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Guantánamo e as comissões militares: processo e julgamento dos criminosos de guerra

07/02/2013 às 16:15
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Analisa-se o método próprio dos Estados Unidos para processar e julgar criminosos de guerra, situação controversa à luz dos direitos humanos.

Havia escrito um pequeno artigo a respeito da criação do “Tribunal de Guantánamo” ("O Tribunal de Guantánamo... em que século estamos?"). Este pequeno artigo trouxe grandes inquietações principalmente referente as possibilidades de violações dos direitos humanos dos detentos e da impossibilidade de julgamento perante o Tribunal Penal Internacional.

Os Estados Unidos utilizam Comissões Militares para processar e julgar criminosos de guerra. Conforme Hennessy[1],  as bases jurídicas fundamentais para a constituição das comissões estão na Lei de Comissões Militares de 2009    (LCM/2009) e no Manual das Comissões Militares - edição de 2010.

O uso de comissões militares para processar criminosos de guerra remonta à Guerra Civil e também foi utilizada na Segunda Grande Guerra. A prática foi retomada em novembro de 2004, após a assinatura de uma Ordem Militar pelo Presidente Bush, dois dias após os ataques de 11 de setembro de 2001.

A Lei de Comissões Militares de 2006 foi aprovada pelo Congresso, depois que a Suprema Corte Constitucional decidiu que a lei não poderia ser conduzida sob a ótica do Código Uniforme da Justiça Militar, por carência de autorização expressa do Congresso Nacional, e violadora do direito internacional e da legislação  militar norte americana.

Neste sentido, cabe a indagação:

“a esta altura qual o interesse que essa legislação pode provocar além dos limites geográficos norte-americanos? A resposta não demanda muitas explicações. No mundo globalizado, tudo pode ocorrer no país que tem a hegemonia no campo econômico, político, cultural e, sobretudo, militar, importa a todos os cidadãos que vivam fora dele, máxime quando essa nação “superior” adotou, em nível internacional e a pretexto de garantir sua própria segurança, a estratégia da guerra preventiva.”[2]

A Lei de 2009, promulgada pelo Congresso sob a presidência de Barack Obama, trouxe significativas mudanças e é a atual lei que autoriza o uso destas comissões  para julgar e responsabilizar individualmente os criminosos de guerra. As mudanças, apesar de acrescentar melhorias, não foram suficientes, podendo ainda ser considerado um sistema precário de justiça. Conforme Joane Mariner[3], a lei não satisfaz as preocupações constitucionais e as políticas estabelecidas pelo governo Obama. Assim,“qualquer pessoa responsável pela atividade terrorista contra os EUA deveria ser julgada em tribunais regulares, cujos vereditos, ao contrário das comissões militares, são reconhecidos nacional e internacionalmente como legítimo”. “Qualquer veredito obtido nas comissões militares será controverso e sujeito a reversão na apelação.”

Pela lei, qualquer inimigo estrangeiro, sem privilégios beligerantes, está sujeito ao julgamento. Assim, excluem-se todas as categorias mencionadas pelo artigo 4º  da III Convenção de Genebra:

A. São prisioneiros de guerra, no sentido da presente Convenção, as pessoas que, pertencendo a uma das categorias seguintes, tenham caído em poder do inimigo:

1) Os membros das forças armadas de uma Parte no conflito, assimcomoosmembros das milícias e dos corpos de voluntáriosquefaçam parte destasforças armadas;

2) Os membros das outrasmilícias e dos outros corpos de voluntários, incluindoos dos outros corpos de voluntários, incluindoos dos movimentos de resistência organizados, pertencentes a uma Parte no conflito operando fora ou no interior do seu próprio território, mesmo se este território estiver ocupado, desde que estas milícias ou corpos voluntários, incluindo os dos movimentos de resistência organizados, satisfaçam as seguintes condições:

a) Ter à sua frente uma pessoa responsável pelos seus subordinados;

b) Terum sinal distinto fixoque se reconheça à distância;

c) Usarem as armas à vista;

d) Respeitarem, nas suas operações, as leis e usos de guerra.

3) Os membros das forças armadas regulares que obedeçam a um Governo ou a uma autoridade não reconhecida pela Potência detentora;

4) As pessoas que acompanham as forças armadas sem fazer parte delas, tais como os membros civis das tripulações dos aviõesmilitares, correspondentes de guerra, fornecedores, membros das unidades de trabalho ou dos serviços encarregados do bem-estar das forças armadas, desde que tenham recebido autorização das forças armadas que acompanham, as quais lhes deverão fornecer um bilhete de identidade semelhante ao modelo anexo;

5) Membros das tripulações, incluindo os comandantes, pilotos e praticantes da marinha mercante e as tripulações da aviação civil das Partes no conflito que não beneficiem de um tratamento mais favorável em virtude de outras disposições do direito internacional;

6) A população de um território não ocupado que, à aproximação do inimigo, pegue espontaneamente em armas, para combater as tropas de invasão, sem ter tido tempo de se organizarem força armada regular, desde que transporte as armas à vista e respeite as leis e costumes da guerra.

B. Beneficiarão também do tratamento reservado pela presente Convenção aos prisioneiros de guerra:

1) As pessoas que pertençam ou tenham pertencido às forças armadas do país ocupado se, em virtude disto, a Potência ocupante, mesmo que as tenha inicialmente libertado enquanto as hostilidades prosseguem fora do território por ela ocupado, julgar necessário procedera o seu internamento, em especial depois de uma tentativa não coroada de êxito daquelas pessoas para se juntarem às forças armadas a que pertenciam e que continuam a combater, ou quando não obedeçam a uma imitação que lhes tenha sido feita com o fim de internamento;

2) As pessoas pertencendo a uma das categorias enumeradas neste artigo que as Potências neutras ou não beligerantes tenham recebido no seu território e que tenham de internar em virtude do direito internacional, sem prejuízo de qualquer tratamento mais favorável que estas Potências julgarem preferível dar-lhes, e com execução das disposições dos artigos 8.º, 10.º, 15.º, 30.º, 5.º parágrafo, 58.º a 67.º, inclusive, 92.º, 126.º e, quando existam relações diplomáticas entre as Partes no conflito e a Potência neutra ou não beligerante interessada, das disposições que dizem respeito à Potência protectora. Quando estas relações diplomáticas existem, as Partes no conflito de quem dependem estas pessoas serão autorizadas a exercer a respeito delas as funções atribuídas às Potências protectoras pela presente Convenção sem prejuízo das que estas Partes exercem normalmente em virtude dos usos e tratados diplomáticos e consulares.

C. Este artigo não afecta o estatuto do pessoal médico e religioso tal como está previsto no artigo 33.ºdesta Convenção.

A lei enquadra, ainda, como criminosos de guerra aqueles: 1) que se envolverem em hostilidades contra os Estados Unidos e seus parceiros de coalizão; 2) que propositalmente e materialmente apoiarem hostilidades contra os Estados Unidos e seus parceiros de coalizão; 3) que eram parte da Al-Qaeda, no momento da alegada ofensa prevista no Capítulo 47ª, do Título 10, do United States Code(USC).

Uma característica destas comissões, além de não terem jurisdição sobre os cidadãos americanos, é de que não há proibição de apresentação de acusações criminais contra menores, diferentemente do Tribunal Penal Internacional, onde as acusações não alcançam a menoridade. De acordo com o Capitão Iglesias[4], este precedente histórico foi estabelecido após a Segunda Guerra, quando as potências aliadas processaram nazistas menores de idade por crimes de guerra. 

Os “supostos criminosos ”são denunciados por meio acusações e documento deespecificações, semelhante aométodo pelo qual os membros das Forças Armadas norte-americanassão acusadosem procedimentos de Corte Marcial. Neste documento deve conter pelo menos um dos trinta e dois crimes enumerados na LCM/2009. São elencados, além dos crimes semelhantes aos crimes de guerra, tipificados no artigo 2º § 6º TPI e da Convenção de Genebra (tomada de reféns, pilhagem, uso indevido de bandeira de trégua), conspiração, assassinato em violação à lei da guerra, fornecimento de material ao terrorismo, espionagem, dentre outros. 

A denúncia deve conter uma narrativa que descreva claramente os fatos que constituem a infração, podendo ser apresentada por qualquer pessoa, devendo a acusação formal ser assinada sob juramento de um membro das Forças Armadas dos Estados Unidos, podendo a crença do acusador ser baseada nos relatos de outros.

De acordo com Iglesias, combatentes inimigos capturados, detidos em Guantánamo, não têm direito à liberdade imediata e poderão ser mantidos sob detenção à luz da lei de guerra, potencialmente até as hostilidades terminarem. As regras estabelecidas pela Secretaria de Defesa exigem que, uma vez detido, o combatente deverá ter sua acusação formalizada dentro de 30 dias e deverá ser julgado no prazo de 120 dias, podendo o juiz dilatar os prazos caso requerido por ambas as partes. As regras para o julgamento rápido exigem um julgamento no prazo máximo de 70 dias a partir da apresentação das acusações.

Após a apresentação da acusação, esta é encaminhada para a autoridade da convocação. Esta autoridade é um representante da Secretaria de Defesa cuja única responsabilidade é a de supervisionar e gerenciar o processo  das comissões militares. Esta autoridade, sob o aconselhamento de um consultor jurídico, pode rejeitar as acusações e especificações, encaminhá-las para outra autoridade ou encaminhar para o julgamento de uma comissão.  

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A Comissão Militar é composta de um juiz militar, que também figura como presidente, e pelo menos 12 membros, que são equivalentes aos “jurados” num tribunal comum que julgam os crimes contra a vida. Poderá haver a designação de um número menor de jurados, nunca inferior a nove, se houver impossibilidade de composição.Em casos não capitais, esta composição se resume a um juiz militar e cinco membros.

Poderá ser membro qualquer oficial militar de carreira, da ativa, independente de sexo ou da força a que pertença, não sendo suas identidades reveladas sem a aprovação prévia do juiz militar.

São membros votantes, designados para este serviço pela autoridade convocatória, depois de terem sido melhor “qualificados” com base na idade, educação, formação, experiência, tempo de serviço e comportamento militar. O juiz militar está proibido de votar e de se comunicar com os membros fora da sala do tribunal. São designados também um conselheiro militar para a acusação e um para a defesa. Sendo estrangeiros, os acusados estão autorizados a ter advogados de seus países de origem atuando como consultores jurídicos, durante todo o processo judicial. Como não são advogados com registros válidos, estão impedidos de interpelar, atuando desta forma, através da defesa designada.

As audiências são realizadas em Guantánamo, em salas designadas para este fim, podendo as mesmas serem observadas por membros da mídia, representantes de organizações não governamentais, bem como da Anistia Internacional, doHuman Rights Watch, da American Civil Liberties Union.

Os presos, a princípio, gozam da presunção de inocência, do direito de estarem presentes em seu julgamento, do privilégio contra auto-incriminação e do direito de não testemunhar. Podem apresentar provas e interrogar testemunhas de acusação e têm  direito a um advogado nomeado. Podem, ainda, requerer a oitiva de testemunha que esteja sob a jurisdição americana. Acordos pré-julgamentos são permitidos como: a possibilidade e retirar uma acusação formal, ofensa de pena capital para não capital, medidas específicas na sentença, renúncia do direito de apelar, dentre outras.

Proíbe-se qualquer declaração que foi provocada por tortura ou tratamento desumano ou cruel. Os julgamentos são públicos, exceto para resguardo da segurança física do preso, do acesso e tamanho das instalações, e da segurança nacional.

Os elementos probatórios  são menos restritivos, pois o juiz militar será o responsável para validar os mesmos, após a constatação de indícios de sua confiabilidade e considerando uma série de fatores descritos na LCM/2009[5].

As penas podem variar: confinamento, multa (sem valor arbitrado), pena de morte, punição única e liberdade condicional. Apesar da previsão da liberdade condicional, não há procedimento previsto, tornando esta uma pena de “fachada”.

O condenado pela comissão tem o direito de recorrer da condenação, sendo esse recurso  automático, com previsão da LCM/2009. A autoridade de convocação será responsável pela revisão do processo, incluindo qualquer acordo, bem como a revisão da sentença. Pode suspender qualquer parágrafo ou reduzir a pena imposta, sendo vedado o aumento da pena. Este apelo será ouvido pela Comissão de Revisão Militar do Tribunal Americano, que podendo, ainda, ser levado para o Tribunal Federal de Apelações do Distrito de Columbia e,em última instância, para a Suprema Corte Americana, caso se faça necessário.

Nota-se que existe um método próprio no país norte-americano para processar e julgar criminosos de guerra. Tal conduta, à luz dos direitos humanos, é controversa, o que nos permite ampla abertura de divergência do procedimento próprio instaurado.


Notas

[1] Hannessy, Paul H. Prosecution by Military Commission versus Federal Criminal Court: A Comparative Analysis. Federal Probation – a journal of correctional philosophy and practice. Volume 75 Number 1, Jun. 2011. Disponívelem: <http://www.uscourts.gov/uscourts/ FederalCourts/PPS/Fedprob/2011-06/index.html>. Acessoem  17nov 2012.

[2] Boletim 240. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Mundo às Avessas. Disponível em< http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:43LHsN7cQzsJ:www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php%3Fid%3D3325+lei+das+comissoes+militares+americanas+2009&cd=6&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=safari>. Acessoem 10 de nov de 2012.

[3] Diretora do Departamento de Terrorismo e Contraterrorismo do ProgramaHuman Rights Watch.

[4] O capitão da Marinha dos Estados Unidos David C. Iglesias faz parte do Judge Advocate General’s Corps (JAGC) serviu, desde 2008, no Gabinete de Comissões Militares comolíder de equipe, promotor e porta-voz.

[5] Para maioresinformaçõesconsultar “Military Commissions Act of 2009”.

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Sobre a autora
Carina Barbosa Gouvêa

Doutora em Direito pela UNESA; Mestre em Direito pela UNESA; Advogada especialista em Direito Militar/ConstitucionalPesquisadora Acadêmica do Grupo "Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional"; Pós Graduada em Direito do Estado e em Direito Militar, com MBA Executivo Empresarial em Gestão Pública e Responsabilidade Fiscal; E-mail: <[email protected]>. <br>Blog: Dimensão Constitucional < http://dimensaoconstitucional.blogspot.com.br/>.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVÊA, Carina Barbosa. Guantánamo e as comissões militares: processo e julgamento dos criminosos de guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3508, 7 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23668. Acesso em: 28 mar. 2024.

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