto e isso, por óbvio, pode mudar no curso do tempo, pois é bastante razoável que o conceito de moralidade, por exemplo, não seja o mesmo de sessenta ou cem anos atrás. Trata-se de fluidez da semântica inserida em determinadas normas com o fito de mantê-las sempre atuais. É o que ocorre, também, com as expressões audácia e coragem, previstas na nossa Lei de Promoção.

A todas as luzes, é perceptível que muitas promoções por ato de bravura foram concedidas em virtude da prática de atos que não estão dentro da órbita do que se pode considerar audácia, coragem, que ultrapassem os limites normais de cumprimento do dever. Cabe, in casu, à Comissão de Promoção de Praças, após investigação por meio do Conselho Especial, delimitar o alcance dessas expressões indeterminadas, julgando se se trata de conduta ensejadora da promoção por ato de bravura, ou não, lembrando que o limite a esse juízo deve ser imposto pelo princípio da razoabilidade, da proporcionalidade, pois, caso não observados, pode o ato ser fulminado pelo Poder Judiciário.

Neste sentido, alguns questionamentos devem ser feitos. Pergunta-se: O PM que adentra numa casa em chamas para salvar um indivíduo estaria cumprindo normalmente a sua missão ou tal ato ultrapassa os limites normais do seu dever institucional? E o policial militar que, estando no seu devido descanso, é acordado por vizinhos clamando por ajuda, e, após lutar contra o invasor da residência alheia, prende-o, mesmo pondo em risco a própria vida? E se dois policiais militares depararem-se com um indivíduo que se encontra no terraço de um prédio de cem andares, prestes a cometer suicídio, segurando tão somente nas grades de proteção, do lado externo, e apenas um dos milicos o segura para que não ocorra a tragédia, sem definitivamente colocar em perigo a sua vida? E o outro policial que sequer tocou no suicida?

Indaga-se: são atos comuns no cotidiano do policial militar ou são atos meritórios, atos de audácia, denodo, coragem acima da prática do policial médio, comum? Estaria o Comandante Geral afrontando o princípio da razoabilidade/proporcionalidade, ao não conceder promoção nesses casos? Se houver afirmação no sentido de que se tratam de atos incomuns de coragem e audácia, sem dúvidas, o Diário Oficial do Estado não terá espaço para tantas promoções por ato de bravura, porquanto, se se verificar as estatísticas, não é incomum, no dia-a-dia, o policial deparar-se com situações semelhantes, e nem por isso requer a dita promoção por questões lógicas e, notadamente, éticas. São situações concretas eleitas capazes de promover seus protagonistas se não houver a análise devida em cada caso e a observância dos princípios acima elencados.    

Nesta discussão, é preciso destacar o princípio da proporcionalidade. Este postulado de status constitucional, ao contrário do que muitos pregam, não se confunde com o princípio da razoabilidade. Trata-se aquele de uma das facetas deste. Importa acrescentar que o princípio da proporcionalidade deve estar presente em todo e qualquer ato administrativo.

Como é cediço, a Constituição Federal não o prevê expressamente, cuidando-se de um princípio constitucional implícito, mas, de acordo com a doutrina e jurisprudência pacíficas, está inserido materialmente no devido processo legal.

Assim, para que esse princípio se realize plenamente é preciso que estejam presentes três subprincípios, quais sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Nesse passo, existindo a ausência de qualquer deles, resta desnaturada a aplicação do princípio.

Em síntese apertada, a adequação exige que haja compatibilidade entre o fim pretendido pelo ato ou pela norma produzida e os meios utilizados pelo agente ou enunciados pela norma em prol do interesse coletivo. Ou seja, sendo inidôneo para atingir o resultado a que se visa, tanto o ato praticado quanto a norma devem ser afastadas. É o vínculo de conformidade existente entre o fim desejado e os meios utilizados. É uma relação de cumplicidade entre o que se faz e o que se quer.

O subprincípio da necessidade tem como objetivo evitar que medidas danosas ao interesse público sejam efetivadas, de modo que se estabeleçam parâmetros para a sua execução e, por conseguinte, alcance os fins desejados. Na hipótese de promoção por ato de bravura, impõe-se que o ato seja indispensável e o menos gravoso para a Administração Pública, para o interesse coletivo. É que para o alcance dos fins propostos não foi possível meio menos gravoso que o indeferimento da promoção. Pergunta-se: a promoção do interessado é indispensável e a menos gravosa para a Administração? Certamente que não. Ao contrário, é a mais gravosa, pois consistirá num precedente nocivo à Administração Pública.

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Por fim, o subprincípio da proporcionalidade stricto sensu, o qual autoriza a realização de um equilíbrio lógico, envolvendo o meio utilizado e o fim desejado. No caso específico, o meio utilizado é o indeferimento do pleito e o fim desejado é o interesse público.

Willis Santiago Guerra Filho, apud BARROSO, condensa os três subprincípios afirmando: “Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e, finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens”.[5]

Nessa medida, em tais situações, a decisão da Comissão de Promoção de Praças pelo indeferimento da promoção do interessado, ao que parece, reputa-se proporcional na medida em que se torna adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.

Em resumo, deve-se analisar, antes de tudo, a demonstração de coragem, audácia e a presença de qualidades morais extraordinárias. Se a conduta do agente colocou em risco incomum sua própria vida, ao que parece, pode ser uma hipótese que enseje a discutida promoção. Apenas para ilustrar, seria o caso, verbi gratia, do policial militar que, ao vir um indivíduo se afogando, sem pensar duas vezes, mesmo não sabendo nadar e sem equipamentos, salva a vítima de uma morte já prenunciada.

Sobre o instituto, não é outro o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO INOMINADO -ART. 557, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - APELAÇÃO CIVIL -AÇÃO ORDINÁRIA DE REVISÃO DE ATO ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO MILITAR -PROMOÇÃO POR SUPOSTO ATO DE BRAVURA -MÉRITO ADMINISTRATIVO - IMPOSSIBILIDADE DE APRECIAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO.

1. A rigor, cabe à autoridade policial-militar, no exercício de suas atribuições legais, reconhecer, ou não, se determinado ato, praticado por policial-militar, pode ser considerado, ou não, de bravura, na forma da lei. 2. Somente poderá o Poder Judiciário imiscuir-se no mérito dessa deliberação nos casos em que a Administração Pública extrapolar os limites da discricionariedade administrativa, violando a legislação aplicada ao caso concreto, em inobservância ao princípio da legalidade. 3. Nega-se provimento a agravo interposto com fundamento no art. 557, § 1º, do Código de Processo Civil, quando a decisão monocrática hostilizada tiver sido prolatada nos termos do mesmo art. 557, caput, do Estatuto Processual Civil". No recurso extraordinário, interposto com fundamento no art. 102, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, aponta-se violação aos arts. 1º, 3º e 5º, da Carta Magna. Os recorrentes alegam que participaram da mesma operação que deu ensejo à promoção por ato de bravura de outros militares, todavia não foram contemplados pela benesse, o que fere o princípio da isonomia. Decido. O acórdão recorrido, ao manter a decisão monocrática, consignou que, à luz da legislação aplicável ao caso:"O ato de bravura é um ato excepcional, não comum, que não se confunde com os (atos) ordinários enfrentados pelos policiais militares em seu dia a dia de trabalho, exigindo sua caracterização (bravura) apreciação subjetiva, segundo conceitos de valor, razão pela qual a norma legal confere à Administração Pública (Comandante Geral da Polícia Militar) a tarefa de dizer se o ato praticado pelo policial militar encarta-se, ou não, no conceito indeterminado de bravura estabelecido em lei". No caso, não se verifica violação ao princípio da isonomia, uma vez que a concessão da promoção por ato de bravura está submetida à avaliação discricionária da Administração Pública quanto aos atos individuais de cada servidor. Nesses termos, o acórdão recorrido prestigiou, ao não adentrar o mérito administrativo, o princípio da separação dos Poderes e os demais dispositivos tidos por violados. Ainda que assim não fosse, para aferir se os atos praticados pelos recorrentes foram realmente idênticos ou equivalentes aos realizados pelos outros militares que teriam sido promovidos, seria necessário o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, providência vedada em sede de recurso extraordinário pela Súmula 279 desta Corte. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso. (arts. 21, § 1º do RISTF e 557 do CPC). Agravo de Instrumento n° 812304/ES. STF. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 31.03.2011. DJe n° 065. Divulgado em 05.04.2011. Publicado em 06.04.2011 – sem destaque no original)

Na mesma trilha segue o Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. POLICIAL MILITAR. PROMOÇÃO POR ATO DE BRAVURA. ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO ANALISAR O MÉRITO ADMINISTRATIVO. CORREÇÃO DE ILEGALIDADE. PODER-DEVER DA ADMINISTRAÇÃO. SÚMULA 473/STF. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. RECURSO DESPROVIDO.

I - A concessão da promoção por ato de bravura está adstrita à discricionariedade do administrador, estando o ato administrativo submetido exclusivamente à conveniência e oportunidade da autoridade pública, tendo em vista que a valoração dos atos de bravura não ocorrem por meio de elementos meramente objetivos. Precedentes. II - Consoante entendimento desta Corte, é defeso ao Poder Judiciário adentrar ao mérito administrativo de ato discricionário, a fim de aferir sua motivação, somente sendo permitida a análise de eventual transgressão de diploma legal. III - Tratando-se de revisão de ato ilegal, ancorada no poder de autotutela, poderia a Administração alterar o entendimento anteriormente proferido, denegando a promoção por ato de bravura. Aplica-se, à espécie, o entendimento consolidado na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal: "A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos." IV - Recurso conhecido e desprovido. (Recurso em Mandado de Segurança n° 19.829. STJ. Quinta Turma. Relator: Ministro Gilson Dipp. Julgado em 03.06.2006 – com destaque no original).

Vê-se que a jurisprudência dos tribunais superiores são assentes no respeitante à promoção por ato de bravura, no sentido de que o ato deve estar vinculado à discricionariedade da Administração Pública, submetendo-se exclusivamente à conveniência e oportunidade do administrador, in casu, do Comandante Geral, posto que se trata de mérito administrativo.

Efetivamente, o ato de bravura consiste na ação praticada, voluntária e conscientemente, com indubitável risco de vida e cujo mérito ultrapasse em valor, audácia e coragem a quaisquer outras considerações. Além disso, deve ser um ato desprovido de qualquer interesse, senão aquele destinado ao salvamento da vítima, pois bem se sabe que já houve situações em que policiais militares até disputaram sobre quem deveria “salvar a vítima” com o fito de requerer a promoção.

Sem qualquer sombra de dúvidas, o que está existindo na PMAL é uma verdadeira indústria da promoção por ato de bravura. Existem até fatos jocosos. Tem-se notícia de que, por exemplo, policial militar que foi promovido ao grau hierárquico subsequente, é claro, quando no momento da ocorrência tomou a frente do subordinado para salvar o suicida. E tal obsessão para lograr o grau hierárquico subsequente por meio do ato de bravura, efetivamente, está vulgarizando o instituto, criado para atender àquelas situações realmente excepcionais.

Nunca é demais lembrar que não é qualquer ato de salvamento à vida que ensejará direito subjetivo à promoção do policial militar, pois se trata de profissão que labuta constantemente diante do perigo, não havendo falar em direito de promoção se tal exposição é intrínseca às suas atividades. É dizer, ainda que com o perigo da própria vida, na preservação da ordem pública, tal gravosidade está inserida nos deveres do policial militar, consoante dicção do artigo 31, inciso II, da Lei 5.346/92, senão vejamos:

Art. 31.  São deveres dos militares aqueles emanados de vínculos racionais e morais que os ligam à comunidade e a segurança, compreendendo essencialmente:

I - dedicação integral ao serviço policial militar;

II - fidelidade à instituição a que pertence, mesmo com o risco da própria vida;

III - culto aos símbolos nacionais e estaduais;

IV - probidade e lealdade em todas as circunstâncias;

V - disciplina e respeito à hierarquia;

VI - rigoroso cumprimento das obrigações e ordens;

VII - tratar o subordinado com dignidade e urbanidade. (Sem destaque no original)

Com efeito, qualquer policial militar, ao incorporar à nossa instituição, é obrigado, em ato solene na ocasião de sua formatura, a prestar o correspondente juramento. Esse ato é de tanta relevância que a conclusão do curso de formação está condicionada a tal compromisso, sob pena de o PM não obter o título.

Sem embargo de opiniões em contrário, é bem de ver que colocar em risco a própria vida, no momento em que efetua prisões, pratica um crime de homicídio sob o pálio de uma das excludentes de ilicitude, dentre outras condutas legalmente permitidas, mesmo estando em folga, representa sacrifício razoável a ser exigido do policial militar, pois existe para a nossa categoria o dever profissional de enfrentar situações perigosas. Do contrário, qualquer ato que o policial praticar, diverso dos demais, seria ofertado com a promoção por ato de bravura, o que tornaria o instituto por demais banalizado.

Nessa linha de entendimento, para se pensar em ato de bravura, deve-se antes estar presentes no ato do policial militar dois substantivos: audácia e coragem. A propósito, no que se refere a esses dois vocábulos, é importante buscar os ensinamentos do lexicógrafo Antônio Houais, verbis:

Audácia s.f. 1. tendência que dirige e incita o indivíduo a, temerariamente, realizar ações difíceis, desprezando obstáculos e situações de perigo; ousadia, intrepidez, denodo. 2. Qualidade de quem ou do que se caracteriza pela inovação, pelo arrojo, em oposição ao já estabelecido e aceito. [...] p. 342  [...].[6]   

Coragem s.f. 1. Moral forte perante o perigo, os riscos; bravura, intrepidez, denodo. 2. Firmeza de espírito para enfrentar situação emocionalmente ou moralmente difícil. 3. Qualidade de que tem grandeza de alma, nobreza de caráter, hombridade. 4. Determinação no desempenho de uma atividade necessária; zelo, perseverança, tenacidade (desde jovem, revelou c. no trabalho). 5. Capacidade de suportar esforço prolongado; paciência. [...][7]

Com as definições acima não é necessário maior esforço cognitivo para se concluir que não pode ser eleito como de bravura o ato do policial militar que se insere nas atividades do seu cotidiano, tais como salvar o indivíduo que está prestes a suicidar-se sem por a própria vida em risco, evitar que o cidadão seja vítima de roubo, etc, sobretudo por agir em virtude de mandamento constitucional, destacado especialmente no artigo 144, § 5°, da Constituição Federal. Infelizmente, é o que está ocorrendo na PMAL. Qualquer ato que o militar estadual julgue ser de bravura, já requer a promoção. E, quando o pedido é indeferido na esfera administrativa, ingressa imediatamente com ação em juízo. E, na maioria das vezes, alguns magistrados deferem a liminar ou a tutela antecipada e, por conseguinte, confirma a decisão interlocutória em sede de sentença, em nítida invasão do mérito administrativo. Assim sendo, o administrador está agindo dentro do poder discricionário que lhe é cometido e sem lesar normas constitucionais, especificamente o princípio da proporcionalidade, consoante se observa nos arestos acima, porquanto o ato praticado se encontra ínsito naqueles executados no cotidiano.

E isso traz repercussão danosa no âmbito da Corporação na medida em que, surgindo uma ocorrência, sobretudo aquelas que envolvem suicídio – diga-se de passagem, as mais preferidas - aqueles policiais não tão despretenciosos por essa modalidade de promoção travam verdadeira guerra para quem chegar primeiro ao local do evento, o que reflete, inevitavelmente, no serviço. Além disso, determinadas promoções causam insatisfação na tropa. É que, como dito, por se tratarem, na quase totalidade dos casos, de atos comuns, segundo a concepção da Comissão de Promoções de Oficiais e Praças – e ao que se percebe tal entendimento é bastante coerente -, a Administração não está deferindo a correspondente promoção. A partir daí, alguns policiais militares a conseguem judicialmente, outros, não, causando, inclusive revolta.

Portanto, se por um lado a promoção por ato de bravura se desvela no reconhecimento do Estado em contraprestação a uma conduta exemplar, valorosa, típica de herói, dispensada ao policial militar, seja Oficial ou Praça, de outra banda, a obsessão em alcançar a tão sonhada promoção pelo caminho mais curto conduz tal figura jurídica à vulgarização irresponsável, cujos efeitos deletérios atingem a Polícia Militar e, principalmente, a sociedade.


REFERÊNCIAS

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 963.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na constituição de 1988, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

HOUAIS, Antônio.Dicionário Houais da Língua Portuguesa, 1ª ed.. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

STF - AI 812304 – ES – Rel. Min. Gilmar Mendes - DJ 05.04.2011.

STJ - RMS 19829 - PR – Rel. Ministro Gilson Dipp - DJ 30.10.2006.

Notas

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 963.

[2] Op. cit., p. 959.

[3] Op. cit., p. 959.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 97.

[5] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 229.

[6] HOUAIS, Antônio.Dicionário Houais da Língua Portuguesa, 1ª ed.. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 342.

[7] Op. cit., p. 834.

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Sobre o autor
Moab Valfrido da Silva

Major do Quadro de Oficiais Combatentes da Polícia Militar do Estado de Alagoas. Graduado em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar Senador Arnon de Mello - CFO (APMSAM - 1991 a 1993). Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais - CAO (APMSAM - 2003). Curso Superior de Polícia - CSP (APMSAM - 2011). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (2001 a 2005). Pertencente à Corregedoria Geral da PMAL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Moab Valfrido. A banalização da promoção por ato de bravura e sua repercussão deletéria na Polícia Militar de Alagoas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3498, 28 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23566. Acesso em: 24 nov. 2024.

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