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Prestação de contas: se não presta, não presta

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Somos tradicionalmente focados na informação e não do uso que vai ser dado a essa informação. O foco deve ser no receptor das informações e no porquê de serem produzidas. Fugir disso é cair em um emaranhado de dados desconexos.

Vai chegando o final do ano, encerra-se mais um ciclo e nos vemos as voltas, mais uma vez, com a questão da prestação de contas. Uma situação comum  à vida de todo gestor, envolta de ideias pré-concebidas e preconceitos  e que será objeto de reflexão nas breves linhas desse artigo.


1 - Prestação de contas

A ideia de se prestar contas não é nova. A bíblia, livro maior dos cristãos, já mostrava no Novo Testamento (Mt: 25) o Senhor da vida pedindo informações sobre as providências adotadas em relação às moedas recebidas, na famosa “Parábola dos talentos”. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, documento basilar da Revolução Francesa, já asseverava que “(...) todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.”  E ainda que  “ (...) a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.”

A Constituição Federal de 1988 indica o dever de prestar contas de forma límpida, no parágrafo único do Art. 70- “Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”. Desde a Constituição de 1891, inclusive, todas as Cartas Magnas brasileiras prevêem, de alguma forma, a prestação de contas dos recursos públicos.

Mas, o que seria então prestar contas? Bem, dentro dos sistemas administrativos diversos, as limitações humanas na execução das tarefas atribuídas nos forçam a delegarmos a execução das tarefas, com graus de autonomia diversos concedidos aos executores. Esses prepostos agem em nome do responsável pela tarefa primária, dividida agora em várias sub-tarefas, e após um período de tempo, estes executores devem prestar contas do que fizeram com os recursos recebidos, demonstrando que realizaram o acordado.

É uma discussão de poder, de submissão a um ordenamento, demonstrado pelo ato de provar o seu fiel cumprimento. Mas também é uma discussão contratual, sinalagmática, de adimplemento de uma parte de um acordo.  E dessa demonstração da exatidão do cumprimento deriva a ideia de prestar contas, contas que devem “fechar”, pois o uso de cálculos permite que seja aferido o recebido, as ações e os resultados, em uma estrutura aritmética de igualdade simples.

Receber a delegação de outrem  é para cumprir uma finalidade maior,  o que não ocorre por conta, às vezes, da preguiça, de interesses privados, de razões conjunturais, de fenômenos aleatórios e ainda, pela intercessão de outros interessados. Entretanto, apesar dessas causas listadas, deve-se ter em mente que prestar contas é diferente de ser culpabilizado. Pelo contrário, é um instrumento que resguarda o agente delegado, certificando que ele, formalmente, cumpriu o seu dever, e em que medida.

De forma costumeira, prestar contas é um ato voluntário, um dever já pré-agendado no momento da delegação. Caso não se preste contas, a autoridade delegante poderá “tomar as contas”, avaliando de forma compulsória o que foi feito e responsabilizando quem de direito a reparar o não executado. Por isso existe a figura do Rol de responsáveis, que delimita o alcance e a individualização dos responsáveis por prestar contas.

Da mesma forma, a prestação de contas exige expertise, seja de quem demonstra a realização do que foi feito, seja da parte de quem analisa, para concluir que realmente a obrigação está atendida. É também um processo de comunicação, onde o recebedor de recursos informa o que foi feito dos recursos recebidos a quem o concedeu.

Na gestão pública ou privada, prestamos contas cotidianamente, pois sempre existem as relações de poder e de delegação, ainda que no setor público esses delegantes sejam menos individualizados, dado que se encontram na sociedade e seus diversos segmentos. Peter Drucker, na sua sabedoria, dizia que em relação ao fundo público, se não houvessem os processos e os formulários, seríamos condenados a pilhagem sistemática. Tal sentença de tão celebre pensador  reforça o valor dos mecanismos burocráticos nessa tarefa de prestar contas, na busca de se identificar, registrar e formalizar os atos, ainda que o enfoque dado a esse processo de agrupamento de informações seja muitas vezes débil para inibir desvios e identificar fragilidades, por ter uma visão puramente documental, ensimesmada, no aspecto negativo da burocracia.


- A finalidade de se prestar contas

A finalidade de se prestar contas é demonstrar a autoridade delegante que os objetivos propostos foram cumpridos (resultados) e que esses processos guardaram adequação (conformidade) com as regras e princípios estabelecidos em um contexto mais amplo. Sim, pois se o recebedor de recursos descumpre as normas e princípios, a sua gestão terá consequências reflexas para todo o sistema, dentro do aspecto funcional do princípio da legalidade.

As contas, então, são prestadas a alguém, que analisa o apresentado a luz da conformidade e dos resultados, emitindo uma opinião, que certifica as contas, determinando providências corretivas, preventivas e até punitivas. Isso por que a delegação de hoje será substituída por outra amanhã, com outro ator,  e as informações obtidas no processo de  prestação de contas servem para melhorar os processos e até excluir do sistema os agentes que a ele não se adequam.

A finalidade da elaboração do processo de prestação de contas deve se focar na possibilidade dos dados ali apresentados servirem para o destinatário de essas informações concluir pelo cumprimento dos resultados e adequação dos processos, e ainda, permitir que os erros detectados sejam computados em ações corretivas e que, de forma preventiva, atuem sobre a gestão, tornando-a mais eficaz e eficiente, atuando sobre o sistema.

Da mesma forma, o gestor ao construir o seu processo de contas, efetua uma recapitulação de atos e fatos, conduzindo-o a uma reflexão que permite a sua auto avaliação da gestão, sopesando erros e acertos, na construção da melhoria contínua.

Não pode ser deixado de citar também que o processo de prestar contas, no que tange a recursos públicos, é um instrumento de transparência e de consequente  indução do controle social, precisando para isso ser construído de forma inteligível para a população, para que reverta em informações que ajudem a avaliação daquela gestão por um público leigo, permitindo a esse concluir pela qualidade dos serviços prestados e ainda, que identifique como interagir na melhoria dos processos e na vigilância dos seus prepostos.

Essa discussão serve para ilustrar que prestar contas não é um listar de documentos sem sentido, um agrupamento de papéis que por vezes necessita de um carrinho para o seu transporte. O papel pode conter muita informação inútil, ou ainda, que não permite a análise. Por vezes, o papel  pouco prova da veracidade dos atos e fatos, tendo um papel remoto e assíncrono, que pouco auxilia para avaliar os resultados e a conformidade daquela parceira.

Prestar contas é dizer o que estamos fazendo e como estamos fazendo, o que pode se dar de forma cotidiana ou em ciclos, para fins operacionais. A prestação de contas tem um caráter mais relevante do que a transparência, a partir do momento que ela transcende a disponibilização de informações, constando desta a explicação do que foi feito na gestão, o como e o por quê, focado no receptor dessa mensagem. Isso é bem diferente de apenas um amontoado de dados organizado em papeis.

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O uso de ferramentas de tecnologia da Informação, em especial na transferência de recursos para diversos atores em diversos locais, possibilita a simplificação das prestações de contas, e ainda, a identificação de fragilidades que podem ser mapeadas e revertidas em ações que promovam a melhoria global da gestão. Mas, para isso, faz-se necessário o desenvolvimento de metodologias e processos, seja do lado de quem presta contas, seja do lado de quem analisa as contas, que permitam identificar o que realmente é relevante e como deve ser sua análise com o propósito de obter informação  útil e que propicie a melhoria do processo.

O uso de fotografias, georreferenciamento, cruzamento de dados informados com fontes externas e outros bancos de dados e ainda, a avaliação in loco mediante um critério de riscos. São estas algumas práticas pioneiras que permitem transcender a ideia de prestar contas de um amontoado de processos para uma metodologia que permita que a certificação ocorra com o mínimo de custos e o máximo de efetividade pela ótica do analisador das contas, contribuindo, de forma concomitante, com a produção de informações gerenciais que melhorem a gestão a partir do processo de contas.


3 - Prestar contas-Um exercício democrático

O gestor de recursos públicos, de um modo geral, não gosta de prestar contas, Diz que é burocrático, que atrapalha, que não serve para nada. Por outro lado, herdamos de nossos antecessores portugueses essa ideia cartorial, de se registrar tudo, o que faz dos modelos de prestação de contas focados na informação e não do uso que vai ser dado a essa informação. O foco é no receptor das informações e o porquê que elas são produzidas. Fugir disso é cair em um emaranhado de informações desconexas.

Entretanto, é preciso desenvolver tecnologias e procedimentos que aperfeiçoem a prestação de contas de recursos públicos, atribuindo a esses processos um sentido estratégico, de aferição de resultados e produção de feedbacks para a melhoria contínua e ainda, como oportunidade de autocontrole, de reflexão do gestor sobre a sua prática.

A democracia não prescinde da prestação de contas, como mecanismo de informação ao povo, titular do poder, do cumprimento dos objetivos pactuados nos programas de governo constantes do orçamento, e de responsabilização dos acertos e dos erros, dentro do contexto da accountability.

Delegação sem prestar contas não presta a um gasto de qualidade. Não basta apenas aos delegadores distribuir recursos e estabelecer normas, mas sim atuar no acompanhamento que culmina com a prestação de contas, contribuindo para o atingimento das finalidades, no mundo real. Delegar é uma arte e a prestação de contas é uma ferramenta essencial nesse sentido.

A prestação de contas na administração pública se faz em vários momentos, seja nas contas anuais dos administradores julgados pelos Tribunais de Contas, sejam nas contas do Presidente da República, as chamadas contas de governo, ou ainda, nas descentralizações de recursos de um ente para o outro, nas ações em parceira no contexto federativo, nos chamados convênios e outros instrumentos congêneres.

Em todas essas situações, e em outras que existirem a delegação, as reflexões aqui apresentadas nos fazem ver a prestação de contas como algo além de uma formalidade, e sim como um instrumento valioso da gestão, que pode  e deve ser bem utilizado, sabendo separar o joio do trigo do que é uma maneira de simplificar e otimizar esse processo ou torna-lo um mero aglomerado de informações a onerar o sistema, sem contribuir para a sua melhoria.

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Sobre o autor
Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Analista de Finanças e Controle (CGU-PR). Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em Ciências Navais com Habilitação em Administração (Escola Naval).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Marcus Vinicius Azevedo. Prestação de contas: se não presta, não presta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3509, 8 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23681. Acesso em: 23 abr. 2024.

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