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Justiça Restaurativa II: a vítima - implicações psicológicas

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Os estudos de Bettelhein, representando o campo psicológico (psicanalítico), bem como de Zehr, representando o campo dos operadores do direito, indicam que as vítimas de um crime/trauma necessitam de algumas respostas para poderem superar o ocorrido.

Resumo: Após ter contextualizado a existência da Justiça Restaurativa (JR) através do artigo “Justiça Restaurativa I: da retribuição à restauração. Um movimento a favor dos direitos humanos” (Silva, J. E. M., 2010), a presente etapa refere-se a uma revisão e uma análise psicológica (enfoque psicanalítico) em relação ao ‘papel’ da vítima dentro do contexto da Justiça Restaurativa.  Na atualidade, quando as atenções estão fortemente direcionadas ao infrator, pelo menos antes deste ter sido condenado/aprisionado, o estudo busca evidenciar que as vítimas de crimes também possuem necessidades as quais, em um processo tradicional, geralmente são negligenciadas. Essa falta dificulta a recuperação psicológica da vítima bem como não contribui para a experiência de um processo de justiça que seja considerado efetivo, restaurativo e preventivo em termos individuais e sociais. Ao mesmo tempo o estudo mostra como as abordagens Restaurativas contribuem, para suprir esta lacuna em relação a vítima de um crime.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Vítima. Psicologia. Crime. Psicologia jurídica.


INTRODUÇÃO

Atualmente, não é incomum que, quando da ocorrência de um crime, a vítima seja considera apenas no sentido de evidenciar a culpa do infrator e sua dimensão. Nem o sofrimento da vítima, nem suas necessidades para se restabelecer costumam ser foco do processo.

Nesse sentido, considerando a emergência das Práticas de Justiça Restaurativa como mais uma alternativa à insuficiência do sistema judiciário e prisional atual (Silva J. E. M., 2010), um novo olhar é lançado em relação à vítima de um crime. Os processos restaurativos não desconsideram as necessidades das vítimas. Buscam satisfazer estas faltas no sentido de contribuir para uma experiência de justiça bem como facilitar a recuperação da vítima.

É importante destacar aqui que as práticas de justiça restaurativa buscam abordar tanto a vítima quanto o infrator buscando desenvolver um processo que não seja exclusivamente punitivo, mas sim restaurativo. A abordagem enfoca os danos e as necessidades da vítima bem como a responsabilidade e as necessidades do infrator. Sem desconsiderar os aspectos sociais presentes no comportamento criminoso. A Justiça restaurativa, de uma forma geral busca possibilitar que a vítima tenha o atendimento adequado e que o infrator possua condições de fazer uma reparação - se não concreta então simbólica. As ‘partes’ principais são a vítima e o infrator e, não o Estado e o infrator (Silva, J. E. M., 2010).

A fim de atingir seus objetivos a Justiça Restaurativa se utiliza de diversas práticas que não levam à exclusão nem ao isolamento. A JR proporciona a participação do infrator, da vítima e da sociedade na busca de soluções restaurativas para o fato ocorrido. Um exemplo destes procedimentos são os círculos restaurativos onde, participam a vítima, o infrator e outros envolvidos com a situação. Num encontro destes, muitas das necessidades das vítimas e, do infrator podem ser atendidas. Neste estudo são evidenciados os benefícios para as vítimas quando da participação de processos restaurativos.


A Vítima de um crime e a justiça Restaurativa

Bettelheim (1989), psicólogo norte-americano de origem Austríaca, em seu livro ‘Sobrevivência’ (1989) lança um olhar sobre as situações vividas por muitos judeus nos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial. O seu estudo baseia-se na sua experiência pessoal de ter sido aprisionado em um desses campos de concentração. No momento, reportar-se aos estudos desse autor pode ser bastante útil. Ele trata das reações psicológicas, sob um olhar psicanalítico, das pessoas que vivenciaram situações extremas, beirando a morte, durante uma época de guerra. Muito embora suas reflexões tomem como ponto de partida traumas realmente muito intensos, vários de seus entendimentos podem ser aplicados para diversas outras situações traumáticas como, por exemplo, no caso de ser vítima de crime no mundo de hoje.

Bettelheim (1989) acredita que as situações traumáticas, de um modo geral, remetem as pessoas, naturalmente, às questões existenciais. No caso dos sobreviventes de uma guerra onde muitos foram mortos, estes podem questionar-se: ‘Por que motivo eu sobrevivi?’, ‘Qual é o sentido da vida?’, entre outros questionamentos. Zehr (2008), semelhante à Bettelheim, também considera que as vítimas de crimes ficam sujeitas a diversos questionamentos: O que aconteceu? Por que aconteceu comigo? Por que agi da forma que agi na ocasião? Por que tenho agido da forma como tenho desde aquela ocasião? E se acontecer de novo? O que isso significa para mim e para minhas expectativas? Assim, sob o aspecto psicológico, é importante encontrar respostas para estas perguntas, pois elas restauram a ordem e dão um sentimento de segurança.

Segundo Bettelheim (1989), enquanto a situação está sob controle, as defesas psicológicas das pessoas em relação à ansiedade de ter de lidar com a idéia de finitude, de morte, estão tendo êxito.  No entanto, frente a catástrofes, a ameaças concretas em relação a sua vida, o ser humano vê suas defesas antes efetivas, agora fragmentadas. Depara-se com uma nova situação a qual lhe gera muito sofrimento e conseqüências a nível físico e psicológico. “A ruptura combinada e repentina de todas essas defesas contra a ansiedade de morte projeta-nos naquilo que há trinta e cinco anos denominei, por falta de termos disponíveis, de uma situação extrema” (BETTELHEIM, 1989, p.22).

A situação extrema, para o autor, ocorre quando somos lançados repentinamente, em situações onde nossos velhos mecanismos de defesa e valores não mais funcionam e, quando, inclusive, alguns deles que antes protegiam, agora podem até ameaçar a vida. Somos despidos de nosso sistema defensivo e se faz necessária a construção de algo novo que dê conta dessa nova realidade. Zehr (2008) também apresenta uma idéia semelhante a essa,

Porque o crime é essencialmente uma violação: uma violação do ser, uma dessacralização daquilo que somos, daquilo em que acreditamos, de nosso espaço privado. O crime é devastador porque perturba dois pressupostos fundamentais sobre os quais calcamos nossa vida: a crença de que o mundo é um lugar ordenado e, dotado de significado, e a crença na autonomia pessoal. (ZEHR, 2008, p.24)

Conforme Zimerman (2005), o trauma está relacionado a acontecimentos externos reais, os quais ultrapassam a capacidade do ego de lidar com a angústia e a dor psíquica oriunda desse evento. Segundo o autor, a denominação de neurose traumática para a pessoa adulta é usada para designar as reações neuróticas a uma intensa comoção psíquica. O psiquismo, na tentativa de elaborar a neurose traumática, faz uma incansável repetição do trauma original, seja ela através de desenhos (crianças), sonhos ou repetidas narrativas.

Na acepção psicanalítica, o estresse pós-traumático, conforme Zimerman (2005, p.168), é resultante de um forte “traumatismo acontecido na infância ou na fase adulta”. Este evento ocorrido é algum tipo de tragédia ou violência como a de ser vítima de um assalto, ou ter sofrido uma perda trágica de parentes, ou ter sido vítima de violência sexual, entre outras. Este tipo de evento pode provocar estresse, fazendo com que o organismo fique constantemente preparado para uma reação frente à situação traumática vivenciada a qual é constantemente relembrada. Esse estresse apresenta-se na forma de evitação de certas situações relacionadas ao trauma ou, ainda através de um enfrentamento destas situações, “o que consome uma grande carga de energia psíquica” (p.168).

Ainda considerando o entendimento psicanalítico, se torna interessante mencionar aqui os estudos de Silva (2000) sobre o trauma. O autor, Doutor em Teoria Literária e professor da UNICAMP, apresenta algumas de suas idéias no livro ‘Catástrofe e Representação’ (NESTROVSKI; SILVA [org], 2000). Cabe salientar aqui que as idéias desse autor (não ligado diretamente à área psicológica) estão sendo consideradas por serem bastante pertinentes ao assunto. Assim como, por crer-se que a abordagem para um assunto tão complexo, como o que é foco desse estudo, não pode prescindir de um olhar transdisciplinar.  Silva (2000) considera que o trauma é uma ferida na memória. Segundo ele, para Freud “o trauma é caracterizado pela incapacidade de recepção de um evento transbordante” (p.84).   É algo que vai além da nossa capacidade de percepção, e, assim, se apresenta sem forma. Essa experiência leva a uma constante repetição da cena traumática (compulsão a repetição). É algo que não pôde ser amparado pelo mecanismo de prevenção à angústia. O ‘trabalho do trauma’, segundo o autor, é de integrar - de forma saudável, e não patológica - a cena vivida em nossa vida. O trauma é um excesso de realidade, o qual, em função de sua intensidade, é capaz de apagar o passado e o futuro, pois, tudo o que importa é o instante atual. Se “dá uma cisão do eu” (p.93).

Em um capítulo chamado ‘Trauma e Reintegração’ do seu livro já mencionado aqui, Bettelheim (1989), fala mais especificamente da forma como as vítimas sobreviventes dos campos de concentração lidaram com a experiência. Para o autor, a ‘sobrevivência’ implica em duas dimensões. Uma delas é o trauma original/as perdas concretas/sofrimento físico e, o impacto desintegrador da personalidade. A segunda são os efeitos perpétuos do trauma os quais necessitam de “formas muito especiais de domínio se não quisermos sucumbir a eles” (p.34). No caso da situação vivenciada pelo autor, ser sobrevivente numa situação onde muitos foram mortos leva a um questionamento de ‘Por que fui poupado?’ – e, a uma culpa por estar vivo. Esse sentimento de culpa possui uma dimensão maior a nível inconsciente resistindo a racionalizações que busquem justificar o ocorrido.

As conseqüências emocionais do milagre de ter sobrevivido são, frequentemente, obrigações psicológicas tão sérias que alguns sobreviventes acham-nas muito difíceis de dominar, enquanto outros conseguem enfrentá-la apenas em um grau limitado. (BETTELHEIM, 1989, p.36)

De uma forma mais específica, durante a ocorrência de um crime, as vítimas podem ter reações diversas. Porém, a grande maioria das pessoas, conforme Zehr (2008) apresenta as seguintes características frente a essas situações: ficam aterrorizadas por estar acontecendo isso com elas; é comum entrarem em pânico; surge um medo de morrer; podem ficar ‘paralisadas’, sem capacidade de reagir; sentem-se confusas, impotentes, apavoradas e vulneráveis.

Após essa reação inicial, conforme o mesmo autor, com o passar do tempo, novos sentimentos se agregam aos anteriores. Período esse que, conforme o autor pode ser identificado como ‘fase de retração’. A vítima pode ser tomada pelos seguintes afetos e comportamentos: Raiva do agressor, raiva dos outros - que poderiam ter evitado - e de Deus; crise de fé; culpa; ansiedade; suspeita/desconfiança; depressão; ausência de sentido; dúvidas e arrependimento; oscilações de humor; vergonha; sonhos e fantasias de vingança (culpa por isso); sentimento de que poderia ter evitado, de que foi culpa sua; necessidade de adaptarem-se as perdas objetivas e subjetivas; necessidade de lidar com uma nova auto-imagem - de alguém que não confia tanto; falta de pessoas para lhe escutarem (os amigos procuram evitar o assunto).

O ódio que se apresenta nas vítimas, que acaba vinculado a culpa, pode ser visto conforme Dourlen (2005), num entendimento psicanalítico. Para o autor, o ódio quando provocado pela humilhação é mais forte, pois, afeta o ‘ideal de eu’, as referências simbólicas do indivíduo, assim,

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Contrariando uma concepção corretamente admitida, o ódio, sublinha Régis Debray, é uma defesa eficaz. ‘O ódio funciona com a angústia’: a angústia de se estar narcisicamente ferido e que se torna mais lancinante à medida que o agressor pode e quer abrir uma fenda nas convicções ou afetos do sujeito. ‘o ódio é uma liga(...) reúne as vontades’ e, ao mesmo tempo, ‘é um sinal de desespero um pedido de segurança’.  Torna-se mais concentrado e obsessivo à medida que o sujeito se encontra em uma situação de fraqueza objetiva. Quando a opressão é vivida como intolerável. O sujeito é colocado diante de uma alternativa (frequentemente inconsciente): ou a agressividade ou o ódio são reprimidos e se voltam contra o eu, o indivíduo se identificando com o agressor. (DOURLEN, 2005, p. 93)

Ainda, é importante destacar que a raiva em relação ao ofensor pode, também, estar direcionada a recuperar o que se perdeu. E, que, frente às perdas, conforme Bowlby (1993, apud SILVA, J.E.M. 2008) existe um período natural de luto a ser vivido. “Aliás, a raiva precisa ser reconhecida como uma fase normal do sofrimento, uma fase que não pode ser pulada” (ZEHR, 2008, p.27). Caso essa etapa se estenda patologicamente, a vítima leva para frente uma série de conseqüências oriundas do momento do crime as quais afetam diversas áreas da sua vida – sono, apetite, interesse sexual, relacionamentos, saúde em geral. E, não são apenas os crimes mais violentos que produzem esse prejuízo. Crimes mais banais também são potencialmente causadores dos mesmos males. “Na verdade os efeitos psicológicos podem ser mais graves que a perda física” (ZEHR, 2008, p.25).

Considerando a intensidade dos sentimentos bem como a forma de reação, entre as vítimas existem diferenças pessoais consideráveis frente às situações traumáticas. No entanto, “sentimentos como o medo e raiva são quase universais e, muitas vítimas parecem transitar por estágios identificáveis de adaptação” (ZEHR, 2008, p.29). Ser vítima gera uma série de necessidades sendo que, a vítima ‘negligenciada’ poderá ter muita dificuldade para recuperar-se.

Para que a vítima consiga recuperar-se, conforme Zehr (2008), ela necessita sair da fase de ‘retratação’ para a fase de ‘reorganização’, deixando de ser vítima e passando a ser sobrevivente. Não mais sendo dominada pelo agressor. Para tal, algumas necessidades das vítimas precisam ser alcançadas: Ressarcimento/reparação pelas perdas (necessidade material e/ou simbólica - psicológica); necessidade de respostas às perguntas: O que aconteceu? Por que aconteceu comigo? Por que agi da forma que agi na ocasião? Por que tenho agido da forma como tenho desde aquela ocasião? E se acontecer de novo? O que isso significa para mim e para minhas expectativas?

Além de respostas, as vítimas também necessitam: oportunidade para expressar e validar suas emoções; necessidade de empoderamento (trocar fechaduras e elaborar novas rotinas para segurança - participar da solução do seu caso - sentir que possuem escolhas); necessidade de uma experiência de justiça (que as vezes pode confundir-se com vingança); necessidade de publicidade e não minimização; necessidade de equidade; necessidade de reconciliação e perdão; necessidade de proteção e apoio; necessidade de significado; necessidade de expor sua versão, de denunciar, de lamentar; necessidade de saber que passos estão sendo tomados para corrigir as injustiças e prevenir novos casos; necessidade   de serem consultadas em relação ao processo pois, a justiça pode dar uma estrutura de significado que confere sentido a experiência.  “Um indicador principal do sucesso da justiça restaurativa é a percepção, pela vítima, da extensão de seu envolvimento, do grau de reparação, e a percepção de justiça do processo e dos resultados.” (BAZEMORE; MCLEOD 2002 apud KOSS et al., 2005, p. 360).

Em relação à superação do sofrimento referente a ser vítima, Bettelheim (1989) comenta que, após ter sido libertado do campo de concentração, foi para os EUA e, procurou falar ao máximo e para o máximo de pessoas sobre a experiência que tinha vivido. Inicialmente entendia essa atitude em função da necessidade de esclarecer todos sobre o que ocorria na Alemanha nazista e, também, em função de uma responsabilidade com aqueles que ainda estavam prisioneiros. Por muitos foi ignorado em suas explanações. No entanto, tempos depois, percebeu que a sua vontade de fazer as pessoas entenderem o que se passava, recebia um incentivo de uma necessidade sua para que pudesse alcançar um domínio intelectual e emocional de sua experiência.

Segundo o mesmo autor, os sobreviventes dos campos de concentração (de acordo com suas características individuais) se utilizaram de três formas distintas de lidar com a sensação de que sua integração da personalidade falhou frente a uma situação traumática: alguns permitiram que a experiência os destruísse, outros tentaram negar qualquer impacto duradouro e, um terceiro grupo, envolveu-se em uma luta perpétua de conscientemente ir trabalhando o assunto e enfrentando, sem negar as mais terríveis dimensões da existência humana.

O primeiro grupo mencionado pelo autor refere-se a pessoas que, por suas características pessoais, não acreditaram que seria possível reintegrar sua personalidade. E, que se o fizessem, também não faria mais sentido, pois, existia algo integrado antes que fracassou. Isto, para essas pessoas, pode tirar o sentido de um novo esforço. Essa nova estrutura facilmente poderia ser destruída como a anterior.  Desiste então de tentar. Essas pessoas sofrem do que se chama de ‘Síndrome do Sobrevivente do Campo de Concentração’.  Conforme Bettelheim (1989), seu estado mental é semelhante daqueles que apresentam uma perturbação psiquiátrica depressiva ou paranóide. 

O segundo grupo mencionado utiliza a repressão e a negação, na tentativa de recuperar a sua integração que já existia e, também na intenção de mostrar aos agressores de que estes não obtiveram sucesso.  Estes indivíduos estão constantemente gastando muita energia para manter suas repressões bem como, apresentam uma fragilidade frente a novas dificuldades.

Os sobreviventes que negam que sua experiência no campo tenha demolido sua integração, que reprimem a culpa e a sensação de que devem cumprir alguma obrigação especial, freqüentemente vivem bastante bem no que concernem as aparências. Mas, emocionalmente, estão esgotados porque grande parte de sua energia vital exaure-se na tentativa de manter a negação e a repressão (...). (BETTELHEIM, 1989, p.41)

Já o terceiro grupo mencionado pelo autor é composto por aqueles que, por suas características pessoais, conscientemente e dolorosamente, optaram por não negar a situação vivenciada e, através de um trabalho permanente, gradativamente foram integrando-a a sua personalidade. Para tal é fundamental que o sentimento de culpa, os questionamentos, os pesadelos e tudo o mais relativo à experiência vivida não sejam reprimidos ou negados. Mas sim, elaborados aos poucos, de forma a obter algum significado do que ocorreu na vida do indivíduo. Esses indivíduos buscam construir algo novo tendo a mais ampla e possível consciência do que ocorreu com eles. 

Falando especificamente do processo de Justiça Tradicional e das vítimas, Koss et al. (org) (2005) destacam pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Alemanha (casos relativos a estupros).  As conclusões apontam para um sentimento, por parte das vítimas, de que a justiça tradicional foi insuficiente em relação a oferecer um sentimento de justiça. Outras pesquisas são apresentadas pelos autores, apontando o interesse das vítimas por propostas da Justiça Restaurativa. Entre elas, uma na Inglaterra, outra na Nova Zelândia.  Ambas deixam clara a existência de um grande interesse das vítimas de participarem de um encontro com o ofensor e/ou até, de fazerem um acordo com o mesmo. Ainda outra pesquisa, realizada nos EUA, aponta o aumento do sentimento de justiça experimentado pelas vítimas que participaram de processos restaurativos em comparação a participação em processos tradicionais de justiça.

Ainda, conforme Koss et al. (2005) o pedido de desculpas pelo infrator à vítima produz um ganho inicial relacionado ao fato desta ter a oportunidade de ver seu dano emocional reconhecido. Fato este que ajuda a aliviar sua raiva e amargura.  “Em estudos de laboratório, a raiva em vítimas se dissipou quando o infrator foi visto como responsável” (BENNETT; EARWAKER, 1994 apud KOSS et al., 2005, p. 295).

(...) as desculpas freqüentemente acontecem espontaneamente no encontro restaurativo. Em uma avaliação de encontros restaurativos, 96% das vítimas disseram que os infratores se desculparam durante o encontro, e 88% delas perceberam que ele parecia arrependido pelo que fizera (McCold & Wachtel, 1998). (KOSS et al., 2005, p.361)

Conforme Koss et al. (2005), a justiça convencional acaba restringindo o número de vítimas que sentem que as promessas de justiça foram cumpridas. E, até mesmo quando as penas são atribuídas, elas são muito distantes (atrasadas) e insuficientes para serem consideradas eficazes. “Além disso, o próprio processo de justiça exacerba a angústia da vítima em lugar de promover a cura” (KOSS et al., 2005, p.370).

Assim, de uma forma geral, considerando as vítimas, segundo Azevedo, A. G. (2005), a Justiça Restaurativa reforça a necessidade de “se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade” (p. 141). E ao mesmo tempo responsabiliza os ofensores frente às pessoas que foram vitimizadas, “restaurando as perdas materiais e morais das vitimas e providenciando uma gama de oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões” (p. 141). Desta forma, aumenta a percepção de segurança na comunidade, potencializa a resolução de conflitos e possibilita uma saciedade moral.

Para Scuro (2008), a JR atua fortemente contra certos tabus inquestionáveis que dão segurança duvidosa as conquistas do Direito Penal contemporâneo. Por outro lado, a Justiça Restaurativa pode oportunizar a reparação; oferecer maior segurança; permitir formas de encerrar uma etapa; possibilitar uma melhor compreensão do efeito dos comportamentos; permitir que o infrator se responsabilize; compreender as causas profundas do crime; promover o bem-estar comunitário; prevenir a delinqüência, etc.

Em fim, ser vítima de um crime não é algo a ser menosprezado. Cabe ao sistema público dar o devido atendimento às vítimas de crimes em nossa sociedade. As necessidades das vítimas vão muito além da simples condenação e exclusão do infrator. Frente a uma ineficácia do sistema oficial de justiça de dar a atenção ao que a vítima necessita a JR se apresenta como uma esperança a qual, quando aplicada aos casos possíveis, certamente proporcionará à vítima um caminho mais fácil de recuperação e enfretamento do sofrimento ao qual foi submetido.

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Sobre o autor
José Eduardo Marques da Silva

Psicólogo. Especialização em ACP com experiência em Mediação de Conflitos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Eduardo Marques. Justiça Restaurativa II: a vítima - implicações psicológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3505, 4 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23640. Acesso em: 4 nov. 2024.

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