Artigo Destaque dos editores

O controle de constitucionalidade das leis e o Poder Executivo

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

5.  Quem, no Executivo, pode deixar de aplicar a lei tida por inconstitucional?

Será que qualquer servidor público dos quadros do Executivo pode deixar de aplicar uma lei caso a entenda inconstitucional?

A resposta é negativa, pois a própria CF só conferiu, no âmbito deste Poder, aos Chefes do Executivo – Presidente e Governadores, nos termos do art. 103, I e V – legitimidade para ajuizar ADI e ADC, donde ser prerrogativa destes a provocação do Judiciário em sede de controle concentrado.

Como, na tese aqui defendida, o Executivo só pode deixar de aplicar lei inconstitucional caso provoque, o mais rápido possível, o Judiciário, forçoso concluir que só o Chefe do Executivo pode tomar essa decisão, pois só este pode ajuizar ADI ou ADC.

Seria incompreensível um Procurador de Estado, por exemplo, declarar uma lei inconstitucional e não aplicá-la a casos concretos, se o Chefe do Poder discordar da suposta inconstitucionalidade e decidir não ajuizar a respectiva ação, haveria, aí sim, ofensa à Separação dos Poderes, pois servidores estariam concorrendo com o Judiciário no controle de constitucionalidade das leis.

O respeito hierárquico e a necessidade de uniformidade no tratamento das questões também estão a corroborar essa competência exclusiva do Chefe do Executivo para autorizar a inaplicabilidade de suposta legislação inconstitucional.

Nessa toada, percebe-se que se o Executivo deixar de aplicar lei por suposta inconstitucionalidade deve fazê-lo para todos e em todas as situações, por exigência do princípio da isonomia, e só o Chefe do Poder detém competência para determinar a todos os seus membros essa uniformidade no tratamento da matéria.

Não fosse assim o princípio da segurança jurídica também estaria ameaçado, pois cada servidor interpretaria e aplicaria a lei como bem quisesse, sendo provável a existência de entendimentos diversos, donde a lei seria aplicável para uns e inaplicável para outros, pondo em risco a confiabilidade do processo de tomada de decisões pelo Executivo.

Daí a posição defendida por Elival Silva Ramos:

por se tratar de medida extremamente grave e com ampla repercussão nas relações entre os Poderes, cabe restringi-la apenas ao Chefe do Poder Executivo, negando-se a possibilidade de qualquer funcionário administrativo subalterno descumprir a lei sob a alegação de inconstitucionalidade. Sempre que um funcionário subordinado vislumbrar o vício de inconstitucionalidade legislativa deverá propor a submissão da matéria ao titular do Poder, até para fins de uniformidade da ação administrativa.[21]

Assim, caso algum servidor se convença da inconstitucionalidade de certa disposição legislativa, a única alternativa é suscitar essa inconstitucionalidade perante o Chefe do Poder Executivo, que caso concorde com esta posição deverá autorizar a sua inaplicabilidade e, paralelamente (o mais rápido possível), ajuizar a respectiva ADI.

Por fim, destaque-se ainda que caso o STF interprete de forma diferente, considerando constitucional a respectiva lei, a sustação da sua aplicabilidade poderá ter produzido efeitos negativos capazes de gerar eventual responsabilização, a ser suportada por quem a autorizou.


6. Conclusões

À guisa de conclusão, pode-se dizer que:

O princípio da Separação dos Poderes hoje não mais pode ser compreendido de forma estática, como uma mera e rígida “Separação”, devendo-se contextualizá-lo como sendo uma verdadeira “colaboração” para que o poder político atinja, o quanto mais possível, as finalidades estabelecidas no texto constitucional - com especial destaque à realização dos direitos fundamentais -, asseverando-se, isso sim, que cada um dos órgãos autônomos incumbidos de uma das três funções estatais as exerça com absoluta primazia, mas não exclusividade.

O controle de constitucionalidade busca a adequação material e formal das leis e atos normativos com relação à Constituição Federal, visando assegurar a sua supremacia, instrumento fundamental para conferir racionalidade, harmonia e coerência ao sistema, expelindo as normas conflitantes com a Carta Maior.

A forma típica de controle de constitucionalidade é aquela exercida em caráter repressivo pelo Judiciário, podendo ser difuso (também denominado concreto, aberto, ou por via de exceção), ou concentrado (também chamado abstrato).

Naquele, a suposta inconstitucionalidade é incidental, pois algum direito subjetivo seria prejudicado pela aplicação de uma lei inconstitucional, não sendo o pedido principal, que sempre deve está relacionado a uma pretensão resistida, de modo que o Judiciário não declara a norma inconstitucional, apenas afasta a sua aplicação àquele caso concreto.

Já no controle concentrado, o objeto principal é a verificação de compatibilidade entre a lei e a Constituição, visando a tutela da ordem constitucional e não de direitos subjetivos; de modo a ser um processo objetivo, sem partes, que tem natureza dúplice (ADI improcedente, significa que a norma é constitucional),  onde o STF não se vincula a causa de pedir. Destacando-se que nas ADIs as decisões tomadas são erga omnes, valendo contra todos, até porque o processo não tem partes, e vinculantes, com relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, tal qual disposto no parágrafo único do art. 28 da Lei Federal nº 9.868, de 10 de novembro de 1999.

Quanto à possibilidade do Executivo deixar de aplicar ato normativo por entendê-lo inconstitucional, havia um certo consenso em sentido afirmativo antes da CF de 1988. Porém, com o advento da nova ordem constitucional ora em vigor, que conferiu ao Presidente e aos Governadores legitimidade para a propositura de ADIs e ADCs, alguns doutrinadores passaram a questionar essa possibilidade do Executivo deixar de aplicar lei por entendê-la inconstitucional, sob os argumentos de que: a Separação dos Poderes conferiu ao Judiciário o monopólio da retirada das normas inconstitucionais do ordenamento jurídico, tendo o Executivo legitimidade para provocar, de forma concentrada, referido controle, inclusive podendo pedir decisão cautelar sobre o assunto; o princípio da presunção de constitucionalidade das leis exige o cumprimento destas; existe uma vocação do Executivo ao autoritarismo.

Quanto à aplicação do princípio da Separação dos Poderes no controle de constitucionalidade, imperioso destacar caber ao Judiciário a função precípua de exercer esse controle, dando sempre a última palavra sobre o assunto. Porém, impedir uma colaboração do Executivo, ao sustar, sempre em caráter provisório, até a manifestação final do Judiciário, a aplicação de leis tidas por inconstitucionais, só seria admissível num Estado mínimo, pois no Estado Democrático de Direito a geração de efeitos de leis inconstitucionais pode ter consequências danosas em curto espaço de tempo, danos estes que podem e devem ser evitados caso o Executivo suspenda o cumprimento desses atos normativos até a manifestação final do Judiciário.

Com efeito, o mecanismo dos “freios e contrapesos” admite a coparticipação do Executivo e do Judiciário na tarefa de controlar atos normativos com relação à CF, desde que caiba ao Judiciário uma função claramente prevalente nessa tarefa, sendo permissível o Executivo adiantar o seu entendimento sobre a inconstitucionalidade de certa lei, sustando-lhe desde logo a aplicação ao tempo em que provoca a manifestação final do Judiciário sobre o assunto, em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Excluir-se essa coparticipação do Executivo significaria tolhê-lo de interpretar o texto constitucional, de forma a poder responder com agilidade a inúmeras demandas que lhes são diretamente dirigidas em face dessa interpretação.

Já no que pertine à presunção de constitucionalidade, assim entendida a presunção de conformidade e validade das normas infralegais com relação à CF até que se prove o contrário, está é uma presunção relativa, capaz de ser contraditada, obviamente desde que demonstrados fortes argumentos para tanto, sendo muito forte o ônus argumentativo exigido do intérprete para justificar a inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo Parlamento.

Nesse ponto, desde que haja fortes razões justificadoras, sendo patente a violação a dispositivos constitucionais, é possível se deixar de aplicar uma lei por suposta ofensa à CF. A presunção de constitucionalidade cede lugar à supremacia da Constituição, sendo a aplicação da lei suspensa em face de conflito desta com relação ao texto constitucional.

Com efeito, a construção hermenêutica hodierna exige, inclusive do Executivo, a utilização dos princípios e regras constitucionais na tarefa de descobrir os significados dos textos legais de modo a bem aplicar o Direito, sendo cogente a necessidade de trabalhar e aplicar o texto constitucional, bem como inerente a função de negar aplicação à legislação inferior incompatível com a CF.

Já a alegação de tendência ao autoritarismo é um argumento sociológico que deve ser lido e contextualizado num universo de risco à democracia, situação aparentemente inaplicável ao atual estágio de desenvolvimento das Instituições em nosso país, ressalvando-se apenas e novamente sempre caber ao Judiciário a última e definitiva palavra sobre o assunto.

Enfim, a busca pela manutenção da Supremacia e máxima eficácia da Constituição, que por meio dos seus princípios orienta a interpretação de toda a legislação infraconstitucional, não exclui, antes exige do Executivo uma atitude de ativo e responsável intérprete do texto Supremo, cabendo-lhe, nessa tarefa hermenêutica, sempre que se deparar com normas conflitantes com o seu texto, suspender-lhe a aplicabilidade e provocar o quanto antes uma posição definitiva sobre o assunto, a cabo do Judiciário.

Nessa tarefa, a necessidade de tratamento isonômico, a segurança jurídica, o respeito à Separação dos Poderes, o princípio hierárquico e a legitimidade para iniciar o controle concentrado de constitucionalidade conferem apenas ao Chefe do Executivo o poder de sustar a aplicabilidade de normas inconstitucionais.


Notas

[1] MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O Espírito das Leis. Introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

[2] Sobre o assunto confira-se: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 113-123; DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 223-259.

[3] Sobre os modelos do princípio confira-se: SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 430 s.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

[4] CLÈMERSON, Merlin Clève. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 31.

[5] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 69.

[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda n. 1 de 1969. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 575.

[7] FREIRE, André Luiz. Apontamentos sobre as Funções Estatais. Revista de Direito Administrativo, nº 248/13-53, São Paulo: Editora Atlas, maio/agosto 2008. Ressalve-se, contudo, que o autor parte do critério formal, do regime jurídico constitucionalmente posto, para encontrar além das três funções típicas, uma quarta função, dita política ou de governo, pelo qual o Estado edita atos jurídicos, no exercício de competência discricionária, fundados na CF e sujeitos ao controle de constitucionalidade.

[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 247.

[9] Sobre o assunto Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 135 ss; FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 811 ss; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 267 ss.

[10] VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 317-320. Destaque-se que à época não havia a possibilidade do Executivo provocar diretamente o controle abstrato pelo Judiciário.

[11] STF. Representação de Inconstitucionalidade nº 980/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.09.1980.

[12] STJ. REsp 23.121-92/GO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 08.11.1993, p. 23.521.

[13] VELOSO, Zeno. Ob. Cit, p. 322-328.

[14] Até porque, a partir da EC nº 16, de 26 de novembro de 1965, o Executivo poderia representar ao Procurador-Geral da República para que este provocasse o Judiciário. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 1141 s.

[15] CUNHA JR. Dirley da. Controle de Constitucionalidade – Teoria e Prática. 4ªed. Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 30 ss.

[16] MELO, Angelo Braga Netto Rodrigues de. Regras vs. Princípios? Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2286, 4 out. 2009. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/13529. Acesso em: 21 jan. 2013.

[17]  MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública.  São Paulo: Dialética, 1999, apud LIMA NETO, Manoel Cavalcante de. Direitos Fundamentais dos Contribuintes: limitações constitucionais ao poder de tributar.  Recife: Nossa Livraria, 2005, p. 160-169.

[18] MELO, Angelo Braga Netto Rodrigues de. Substituição Tributária Progressiva no ICMS: Teoria e Prática. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2008, p. 125 s.

[19] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp 23.121-92/GO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 08.11.1993, p. 23.521.

[20]BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 300.

[21] RAMOS, Elival Silva. A inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 238. Apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 693.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Angelo Braga Netto Rodrigues de Melo

Especialista e Mestre em Direito pela UFAL. Professor de Direito Civil, Administrativo e Tributário dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação de diversas instituições de Ensino Superior. Autor do livro "Substituição Tributária Progessiva no ICMS - Teoria e Prática". Procurador de Estado. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Angelo Braga Netto Rodrigues. O controle de constitucionalidade das leis e o Poder Executivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3524, 23 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23703. Acesso em: 27 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos