V. O PANORAMA PÓS-MODERNO DA LEGITIMAÇÃO NORMATIVA E PROCESSUAL
Entende-se que a carga de legitimação dogmática que a coisa julgada alcançou com o discurso fundado na necessidade de certeza e segurança jurídicas tem condicionado fortemente a prestação jurisdicional no Brasil. Não raro, direito, justiça, moral e valores ressalvados como superiores pela própria ordem jurídica, são sacrificados por esses topoi[3] ideológica e politicamente conformadores.
Para Nascimento (2005), o momento atual vivenciado pelo ordenamento jurídico passa por uma análise e revisão de seus antigos e mais rígidos institutos, dentre os quais se pode incluir a coisa julgada. São deles as seguintes palavras:
No campo da ciência pós-moderna, os enunciados flexíveis romperam as bitolas da ciência clássica para opor-se ao determinismo e a rigidez dos conceitos tradicionais, representando o paradigma da certeza, da simplicidade. Esse modelo desenvolveu-se no âmbito das ciências naturais com base em regras metodológicas e princípios epistemológicos e perfeitamente definidos. Isso possibilitou a relativização do discurso jurídico tradicional, abrindo caminho para o questionamento dos dogmas e das verdades absolutas na seara da coisa julgada (não há destaques no original).
A evolução da ciência jurídica tem ultrapassado as barreiras do formalismo exagerado, abrindo caminhos para a fixação de novos preceitos. Institutos e idéias até então tidas como incontestáveis vêm ganhando novos contornos.
Os grandes fundamentos da coisa julgada têm sido as exigências de certeza do direito pronunciado pela autoridade judicial e de segurança quanto à tutela devida pela ordem jurídica estatal, os quais parecem facilitar a administração da justiça e a melhorar a harmonia entre os jurisdicionados. Não houvesse um instituto jurídico para evitar mais de um juízo sobre a mesma relação material e pôr fim em determinado momento às relações processuais, o direito objetivo provavelmente acabaria por experimentar completo descrédito perante os seus destinatários.
A crítica mais óbvia a esse binômio legitimador da intangibilidade da res judicata diz respeito à apreensão deturpada e extremada de sua importância. Não parece haver lógica ou razão superior em continuar a submeter todo o arcabouço axiológico do direito, inclusive o constitucional, à prevalência irrestrita de um instituto de natureza instrumental. “Mesmo o mais empedernido dos positivistas talvez devesse convir que soa duvidosa a preferência pela certeza e segurança quando em jogo direitos básicos” (BATISTA, 2010).
O pós-positivismo tem afastado visões estreitas daqueles que somente eram capazes de enxergar na lei a solução adequada a situações conflitantes. O apego ao formalismo tem permitido a consolidação de relações jurídicas esdrúxulas e totalmente discrepantes das premissas e valores constitucionais.
Ademais, o processo é verdadeiro mecanismo democrático do Estado de Direito. “O processo é meio, não só para chegar ao fim próximo, que é o julgamento, como ao fim remoto, que é a segurança constitucional dos direitos e da execução das leis” (DINAMARCO, 2011). Daí ser inegável o paralelo entre a disciplina do processo e o regime constitucional em que o processo se desenvolve.
O problema da coisa julgada inconstitucional passa pelo exame da instrumentalidade do processo. Afinal, o que se pretende do mecanismo processual? As doutas palavras do professor Dinamarco (2011) podem responder tal indagação:
Já não basta aprimorar conceitos e burilar requintes de uma estrutura muito bem engendrada, muito lógica e coerente em si mesma, mas isolada e insensível à realidade do mundo em que deve estar inserida.
(...)
O processo e as suas teorias e a sua técnica têm a sua dignidade e o seu valor dimensionados pela capacidade, que tenham, de propiciar a pacificação social, educar para o exercício e respeito aos direitos, garantir as liberdades e servir de canal para a participação democrática.
É em razão desse pensamento pós-moderno que parte da doutrina e da jurisprudência vem modificando antigas e ultrapassadas posições e admitindo a mutabilidade do caso julgado, especialmente quando há posterior declaração de inconstitucionalidade de lei em que haja se fundado pelo Supremo.
O que deve ser evitado no ordenamento das formas processuais é o formalismo, e, não, um mínimo de formalidade que garanta às partes a oportunidade de participar dos procedimentos tendentes à formação do juízo e ao magistrado o conhecimento seguro dos fatos objeto do conflito (BATISTA, 2010).
Entender melhor as leis da razão e da lógica que impõem o abrandamento da suposta intangibilidade da coisa julgada contribuiria em muito para aperfeiçoar o instituto e evitar exageros como a assertiva jurídica de que a res iudicata facit albo nigrum[4].
Assim, parece razoável admitir o resgate do constitucionalismo, aliando-o aos demais ramos do direito, e contrapondo-o ao formalismo extremado.
VI. AS RAZÕES QUE MOTIVAM O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A PROTEGER A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
O princípio da segurança jurídica é elemento essencial ao Estado Democrático de Direito e desenvolve-se em torno de conceitos basilares: o da estabilidade das decisões dos poderes públicos, que não podem ser alteradas senão quando concorrerem fundamentos relevantes de procedimentos legalmente exigidos e o da previsibilidade, que se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos.
O instituto da coisa julgada, por sua vez, é a reflexão maior do princípio da segurança jurídica no ordenamento pátrio, representando e concretizando a definitividade da jurisdição.
Desde o direito romano, e, passados alguns séculos, prevaleceu o entendimento quase inquestionável sobre a intangibilidade do instituto da coisa julgada, sendo, como consequência, traduzida em presunção absoluta de verdade, preservando a segurança das relações jurídicas.
Ocorre que, em razão da consagração do Estado Democrático de Direito, o princípio da supremacia da Constituição ganhou relevo, passando a se defender que, assim como os atos típicos dos Poderes Executivo e Legislativo estavam sujeitos à invalidade quando contrários à Carta Magna, da mesma forma as decisões judiciais seriam nulas, ainda que transitadas em julgado, todas as vezes que ofendessem normas constitucionais.
Toda a atuação estatal deve estar acobertada pelos cânones do direito constitucional. Com esta assertiva está-se a indicar que inclusive a atividade jurisdicional, e principalmente ela, deve se sujeitar aos valores constitucionalmente postos.
VII. A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA, DA MORALIDADE, DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA SEGURANÇA JURÍDICA
A coisa julgada não possui caráter absoluto, de intocabilidade, de intangibilidade, de insindicabilidade. Tentam, os que assim pensam, travestir a coisa julgada da argamassa de intocabilidade, que não resiste a uma análise mais aprofundada dentro do cenário da principiologia lastreada no constitucionalismo moderno.
Por se tratar de um tema relativamente polêmico, deve-se frisar que a possibilidade de se desconstituir uma decisão definitiva com fulcro em sua inconstitucionalidade deve sempre levar em consideração os princípios da justiça, da moralidade, da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica.
Isso porque os princípios existem para servir à justiça e ao homem, devendo-se centrar-se na noção de que em um Estado de Direito material, tal como a lei positiva não é absoluta, também não o são as decisões judiciais. Absoluto, esse sim, é sempre o Direito ou, pelo menos, a ideia de um Direito Justo.
VIII. O SENTIDO E O ALCANCE DA TEORIA DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Diante da constatação de existência de decisões contrárias aos postulados constitucionais, boa parte da comunidade jurídica passou a não mais tolerar determinadas decisões judiciais notadamente injustas – algumas até absurdas – e que acabavam perenizando as injustiças ou absurdos, simplesmente porque o prazo de dois anos da ação rescisória havia transcorrido ou então porque a falha do decisum não correspondia a nenhuma das hipóteses do artigo 485 do Código de Processo Civil.
Foram lançadas assim as bases para o desenvolvimento da teoria da coisa julgada inconstitucional, a preconizar que a decisão judicial transitada em julgado que contrariasse a Constituição Federal seria nula e, em face disso, poderia ser impugnada por ação autônoma, ainda que tivesse se esgotado o interregno bienal da rescisória.
No Brasil, grande parte da doutrina vislumbrou na teoria um enorme avanço no direito processual civil pátrio, hábil a corrigir certas injustiças e a garantir a supremacia ampla e irrestrita da Constituição Federal, noção indissociável do tão buscado Estado Democrático de Direito.
O debate doutrinário acabou traspassando os muros da academia e encontrando reconhecimento pelo legislador pátrio – na verdade, pelo Poder Executivo no desempenho de função atípica – que, por meio da Medida Provisória n.º 2.180-35 acrescentou o parágrafo único ao artigo 741 do CPC, consagrando a coisa julgada inconstitucional como hipótese de inexigibilidade do título judicial.
Assim, tanto a atividade judicial, como a legislativa e a executiva, devem estar pautadas pelos cânones constitucionais, já que o princípio da legalidade (e com maior razão, o da constitucionalidade) é uma exigência que decorre do Estado de Direito, ou seja, da submissão do Estado ao império da ordem jurídica.
IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Res iudicata facit de albo nigro, de quadrata redunta. Fazer do branco preto, do quadrado redondo: esta foi a concepção que muito tempo se teve acerca do instituto da coisa julgada.
Com a análise preambular da função jurisdicional e a sua inevitável inafastabilidade com os preceitos constitucionais, buscou-se demonstrar a necessária observância da Constituição Federal na atividade judiciária.
Após, pretendeu-se demonstrar que à coisa julgada não se pode debitar uma natureza onipotente. Trata-se de uma opção de cunho político, com o objetivo de delimitar o tempo reservado à interposição de recurso acaso cabíveis. A coisa julgada exerce, assim, papel operacional no sentido de resolver uma questão prática: os atos judiciais não podem ficar eternamente pendentes de solução em detrimento dos sujeitos de direito.
Não se desejou minar imprudentemente a autoridade da coisa julgada com o intuito de promover uma insensata inversão. O que se procurou demonstrar foi que a res judicata, mesmo com o seu poder de sanação geral e com a sua eficácia preclusiva em relação ao deduzido e ao dedutível, não tem o condão de eliminar a inconstitucionalidade contida na sentença, por ser este o vício mais grave de que um ato jurídico pode padecer. Aceitar o contrário é ferir outra vez a Constituição, porquanto, a pretexto de evitar a eternização de litígios, estar-se-ia eternizando inconstitucionalidades. Daí a razão de se falar em coisa julgada inconstitucional.
O valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é, portanto, a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver harmonicamente com outro valor de primeiríssima grandeza: o da constitucionalidade dos atos estatais, o qual determina a insuscetibilidade de qualquer ato inconstitucional se consolidar na ordem jurídica, podendo, tal linha de argumentação, fundamentar a desconstituição do caso julgado desconforme com a Constituição. Inadmissível, de outro modo, a segurança jurídica servir de pano de fundo para impedir a impugnação da coisa julgada, imodificável, imutável e absoluta, na percepção dos processualistas mais conservadores, ainda que contrária à Carta Maior.
É necessário que doutrina e jurisprudência revejam antigos dogmas e passem, concomitantemente, a aplicar as novas tendências doutrinárias, sob pena de ficarem tolhidas de novos conceitos aptos a darem verdadeiros contornos ao Estado Democrático de Direito. Assim, possível que a intangibilidade da coisa julgada seja questionada em situações excepcionais. Do contrário, a Constituição não seria o texto formalmente qualificado com tal; Constituição seria o direito aplicado pelo Estado-juiz, segundo resultasse de decisão definitiva e imutável do órgão jurisdicional.
O que se buscou demonstrar é que o objetivo da doutrina que cuida das decisões inconstitucionais não é, como supõem seus críticos, promover um ato de sabotagem ao instituto da coisa julgada, mas, sim, propiciar a aplicação do direito conforme os ditames constitucionais, os quais são as pilastras mestras do ordenamento jurídico.
Com base neste raciocínio e na preocupação de reparar a noção de coisa julgada, a qual deve ser redelineada de acordo com os parâmetros constitucionais, foi que se chegou ao ponto nevrálgico do estudo: uma decisão já transitada em julgado pode ser desconstituída quando a lei em que haja se fundado venha a ser, posteriormente, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucionalidade – ADI, por meio de instrumentos processuais existentes no sistema processual em vigor, ou mesmo através de uma ação de declaratória de nulidade.
O tempo, que se encarrega de estratificar determinada posição doutrinária, também contribuiu para desmistificá-la. A intransigência que fecha os olhos à proposta de mudança, bem revela o que permeia a discussão apresentada no trabalho elaborado. É nessa ausência de receptividade ao novo que se fundam os elementos fundantes do tema central dessa problemática, tornando nova a idéia avelhantada de que seja a coisa julgada imutável.
Cumpre, por fim, destacar que o presente artigo não teve por objetivo esgotar o tema. Longe disso. O que se buscou foi apontar algumas preocupações acerca do objeto do presente estudo, sobretudo abalizar que no cotejamento entre a intangibilidade da coisa julgada e o princípio da inconstitucionalidade dos atos do Poder Público, é necessário um criterioso juízo de ponderação, sob a ótica da hermenêutica constitucional, para que, enfim, seja possível encontrar-se o verdadeiro sentido de um Estado Democrático de Direito.
X. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Deocleciano. Coisa julgada inconstitucional e a prática jurídica. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2010.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Direito Processual Civil. Volume I. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2006.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Disponível em:<https://redeagu.agu.gov.br/UnidadesAGU/CEAGU/revista/Ano_II_fevereiro_2001/0502relativizaCandido.pdf> Acesso em: 3.3.2012.
LOPES, João Batista. Princípio da proporcionalidade e efetividade do processo civil. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Estudos de Direito Processual Civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: RT, 2005.
MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no Estado Contemporâneo. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Estudos de Direito Processual Civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: RT, 2005.
MARINONI, Luiz Guilherme. As novas sentenças e os novos poderes do juiz para a prestação da tutela jurisdicional efetiva. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (org.). Leituras complementares de processo civil. 4. ed. Salvador: Jus Podivm, 2006.
MOTTA, Sylvio; DOUGLAS, William. Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Impetus, 2002.
NASCIMENTO, Carlos Valder do. Por uma teoria da coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Efetividade e tutela jurisdicional. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Estudos de Direito Processual Civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: RT, 2005.
OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex Edições Jurídicas, 1993.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
TESSLER, Luciane Gonçalves. O papel do Judiciário na concretização dos direitos fundamentais. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Estudos de Direito Processual Civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: RT, 2005.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Coisa Julgada Inconstitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. Hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Notas
[1] Autoridade da coisa julgada.
[2] Ainda depois da preclusão dos meios de impugnação.
[3] Os topoi são questões ou estruturações utilizadas como ponto de partida de uma argumentação. No Direito, a utilização dos topoi permite a superação das antinomias.
[4] A coisa julgada faz do branco preto, do quadrado redondo.