A Constituição Federal impõe a criação de Juizados Especiais Criminais para o julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 98, I), que – de acordo com o art. 61 da Lei n. 9.099, de 26.9.1995 – em sua redação original, são: a) as contravenções; e b) os crimes aos quais a lei comina pena máxima abstrata não superior a um ano, excepcionando os casos em que a lei prevê procedimento especial. Assim, apresentando rito processual especial, sejam crimes ou contravenções, certas infrações não podem ser processadas e julgadas perante o Juizado Especial.
As exceções, argumenta-se, encontram-se fundamentadas no princípio da incompatibilidade, segundo o qual não se submetem à competência dos Juizados Especiais Criminais as infrações que têm "procedimento especial", i.e., as que apresentam princípios e regras particulares, inconciliáveis com o rito estabelecido na Lei n. 9.099/95.
Ocorre que a Lei n. 10.259, de 12.7.2001, ao instituir os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal em seu art. 2.º, parágrafo único, preceitua:
"Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa."
Apresenta duas diferenças em relação ao art. 61 da Lei n. 9.099/95:
1.ª) eleva o máximo da pena abstratamente cominada, para efeito de incidência da competência especial, de um para dois anos;
2.ª) não contém a cláusula restritiva "excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial".
Verifica-se que, além de ampliar o rol dos delitos de menor potencial ofensivo por meio da elevação da pena máxima abstrata cominada ao delito, a lei nova silencia a respeito das exceções, estendendo mais ainda o conceito de infrações de menor potencial ofensivo. Os dois dispositivos cuidam do mesmo assunto, qual seja, conceituação legal de crime de menor potencial ofensivo, empregando, porém, regras diversas: enquanto a anterior excetua, reduzindo o campo de incidência da norma, a segunda generaliza, ampliando-o. Diante disso, de prevalecer a posterior, inegavelmente de direito penal material. Mais benéfica, estendendo relação dos crimes de menor potencial ofensivo, derroga a anterior (CF, art. 5.º, XL; CP, art. 2.º, parágrafo único).
Interpretação diversa[1] conduziria a situações de flagrante desigualdade jurídica. Assim, o crime de abuso de autoridade, previsto na Lei n. 4.898/65, por ter rito processual especial, não é de competência do Juizado Especial Criminal[2]. Aplicada literalmente a lei nova, teríamos as seguintes conseqüências, dependendo da qualificação jurídica do autor: 1.ª) crime de competência da Justiça Federal: Juizado Especial Criminal da Justiça Federal; 2.ª) delito de competência da Justiça Comum: Juizado Especial Criminal da Justiça Estadual.
Em suma, entendemos que o parágrafo único do art. 2.º da Lei n. 10.259/2001 derrogou também a parte final do art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95), ampliando a sua extensão[3]. Em conseqüência, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei n. 9.099/95, aqueles aos quais a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção. De maneira que os Juizados Especiais Criminais da Justiça Comum Estadual passam a ter competência sobre todos os crimes a que a norma de sanção imponha, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos (até dois anos), ainda que tenham procedimento especial.
NOTAS
1.Inconstitucional e totalmente sem propósito o disposto no art. 20 da Lei n. 10.259/2001, segundo o qual a lei nova não se aplica aos Juizados Especiais Criminais da Justiça Estadual.
2.STF, HC 77.216, 1.ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 21.8.1998, p. 4.
3.Entendimento original de Luiz Flávio Gomes, Lei dos Juizados Federais aplica-se aos Juizados Estaduais. In: www.direitocriminal.com.br, 27.7.2001.