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O devido processo legal no âmbito das relações privadas

02/02/2013 às 08:56
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Analisa-se a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a aplicação do postulado do devido processo legal no âmbito das relações privadas.

Resumo: Analisa-se a tese da “eficácia horizontal dos direitos fundamentais” e a aplicação do postulado do “devido processo legal” no âmbito das relações privadas.

Palavras-chave: devido processo legal; dignidade da pessoa humana; Constituição; garantia fundamental.


O princípio da dignidade da pessoa humana corresponde ao núcleo existencial de todos os direitos nominados fundamentais pelas Constituições democráticas. Nossa Constituição Federal o classifica como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III). É categoria jurídica-axiológica inspirada no ideal de que o ser humano é a “obra-prima da criação” e que, dessa forma, as pessoas são iguais e merecem ser tratadas com respeito pelo simples fato de pertencerem à espécie humana. “Em palavras outras, a circunstância do humano em nós é que nos confere uma dignidade primaz. Dignidade que o Direito reconhece como fator legitimante dele próprio e fundamento do Estado e da sociedade.” (BRITTO: 2007, p.26).

Atualmente está em voga o debate acerca da teoria da “constitucionalização do direito civil” – na verdade de todo o ordenamento jurídico –, o que implica uma nova forma de interpretação dos textos normativos que regulamentam as relações obrigacionais e patrimoniais entre particulares. É dizer, os dispositivos da legislação civil devem ser interpretados à luz dos valores consagrados na Constituição. Nesse sentido, há um rompimento com o clássico modelo civilista romano, ao passo em que se prega a valorização do ser humano em detrimento do patrimônio.

Trata-se, portanto, de um regresso à teoria elaborada por Kant (BARROSO: 2012, p. 272), no que refere à distinção entre coisa e pessoa, entre preço e dignidade, entre o ter e o ser: “tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso, não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.” (KANT: 2003, p. 65).

Essa “constitucionalização do direito civil” está umbilicalmente ligada à outra tese que ganha relevo na seara do direito privado da pós-modernidade. Cuida-se da “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, ou seja, da aplicação dos dispositivos constitucionais que consagram direitos e garantias fundamentais dos cidadãos em face do Estado no âmbito das relações privadas.

Segundo DIDIER JR. (2007, p. 28), existem três teorias na doutrina estrangeira que versam sobre o assunto: a primeira, denominada “state action”, nega a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas; a segunda, denominada eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, afirma que não há uma aplicação direta de tais direitos nas relações entre particulares, sendo que tais garantias serviriam apenas como referência ao legislador, que estaria obrigado a observar os parâmetros ditados pela Constituição na elaboração da legislação ordinária; finalmente, a terceira teoria apregoa a plena e direta eficácia dos direitos fundamentais nos negócios privados.

Parece não haver dúvidas de que a doutrina nacional elegeu a terceira teoria – a da aplicação plena e direta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Por oportuno, transcreve-se a lição de Dirley da Cunha Júnior a respeito do tema:

Esse fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil tem gerado, como importante consequência, a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, tema que atualmente vem ocupando um grande espaço na doutrina, onde é examinado normalmente com a designação de eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung), para esclarecer que os direitos fundamentais não são direitos apenas oponíveis aos poderes públicos, irradiando efeitos também no âmbito das relações particulares, circunstância que autoriza o particular a sacar diretamente da Constituição um direito ou uma garantia fundamental para opô-lo a outro particular, o que reduz em demasia o campo da autonomia privada (CUNHA JÚNIOR: 2011, p. 63).

Da mesma forma, a tese da eficácia horizontal dos direitos privados é reconhecida pelos Tribunais Superiores:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO E CORRUPÇÃO PASSIVA. NULIDADE PROCESSUAL. ILICITUDE DE PROVAS ORIUNDAS DA INTERCEPTAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA. SIGILO ABSOLUTO. DIREITO FUNDAMENTAL. PONDERAÇÃO. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. INEXISTÊNCIA DE DIREITOS ABSOLUTOS. COEXISTÊNCIA ENTRE OS DIREITOS E AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA.

1.  Os direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição Federal, contemplados na dimensão objetiva, consistem em norte para atuação valorativa do Estado na realização do bem comum. Já na dimensão subjetiva, permitem ao indivíduo se sobrepor à arbitrariedade estatal.

2.  O Estado tem o dever de proteção dos indivíduos frente ao próprio poder estatal (eficácia vertical), bem como em face da própria sociedade, justificando a eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações particulares.

3. Não há falar em sobreposição de um direito fundamental sobre outro. Eles devem coexistir simultaneamente. Havendo aparente conflito entre eles, deve o magistrado buscar o verdadeiro significado da norma, em harmonia com as finalidades precípuas do texto constitucional, ponderando entre os valores em análise, e optar por aquele que  melhor resguarde a sociedade e o Estado Democrático.

4. Os direitos e garantias fundamentais, por possuírem característica essencial no Estado Democrático, não podem servir de esteio para impunidade de condutas ilícitas, razão por que não vislumbro constrangimento ilegal na captação de provas por meio da quebra do sigilo de correspondência, direito assegurado no art. 5º, XII, da CF, mas que não detém, por certo, natureza absoluta.

5. Ordem denegada.

(HC 97.336/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/06/2010, DJe 02/08/2010).

Dentre os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição, destacam-se, por sua estreita relação com o postulado da “dignidade da pessoa humana”, o devido processo legal e seus consectários, o contraditório e a ampla defesa (incisos LIV e LV do art. 5º), na medida em que se prestam à proteção da vida, da propriedade e da liberdade das pessoas. Conforme a abalizada lição de Nelson Nery Junior, o “princípio constitucional fundamental do processo civil, que entendemos como a base sobre a qual todos os outros princípios e regras se sustentam, é o do devido processo legal.” (NERY JUNIOR: 2010, p. 79).

Ainda segundo NERY JUNIOR, o devido processo legal foi mencionado pela primeira vez na Magna Carta inglesa outorgada por João Sem-Terra, em 1215, mas teria sido utilizado em lei inglesa apenas no ano de 1315, no reinado de Eduardo III. Mas foi na “Declaração dos Direitos” de Maryland (1776) que o princípio do due process of law fora referido segundo a concepção do trinômio vida-liberdade-propriedade, fórmula consagrada originariamente na Constituição norte-americana e em praticamente todas as Constituições democráticas da atualidade. (NERY JUNIOR: 2010, p. 80-81).

Em sua acepção formal-procedimental, o devido processo legal pode ser traduzido no “direito a ser processado e a processar de acordo com normas previamente estabelecidas para tanto”. (DIDIER JR.: 2007, p. 37). É mandamento que deve, obrigatoriamente, ser observado em todas as situações em que se busque solucionar pendências verificadas nos espaços próprios da sociedade civil, como em sociedades empresárias, clubes recreativos, associações de classe, condomínios edilícios, entre outros. Nesse sentido, assim decidiu o STF:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.(RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)

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Com efeito, não é de hoje que a comunidade jurídica reconhece o processo como instrumento para a realização de direitos nos mais diversos cenários:

Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo instrumento para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as atividades estatais (processo administrativo, legislativo) e mesmo não-estatais (processos disciplinares dos partidos políticos ou associações, processos das sociedades mercantis para aumento de capital etc.). (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 302).

Dentre os pressupostos do devido processo legal, conforme rol elaborado por NERY JUNIOR (2010, p. 92), é possível identificar aqueles cuja observância no âmbito das relações privadas é indispensável: a isonomia, o contraditório, o direito de produzir provas, a paridade de armas, a motivação das decisões, a presunção de inocência, o direito ao juiz imparcial, o direito de ser comunicado previamente dos atos processuais, etc.

Como leciona Daniel Sarmento, a observância do devido processo legal no âmbito das relações privadas “é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa.” (2004, p. 223).

Assim, o “devido processo legal” é categoria jurídica que tem assento constitucional e consubstancia-se em garantia fundamental do indivíduo, intimamente relacionada ao fundamento republicano da “dignidade da pessoa humana”, na medida em que sua vocação é a proteção da vida, da propriedade e da liberdade das pessoas.

É postulado que se concilia com as teses doutrinárias  da “constitucionalização do direito privado” e da “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, amplamente reconhecidas pela jurisprudência pátria e, portanto, é oponível tanto ao Estado quanto a particulares no âmbito das relações privadas, na qualidade de instrumento de defesa a ser manejado pelos oprimidos em face de seus algozes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2011.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 8ª ed. vol. 1. Salvador: Juspodivm, 2007.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

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Sobre o autor
Rodrigo Matos Roriz

Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis. Especialista em Direito Público e em Direito Processual Civil. MBA em Gestão Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RORIZ, Rodrigo Matos. O devido processo legal no âmbito das relações privadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3503, 2 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23615. Acesso em: 22 dez. 2024.

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