4 A QUESTÃO DA RESERVA DE VAGAS, NOS CONCURSOS PÚBLICOS, AOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS
O ordenamento jurídico pátrio prevê reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais nos concursos públicos para ingresso nos órgãos da Administração Pública Direta e Indireta. Tal percentual, nos concursos públicos, deve ser reservado aos portadores de necessidades especiais, o que é garantido pela Constituição Federal, especificamente no Art. 37, VIII, que assim preleciona: “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.
A Lei n. 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, em seu Art. 5º, § 2º, diz que esse percentual será de até 20%, senão vejamos a redação do citado dispositivo legal: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”.
Ocorre que, em concursos realizados hodiernamente, os órgãos da União, bem como das autarquias e fundações públicas, vêm reservando percentual superior ao acima citado (20%), o que vem a levantar controvérsia no mundo jurídico, por ferirem princípios constitucionais, bem como prejudicarem os candidatos não portadores de necessidades especiais que muitas vezes são preteridos em face de tal entendimento.
Não obstante o Estado deva adotar medidas para atender a parcelas menos privilegiadas da população (as chamadas “ações afirmativas”) - como, no caso, os portadores de necessidades especiais, justamente pelo fato de estes últimos encontrarem maiores dificuldades para conseguir vagas no concorrido mercado de trabalho – é notório o fato de que em alguns casos a reserva de vagas vem sendo feita de forma desproporcional.
Nesses casos, não está a Administração Pública igualando os desiguais na medida de suas desigualdades, conforme mandam os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e razoabilidade, muito pelo contrário.
Atentos a tal situação, nossos Tribunais vêm aplicando entendimentos diversos sobre o tema, causando controvérsia no mundo jurídico.
Dada a importância do tema, na obra Direito Administrativo Descomplicado, os ilustres autores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo assim discorrem sobre o tema:
Outra situação que pode causar alguma perplexidade, já enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, ocorre quando temos um concurso público em cujo edital estejam previstas muito poucas vagas, uma ou duas vagas, por exemplo.
Em casos que tais, pode o edital deixar de reservar vaga para deficientes?
Antes de respondermos à indagação acima formulada, é necessário registrar que existe uma lei federal genérica (não é uma lei que trate especificamente de matéria administrativa) que "dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social (....) e dá outras providências". Trata-se da Lei 7.853/1989. Embora essa lei não fale absolutamente nada sobre reserva de vagas para deficientes em concursos públicos, o Decreto 3.298/1999, a pretexto de "regulamentá-la", criou uma regra, de forma autônoma, reservando um mínimo de cinco por cento das vagas dos concursos públicos em geral para deficientes (Art. 37). O mesmo artigo do Decreto 3.298/1999 determina, ainda, que, se a aplicação desse percentual de cinco por cento resultar em número fracionado, "este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente".
Ora, se essa regra, criada pelo decreto, de elevar o resultado fracionado ao primeiro número inteiro subseqüente for aplicada sempre, em um concurso com uma única vaga, seria ela reservada para deficientes, não haveria nenhuma vaga não-reservada! Atento a esse fato, e à regra constante da Lei 8.112/1990, que fixa em vinte por cento o limite máximo de vagas a serem reservadas, o Supremo Tribunal Federal, em um caso concreto de um concurso público cujo edital previa ao todo duas vagas, decidiu que nenhuma precisaria ser reservada para deficientes...
Segundo a Corte Suprema, a reserva de uma vaga para deficientes, nesse caso, ultrapassaria o limite máximo legal de vinte por cento. Não seria possível, assim, obedecer à regra, criada pelo Decreto na 3.298/1999, de aplicar o percentual mínimo de cinco por cento sobre as duas vagas existentes e elevar o resultado fracionado ao primeiro número inteiro subseqüente, porque isso resultaria na reserva de uma vaga, o que, no caso concreto, significaria reservar cinqüenta por cento do total de vagas previstas no edital. Assim, entendeu o Tribunal Maior que deve prevalecer a interpretação do texto constitucional que preserve "a premissa de que a regra geral é o tratamento igualitário (CF, Art.. 37, II), consubstanciando exceção a separação de vagas para um determinado segmento"...
Com base nesse entendimento, o STF considerou válido o edital de concurso para o preenchimento de duas vagas que não reservou nenhuma para deficientes. Entendeu a Corte Suprema que reservar uma vaga, ou seja, cinqüenta por cento das vagas existentes, implicaria majoração indevida dos percentuais legalmente estabelecidos (MS 26310/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 20.09.2007. Grifos nossos)[4]
Observa-se, pois, que o Decreto n. 3.298/1999, visando a regulamentar a problemática da reserva de vagas aos portadores de deficiência física, acabou por trazer dispositivo flagrantemente desproporcional, pois prevê em seu Art. 37, § 2º, que, nos casos em que, ao se aplicar o percentual de 5% sobre o número de vagas, eventuais números fracionários devem ser arredondados para o primeiro número inteiro subsequente. A desproporcionalidade de tal norma mostra-se mais patente quando se depara com situações em que há apenas uma vaga. Ora, se esse instituto for aplicado tal qual está redigido, chegar-se-ia ao despropósito de reservar a única vaga a portadores de necessidades especiais, o que de forma alguma pode ser admitido, por distorcer completamente a política pública de inclusão social.
É certo que, caso se desconsiderasse qualquer número fracionário, para que fosse reservada ao menos uma vaga para deficientes físicos o concurso deveria oferecer no mínimo 20 vagas. Entretanto, não é esse o entendimento que aqui se defende. O entendimento que se mostra mais consentâneo com o princípio da proporcionalidade é o de que, ao se aplicar o percentual previsto no edital sobre o número de vagas oferecidas, somente os números fracionários iguais ou superiores a 0,5 (zero vírgula cinco) deverão ser arredondados para o primeiro número inteiro subsequente; os números inferiores ao citado valor, dessa forma, deverão ser desconsiderados.
Importante trazer à baila o voto do Min. Gilson Dipp no RMS 18669/RJ:
Assim sendo, seguir a orientação da Corte de origem, de que apenas com a nomeação de 10 (dez) candidatos pode um deficiente ocupar uma vaga, é ignorar a norma contida nos dispositivos acima transcritos, bem como o princípio da relativização da isonomia, chegando à absurda conclusão de que para assegurar 01 (uma) vaga ao candidato deficiente, levando em conta o percentual de 5%, o concurso teria, necessariamente, que oferecer pelo menos 20 (vinte) vagas. Não é esse o escopo protetivo nas normas aplicáveis ao caso.
Isto significa dizer que o impetrante, primeiro colocado entre os deficientes físicos, deve ocupar uma das vagas ofertadas ao cargo de Analista Judiciário – especialidade Odontologia, para que seja efetivada a vontade insculpida no Art. 37, § 2º do Decreto nº 3.298/99. Entenda-se que não se pode considerar que as primeiras vagas se destinam a candidatos não-deficientes e apenas as eventuais ou últimas a candidatos deficientes. Ao contrário, o que deve ser feito é a nomeação alternada de um e outro, até que seja alcançado o percentual limítrofe de vagas oferecidas pelo Edital a esses últimos[5]
Verifica-se, pelos argumentos expostos, que a regra contida no citado decreto deve ser tomada com reservas, de modo a preservar os princípios constitucionais da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade. Vejamos um importante julgado que expressa o entendimento aqui defendido:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO DEFICIENTE. RESERVA DE VAGAS. PERCENTUAL QUE RESULTA EM NÚMERO FRACIONADO. ARREDONDAMENTO. CRITÉRIO. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA PELO TRIBUNAL. CESSAÇÃO DA EFICÁCIA DA MEDIDA LIMINAR. PERDA DE OBJETO DA APELAÇÃO QUE VISA EXCLUSIVAMENTE À REVOGAÇÃO DA MEDIDA LIMINAR.
1. A fração inferior a 0,5 (cinco décimos) que resultar da aplicação do percentual de vagas reservadas aos portadores de deficiência deve ser desconsiderada. Precedente.
2. A fração igual ou superior 0,5 (cinco décimos) que resultar da aplicação do percentual de vagas reservadas aos portadores de deficiência deve ser arredondada para 1 (um) inteiro. Precedente.
3. O percentual de vagas reservadas aos candidatos deficientes deve incidir sobre o total de cargos efetivamente providos, e não especificamente sobre o número de vagas disponibilizadas em cada convocação.
4. Havendo reserva de 5% das vagas para portadores de deficiência, não é ilegítima a nomeação de apenas um deficiente entre os dezessete candidatos já nomeados pela Administração.
5. A confirmação da sentença denegatória da segurança implica automática cessação da eficácia da medida liminar concedida pelo Juízo a quo, tornando prejudicada a apelação que visa exclusivamente à sua revogação.
6. Apelação da impetrante não provida. Apelação da União prejudicada.[6]
Entendimento idêntico foi adotado no julgamento de Mandado de Segurança impetrado perante a Justiça Federal, in verbis:
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - DEFICIENTE FÍSICO. RESERVA DE VAGA EM CONCURSO PÚBLICO: PERCENTUAL IGUAL OU SUPERIOR A 0,5 EM FACE DO REDUZIDO NÚMERO DE VAGAS OFERECIDO - ARREDONDAMENTO PARA UM INTEIRO - CONVOCAÇÃO PARA COMPROVAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E, COMPROVADA, CONSEQÜENTE NOMEAÇÃO.
1. A Constituição Federal (Art. 37, inciso VIII) garantiu a reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, reservando à lei a definição do percentual e dos critérios de admissão.
2. Explicitada no edital do certame a observância à reserva legal de percentual de 5% da vagas para deficientes físicos, a existência de vagas disponíveis, cujo percentual aplicado signifique número de vagas para deficientes igual ou superior a 0,5 deve, em nome da interpretação finalística da norma constitucional, ser aplicada em ordem a arredondar para um inteiro o número de vaga destinada a deficientes.
3. A só informação da deficiência quando da inscrição no concurso é suficiente para que, aprovado o candidato, ele seja convocado para comprovar a sua deficiência e a sua aptidão para o exercício do cargo, mesmo em face da sua deficiência, observada a sua compatibilidade com a natureza das atribuições e atividades do cargo a que aspira.
4. Segurança concedida [7].
É oportuno mencionar, ainda, outro julgado em que tal entendimento também foi aplicado:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGOS DO QUADRO DE PESSOAL DO TRF/1ª REGIÃO E SEÇÕES JUDICIÁRIAS. DEFICIENTE FÍSICO.
APROVAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO EM 21º LUGAR. INSUFICIÊNCIA DE VAGAS PARA GARANTIR A NOMEAÇÃO DE DEFICIENTES FÍSICOS. SEGURANÇA DENEGADA.
1. O item 9 do Edital de Concurso nº 13/96-TRF/1ª Região assegurou às pessoas portadoras de deficiência o direito de participar do certame, para as categorias funcionais cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras, reservando aos deficientes 5% (cinco por cento) das vagas para cada categoria. Na aplicação desse percentual, utilizar-se-á arredondamento para o número inteiro imediatamente inferior, em frações menores de cinco décimos e para a imediatamente superior, em frações maiores ou iguais a cinco décimos.
2. O item 9.6 do mencionado Edital estabeleceu que os candidatos deficientes e habilitados que excederem do número de vagas a eles reservadas serão convocados, para efeito de ingresso, obedecendo-se à ordem de classificação geral.
3. Concorrendo para a Subseção Judiciária de Ilhéus, o impetrante foi aprovado e classificado em 21º lugar.
4. Naquela subseção judiciária foi oferecida apenas uma vaga, surgindo mais duas vagas posteriormente, sendo nomeados os três primeiros candidatos aprovados, obedecendo-se à ordem de classificação.
5. Tendo em conta o número de vagas surgidas até então, não se atingiu a quantidade mínima a ser reservada para os deficientes aprovados naquela localidade, razão pela qual não há qualquer abuso ou ilegalidade a serem reparados via mandado de segurança.
6. Segurança denegada[8].
É certo que a Corte Suprema Brasileira, no Recurso Extraordinário nº 227.299, esboçou entendimento que se coaduna com a literalidade do Decreto Federal n. 3.298 de 20/12/1999, ao entender que mesmo nos casos em que haja número fracionário, qualquer que seja este dever-se-á reservar vagas a deficientes físicos. É oportuna a menção ao teor do voto do Ministro Ilmar Galvão, relator do citado Recurso Extraordinário:
A Lei federal nº 7.853/89 estabeleceu normas gerais sobre o exercício de direitos individuais e sociais por pessoas portadoras de deficiências, determinando, na alínea d do inciso III do seu artigo 2º, que ao Poder Público cabe adotar legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho em benefício dos deficientes nas entidades da Administração Pública.
No âmbito federal, a Lei nº 8.112/90, no § 2º do artigo 5º, dispõe que serão reservadas, para pessoas portadoras de deficiência, até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas em concursos públicos.
Mais recentemente, o Decreto nº 3.298, de 20/12/99, regulamentando a Lei nº 7.853/89, veio disciplinar, na Administração federal, esse direito, assegurando um mínimo de 5% (cinco por cento) das vagas para portadores de deficiência e explicitando, no Art. 37, § 2º, que, no caso do percentual resultar em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.
A Administração Pública municipal de Divinópolis, por meio da Lei Complementar nº 09/92, estabeleceu uma reserva de 5% das vagas oferecidas nos concursos públicos aos portadores de deficiência, sem regular, entretanto, a situação dos resultados fracionados.
De ter-se, em face da obrigatoriedade da reserva de vagas para portadores de deficiências, que a fração, a exemplo do disposto no Decreto nº 3.298/99, seja elevada ao primeiro número inteiro subseqüente, no caso 01 (um), como medida necessária a emprestar-se eficácia ao texto constitucional, que, caso contrário, sofreria ofensa.
Registre-se, por fim, que o artigo 37, inc. VIII, da Carta Magna assegura aos portadores de deficiências percentual de cargos e empregos públicos na Administração, sendo, dessa forma, o número total de cargos e empregos o dado a ser considerado quando da abertura de concursos públicos, para a reserva de vagas a deficientes físicos.
Ante o exposto, meu voto conhece do recurso e lhe dá provimento[9].
Tal posicionamento, entretanto, foi revisto pela Suprema Corte no Mandado de Segurança 26310/DF, merecendo menção o brilhante voto do Exmo. Ministro Marco Aurélio, in verbis:
Reconheço a existência de precedente deste Plenário agasalhando a tese sustentada pelo impetrante. No Recurso Extraordinário nº 227.229-1/MG, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, a Corte defrontou-se com situação concreta em que, oferecidas oito vagas, a percentagem de cinco por cento prevista na legislação local como própria à reserva de vagas aos portadores de deficiência desaguou em quatro décimos. Prevaleceu a óptica da necessidade de sempre conferir-se concretude ao inciso VIII do Art. 37 da Constituição Federal. Presente esteve, conforme o voto do relator que se encontra às fls. 32 e 33, o disposto no Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei nº 7.853/89. O tema, porém, merece reflexão, reexaminando-se o entendimento que acabou por prevalecer, até mesmo com meu voto.
A regra é a feitura de concurso público, concorrendo os candidatos em igualdade de situação – inciso II do Art. 37 da Carta da República. O inciso VIII do mesmo artigo preceitua que ‘a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão’. A Lei nº 7.853/89 versou a percentagem mínima de cinco por cento e a Lei nº 8.112/90 veio a estabelecer o máximo de vinte por cento de vagas reservadas aos candidatos portadores de deficiência física.
Ora, considerando o total de vagas no caso – duas -, não se tem, aplicada a percentagem mínima de cinco ou máxima de vinte por cento, como definir vaga reservada a teor do aludido inciso VIII. Entender-se que um décimo de vaga ou mesmo quatro décimos, resultantes da aplicação de cinco ou vinte por cento, respectivamente, sobre duas vagas, dão ensejo à reserva de uma delas implica verdadeira igualização, olvidando-se que a regra é a não distinção entre candidatos,sendo exceção a participação restrita, consideradas vagas reservadas. Essa conclusão levaria os candidatos em geral a concorrerem a uma das vagas e os deficientes, à outra, majorando-se os percentuais mínimo, de cinco por cento, e máximo, de vinte por cento, para cinqüenta por cento. O enfoque não é harmônico com o princípio da razoabilidade.
Há de se conferir ao texto constitucional interpretação a preservar a premissa de que a regra geral é o tratamento igualitário, consubstanciando exceção a separação de vagas para um certo segmento. A eficácia do que versado no Art. 37, VIII, da Constituição Federal, pressupõe campo propício a ter-se, com a incidência do percentual concernente à reserva para portadores de deficiência sobre cargos e empregos públicos previstos em lei, resultado a desaguar em certo número de vagas, e isso não ocorre quando existentes apenas duas. Daí concluir pela improcedência do inconformismo retratado na inicial, razão pela qual indefiro a ordem[10]. (grifos nossos).
Assim ficou disposta a ementa do citado julgado:
CONCURSO PÚBLICO - CANDIDATOS - TRATAMENTO IGUALITÁRIO. A regra é a participação dos candidatos, no concurso público, em igualdade de condições. CONCURSO PÚBLICO - RESERVA DE VAGAS - PORTADOR DE DEFICIÊNCIA DISCIPLINA E VIABILIDADE. Por encerrar exceção, a reserva de vagas para portadores de deficiência faz-se nos limites da lei e na medida da viabilidade consideradas as existentes, afastada a possibilidade de, mediante arredondamento, majorarem-se as percentagens mínima e máxima previstas.
Poder-se-ia defender, contudo, a tese de que a Constituição, na verdade, exige que sejam reservadas aos portadores de necessidades especiais as vagas de cargos e empregos públicos, e não as vagas a serem disponibilizadas em concursos públicos. Por essa linha de entendimento, ao se realizar um determinado concurso público, a Administração Pública deveria realizar um levantamento do número de servidores portadores de deficiência física e não portadores de deficiência física que ocupam determinado cargo e, então, divulgar as vagas de modo a adequar o percentual de vagas a cada um desses grupos. Assim, caso em um órgão as 10 vagas de certo cargo estejam preenchidas por não-portadores de necessidades especiais e no concurso almeja-se disponibilizar outras 10 vagas, bem como o percentual a ser reservado é de 10%, dever-se-ia reservar 02 vagas para portadores de necessidades especiais. Isso porque esse número de vagas (duas) corresponde a vinte por cento do total de vagas do cargo em questão (vinte), e não do total de vagas daquele concurso que será realizado (dez).
Esse, inclusive, foi o entendimento manifestado pelo Ministro Cezar Peluso, no Mandado de Segurança nº 25.074, no qual ele concluiu:
“o que assegura a Constituição é que os portadores de deficiência têm direito de ocupar determinado número de cargos e empregos públicos, considerados em cada quadro funcional, segundo percentagem que lhes reserve a lei, o que só pode apurar-se no confronto do total de cargos e dos empregos, e não, é óbvio, perante o número aleatório de vagas que se ponham em cada concurso”[11].
Mas a adoção desse entendimento encontra obstáculos, tendo em vista que o Decreto 3.298/99, ao dispor sobre a reserva de vagas aos portadores de deficiência, prevê o mínimo de 5% (cinco por cento) das vagas nos concursos públicos, ou seja, não prevê que esse percentual de 5% (cinco por cento) deve ser aplicado sobre o total de vagas de cargos e empregos públicos. Vale trazer à colação a redação dos citados dispositivos que comprovam o acima dito:
Art. 37. Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.
§ 1º O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.
Ora, não se pode extrair uma porcentagem de cargos de forma arbitrária, considerando que o citado decreto dispõe sobre a reserva de vagas em concursos públicos.
Aliás, é oportuno mencionar que o Estado de Minas Gerais, atento a tal questão, cuidou de regrar, de forma acertada, através da edição da Lei Estadual n. 11.867 de 28 de fevereiro de 1995, os casos em que o percentual de reserva, ao ser aplicado sobre o número de vagas, resulta em número fracionário, e ao fazê-lo acabou por coroar o entendimento aqui defendido, senão vejamos:
"Art. 1º - Fica a Administração Pública direta e indireta do Estado obrigada a reservar 10% (dez por cento) dos cargos ou empregos públicos, em todos os níveis, aos portadores de deficiência.
§ 1º - Sempre que a aplicação do percentual de que trata este artigo resultar em número fracionário, arredondar-se-á a fração igual ou superior a 0,5 (cinco décimos) para o número inteiro subseqüente e a fração inferior a 0,5 (cinco décimos) para o número inteiro anterior."
A legislação mineira acima colacionada mostra-se mais consentânea com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, e, por tal razão, deveria ser tida como referência à União. Destarte, o Decreto n. 3.298/99 merece modificação, com vistas a por fim ao debate que ora é travado e que, inclusive, motivou o presente trabalho.
O Ilmo. Desembargador Wander Marotta, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, vem fazer coro ao entendimento aqui defendido, sendo oportuna a menção de seu voto proferido na Apelação Cível nº 1.0024.08.093524-0/002:
Neste caso, nós temos quatro candidatos e essa análise, em tese, dos dispositivos legais, é feita de forma aparentemente simples, como se expôs . A questão complica-se na aplicação concreta, específica, para um determinado concursos dessas regras e desses percentuais.
Na espécie, nós temos quatro vagas e, assim, se deferimos uma delas para deficiente, nós estaremos reservando a eles 25% das vagas, acima, portanto, da norma geral, que foi editada pela União, na Lei 8112, de 20% .
Mais do que isso, se nós reduzirmos e passarmos, como se estivéssemos analisando um concurso com apenas duas vagas, nós teríamos 0,20%, ao invés de 0,4% teríamos o percentual de 0,2%, e, portanto, o mesmo raciocínio que se aplica a 0,4%, aplicar-se-ia a 0,2% e, num concurso com duas vagas, nós teríamos reservas de 50% das vagas para o deficiente.
E, num concurso em que há uma só vaga, o que é muito comum, basta dizer que as prefeituras fazem, a toda hora, este tipo de concurso com apenas uma vaga para admitir, por exemplo, um médico, um psicólogo, uma assistente social, qual seria o percentual das vagas? Essa vaga teria sempre que ser do deficiente?
O mesmo acontece nos cartórios estaduais, abre-se para eles concurso com apenas uma única vaga, então, nós teríamos 0,10% e, aplicando o mesmo raciocínio, chegaríamos ao resultado de que, no caso de uma vaga, ela deve ser do deficiente. Então, faríamos um concurso apenas para os deficientes? Não aceitaríamos os candidatos não deficientes? Como se vê, este raciocínio da reserva absoluta de vagas pode levar, em casos concretos, ao absurdo e nos sabemos que a interpretação não deve ser feita para levar ao absurdo. Certamente, foi por isso, que o Supremo Tribunal Federal, ultrapassando uma jurisprudência anterior daquela Corte, explicitada num acórdão relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, no RE 227229, por coincidência, de Minas Gerais, ultrapassando, repito, este precedente, acabou por decidir, mais recentemente, num acórdão do Mandado de Segurança 263105, do Distrito Federal, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido restritivo de que " por encerrar exceção, a reserva de vagas para portadores de deficiência faz-se nos limites da lei e na medida da viabilidade, consideradas as existentes, afastada a possibilidade de mediante arredondamento, majorarem-se as percentagens mínima e máxima previstas, ou seja, a Suprema Corte abriu a possibilidade de aplicação dos percentuais que a lei admite. No caso, temos a lei de Minas Gerais admitindo um percentual de 10%, é possível aplicação do percentual de 10% desde que não haja ultrapassagem do limite mínimo ou do limite máximo do concurso.
Por estas razões é que, embora compreendendo os fundamentos daqueles que tem entendimento em contrário, no sentido de que deve prevalecer a ação afirmativa posta na intenção da Constituição Federal, é que peço vênia ao eminente Des. Relator para divergir da conclusão alcançada por S. Exa., tendo em vista que, no caso concreto, a adoção deste entendimento implicaria em reserva de vagas de 25%, ultrapassando em muito e colocando em condição de desigualdade, que a Lei e a Constituição não querem, deficientes e não deficientes.
Peço vênia, portanto, para dar provimento ao recurso de apelação, a fim de declarar a inexistência da reserva de vagas para deficientes, neste específico concurso, embora haja a previsão editalícia, e determinar a nomeação da Apelante[12].
Vale lembrar que tal entendimento foi acompanhado pelo Ilmo. Desembargador André Leite Praça, valendo trazer à baila um trecho de seu voto:
Ademais, a aplicação do Decreto Federal que determina o arredondamento para o número inteiro subseqüente, poderia gerar a preterição do candidato não portador de deficiência, melhor colocado em relação ao candidato deficiente, quando o concurso oferecer apenas uma vaga, o que não se pode admitir.