3 O ACESSO À JUSTIÇA
Antigamente, imaginava-se que o “acesso à justiça” era apenas formal, sendo apenas uma viabilização do acesso ao burocrático, não passando da mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingressar em juízo. Porém, hoje se entende que deve se dar um acesso substancial, permitindo ao jurisdicionado (destinatário da jurisdição) condições mínimas de se obter uma decisão com justiça, de uma perspectiva axiológica.
Portanto, tanto nos casos de controle jurisdicional indispensável, quanto nos de insatisfação de uma pretensão por pessoa que podia satisfazê-la, o interesse levado ao processo pela parte urge por uma solução que se faça com justiça para as partes do processo e do conflito existente. Dessa forma, como diria Mauro Capeletti, o acesso à justiça é “ter acesso a uma ordem jurídica justa”, tratando as partes com o foco em se obter uma resposta justa.
Em direção ao acesso à justiça convergem princípios e garantias que vêm sendo destacados por diversos processualistas da modernidade. Assim, o acesso à justiça está vinculado com a universalidade da jurisdição, ou a ampla admissão de pessoas e causas no processo; com a garantia do devido processo legal; com a participação pela parte na formação do convencimento do juiz, através do princípio do contraditório, que será pormenorizado em tópico posterior; e com a efetividade de uma participação dialogal no processo. Princípios que visam à garantia da pacificação de conflitos com justiça.
Para a efetividade do processo, para o efetivo acesso à justiça, faz-se necessária a superação de óbices que atrapalham a boa qualidade do acesso. Um deles se situa no campo da admissão ao processo, no ingresso em juízo. Com base nisso é preciso que se elimine a dificuldades socioeconômicas que impedem ou desanimem as pessoas de litigar. Para isso, deve-se cumprir com a obrigação constitucional de assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, inciso LXXIV), adequando-se também o custo da justiça, institucionalmente falando, aos benefícios por ela pretendidos, permitindo, além disso, a litigância em defesa de interesses supraindividuais, como no mandado de segurança coletivo, por exemplo.
Quanto ao modo de ser do processo, é preciso que o devido processo legal seja observado, garantindo às partes a participação em diálogo com o juiz (participação em contraditório), que deve ser protagonista ativo da relação processual. Na seara da justiça das decisões, o juiz deve sempre se guiar pela justiça na apreciação de provas, enquadramento de fatos às normas, interpretação de textos legislativos, em tudo. Já no tocante à efetividade das decisões, tem-se que “todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2012, p. 43), o que deve servir de precaução contra decisões que tornem inúteis ou pouco úteis as medidas judiciais, evidenciando injustiças.
Muito se discute hoje sobre o processo capaz de permitir o acesso das camadas mais pobres da população. Discussão que suscitou a reflexão de Luiz Guilherme Marinoni.
Baseando-se na indispensabilidade do processo, sabe-se que é insuficiente o Estado instituir formas de tutela, as mais diversas, desconsiderando o valor econômico desproporcional ao custo do processo tradicional, não atentando para o fatode que determinadas camadas da população têm dificuldade de acesso devido ao alto custo financeiro.
Compartilhando desse entendimento, Marinoni afirma que “o legislador infraconstitucional é obrigado – como não poderia ser de outra forma diante da garantia constitucional de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF) – a instituir procedimentos e justiças especializadas para permitir o acesso dos mais pobres ao Poder Judiciário” (MARINONI, 2012, p. 425).
Para que esses juizados especiais tenham eficácia, além da celeridade, é preciso dar importância ao custo e a simplicidade. É preciso determinar como competências desses tipos de Juizados apenas as causas que tenha relação com as necessidades das pessoas mais carentes.
Portanto, fica evidente que o direito de acesso à justiça é um direito básico, um dos mais importantes devido a sua imprescindibilidade para a tutela dos demais direitos. O direito de acesso à justiça é uma manifestação do direito à tutela jurisdicional efetiva, disposto no art. 5.º, inciso XXXV, da CF. Esse direito fundamental, além de garantir ao cidadão a técnica processual adequada à tutela do seu interesse, confere a todos, indistintamente, o direito de requerer ao Judiciário os seus direitos.
Contudo, o direito de acesso à justiça não depende apenas da eliminação dos obstáculos econômicos e sociais que dificultam e impedem o acesso. Ele depende também da garantia de uso da técnica processual idônea à tutela do direito material, independente das condições econômicas.
Esse direito, além de importante para a viabilização à tutela dos demais direitos, como já dito, também exerce grande papel na organização justa e democrática. Não se pode afirmar que há democracia em um Estado que não seja capaz de garantir o acesso à justiça, sem esse direito, não há a possibilidade de se assegurar a democracia.
É por esse motivo que esse direito manifestado do direito à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o legislador, que é obrigado a “criar” formas de justiça, como os Juizados Especiais, e procedimentos diferenciados para garantir o acesso ao Judiciário das camadas mais pobres., incidindo também sobre o juiz que tem o dever de compreender as regras processuais com base no direito de acesso à justiça.
Dessa forma, fica evidente que o objetivo desse direito é garantir o acesso com o custo econômico o mais baixo possível, além de propiciar, prezando também pela segurança jurídica, celeridade ao processo. Simplificando-se e tentando tornar menos formal o procedimento, atentando para as garantias processuais, facilitando-se a participação no processo.
4 PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO NO ESTADO CONSTITUCIONAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Recentemente, na Itália, ElioFazzalari, negando a inserção da relação jurídica processual no conceito de processo, surge com um novo pensamento no sentido de entender a natureza jurídica do processo como procedimento em contraditório, considerando essa abertura à participação constitucionalmente garantida como elemento do processo. Com esse novo entendimento, o que marcaria o processo seria o fato de que do início ao fim da relação processual estaríamos diante de uma participação dialética das partes, interferindo nos rumos do processo. Tal fato, segundo Fazzalari, seria característico do Estado Democrático de Direito. Portanto, o processo não pode ser compreendido se não houver o contraditório, que só ocorre quando as partes em litígio possuem simétrica paridade, ou seja, mesmo espaço-temporal no processo.
O contraditório deve ser visto com mais afinco. Segundo Gonçalves, não deve ser entendido somente como a participação dos sujeitos do processo (juiz, auxiliares, autor, réu, intervenientes). Contraditório é mais do que isto, afinal é um elemento de extrema importância para a teoria em estudo, portanto, este deve representar também uma forma de garantia “participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os “interessados” (GONÇALVES, p.120, 1992).
Como bem enuncia Ada Pellegrini Grinover, “terem as partes poderes e faculdades no processo, ao lado de deveres, ônus e sujeição, significa, de um lado, estarem envolvidas numa relação jurídica; de outro, significa que o processo é realizado em contraditório” (2012, p. 317). Essa participação em contraditório deve se dar concretamente, através do procedimento, com as partes colaborando, interferindo, no convencimento do juiz que irá desembocar na sentença.
Na concepção de ElioFazzalari, essa participação se daria apenas no âmbito processual, no tocante às partes no processo. Porém, há o entendimento de que essa participação deve ser dada no âmbito da cidadania, através da esfera pública.
Existe a necessidade de se fazer com que questões que afetam a sociedade dispersamente, difusamente sejam decididas com a colaboração de todos, gerando um processo democrático, compatível com o Estado Constitucional Democrático de Direito, sendo uma sofisticação, um aprimoramento da ideia defendida incialmente por ElioFazzalari.
Em um Estado democrático, deve-se sempre ter em mente que a noção de democracia não deve nunca ser apartada da ideia de participação no poder. Ao adentrarmos na seara processual, deve-se entender que, embora a noção tradicional de participação esteja inflada de um conteúdo político, o mecanismo técnico-jurídico capaz de expressar o direito de alguém participar de um processo é o do contraditório, presente na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LV, como um direito fundamental.
Porém, o contraditório não é suficiente para dar legitimidade ao processo. Para isso, a publicidade dos atos do juiz e a fundamentação das suas decisões são imprescindíveis. Dessa forma, é possível afirmar que o processo é o procedimento em contraditório que não dispensa a publicidade e a argumentação explicitada através da fundamentação.
À época do direito liberal, o contraditório era visto como uma mera garantia de conteúdo formal, não se discutia a respeito da efetividade do contraditório, muito menos em obstáculos socioeconômicos capazes de impedir a participação.
Contudo, como a legitimação do exercício jurisdicional depende da participação, e essa depende do princípio do contraditório, principalmente, entende-se que não é legitimo nem democrático o processo que prive alguém de participar por motivos econômicos ou sociais. Com isso, não importa somente a garantia de assistência jurídica gratuita, também das normas processuais que têm por objetivo garantir a efetiva participação igualitária. No tocante a esse caráter igualitário, parte da doutrina, principalmente a italiana com Mario Chiavario, fala em uma participação em paridade de armas. Porém, essa paridade de armas não quer dizer que as partes de um mesmo processo devam ter os mesmos poderes, pois estaria se ignorando o fato de que elas podem ter diferentes necessidades, por isso tais poderes devem ser fundamentados nas diversidades das necessidades das partes e que, diante de qualquer poder conferido a uma, destine-se a outra um correlato poder de reação.
Nessa perspectiva, o processo deixa de ser apenas um instrumento de poder, para ser um instrumento para a participação no poder, contribuindo para a participação do povo, para “democratizar a democracia através da participação”, sendo um instrumento para que o cidadão possa participar em busca da realização e da proteção dos seus direitos fundamentais e do patrimônio público.
Consciente da obrigação de tornar possível a participação popular em busca da efetivação e proteção dos direitos fundamentais, o legislador construiu o procedimento da ação coletiva, inicialmente através da Lei da Ação Civil Pública e, depois, com o Código de Defesa do Consumidor.
5 CONCLUSÃO
Diante de tudo que foi exposto conclui-se que a ciência do direito passou por inúmeras transformações; o neoconstitucionalismo, a ampliação da jurisdição constitucional, a supremacia dos direitos fundamentais, a ideia de acesso à justiça e o novo entendimento que se tem da participação da sociedade e do indivíduo no processo, ideias que surgiram junto do conceito de Estado Democrático. Mudanças que afetaram sobremaneira o Direito Processual.
A ideia de independência do Direito Material foi superada. Atualmente o sistema processual deve ser analisado com base na necessidade de conferir efetiva tutela às pretensões e aos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos aos cidadãos. O indivíduo agora é um participante ativo na busca da justiça processual, axiologicamente falando, interferindo na composição da sentença, do entendimento do julgador, tendo por base o princípio do contraditório e do acesso à justiça.
REFERÊNCIAS
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BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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GONÇALVES, Aroldo Plínio, Técnica Processual e Teoria do Processo, ISBN: 85-321-0071-6, Editora AIDE, Rio de Janeiro 1992.
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Notas
[1] Não se aprofundará, neste momento, no assunto da tutela jurisdicional efetiva, objeto de outro tópico; o tema em análise, na presente etapa, é o da abertura do processo à tutela de direitos e situações jurídicas que fogem ao tradicional conflito patrimonial e privado.
[2] Documento on-line, não paginado.
[3] Se considerar-se, também, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ter-se-á três formas de controlar a constitucionalidade das omissões estatais. É reduzida, todavia, a aplicabilidade da ADPF; afinal, conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tal ação só é cabível nos casos em que não é possível a impetração de outras ações de controle de constitucionalidade. Seu campo de atuação prática, portanto, é bastante pequeno.
[4] MI 670, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 25/10/2007, DJede 30/10/2008.