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Panorama das propostas de reforma do regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada

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01/11/2001 às 01:00
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4.ANTEPROJETO DE LEI DE SOCIEDADES DE RESPONSABILIDADE LIMITADA

4.1. Generalidades sobre o anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada[21]

Após as Grandes Guerras, intensificou-se a presença dos micro sistemas legislativos nos ordenamentos jurídicos. A complexidade de determinados temas do Direito recomenda um tratamento sistemático, sensível à sua real dimensão, dispondo, na medida do possível, sobre todas suas variáveis previamente conhecidas.

Nesse contexto, surgem, dentre outras, leis como a de Falência e Concordata, a das Sociedades por Ações, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao lado disso, avolumam-se leis especiais, que, embora não constituam verdadeiros micro sistemas, buscam exaurir o regrar de uma situação jurídica, ao menos, em sua vertente principal.

O Decreto n.º 3.708/19 pode ser visto como um diploma especial, destinado a disciplinar as sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Regula o tipo societário, dizendo da responsabilidade de seus sócios, da forma de divisão do capital social, da relação entre a sociedade e os sócios e destes entre si.

Seguindo tendências das legislações européias, o anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada é minucioso no trato das coisa da vida social.

Contudo, não se pode olvidar o sucesso alcançado pela flexibilidade do regime das sociedades por quotas de responsabilidade limitada no Brasil. É justamente a timidez da ingerência normativa, que deixa margem à auto-regulamentação dos indivíduos no que diz respeito aos seus interesses particulares, o que é responsável pelo grande contingente de limitadas existentes.

Nesse sentido, o anteprojeto não pretende esgotar o trato da praxe societária, mas, outrossim, trazer segurança para suas categorias jurídicas, pondo fim a variadas discussões que se instauraram no seio da doutrina e jurisprudência. Continuará a existir uma significativa maleabilidade do regime, tocando à dinâmica empresarial a tarefa de adequar as lacunas subsistentes à sua necessidade.

Quando da elaboração do projeto de Código Civil, não se entendeu necessário o tratamento da limitada em separado. Optou-se por alojá-la no Livro do Direito de Empresa.

Todavia, a doutrina tem reclamado que esse tipo societário reveste-se de tamanha importância e complexidade, a ponto de justificar a sua manutenção em lei especial. Ora, seria trafegar na contra-mão da história alocar a limitada numa codificação. O legislador de 1919 trilhou o caminho da especialização normativa, não se justificando, hodiernamente, o retrocesso, a posição da limitada no projeto de Código Civil, sobremaneira, após a proliferação dos micro sistemas legais.

Egberto Lacerda Teixeira, estudando a sociedade limitada no projeto de Código Civil, reclamava a necessidade de elaboração de lei especial sobre a matéria. Observe:

"permita-nos a ousadia de dizer-lhes que gostaríamos, de lege ferendissima, que o estatuto das limitadas constasse de lei especial, independente e destacada do Código Civil, como já aconteceu com as Sociedades Anônimas. Na verdade, projetos de lei nesse sentido têm sido elaborados em Brasília, mas, infelizmente, sem aceitação geral das entidades jurídicas e empresariais consultadas. A nossa posição baseia-se no fato de a revisão, modificação e atualização de artigos de lei específica são normalmente, muito mais simples e rápidas do que alterações no bolo de códigos. É a experiência nacional que nos convence nesse particular."[22]

Seguindo essa tendência, atualmente está em elaboração o anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada, objeto de apreciação deste trabalho em muitos de seus aspectos, contando com a participação de renomados doutrinadores. Os trabalhos encontram-se sob a presidência de Arnoldo Wald, sendo relator Jorge Lobo e membros César Asfor Rocha, Alfredo Lamy Filho, Egberto Lacerda Teixeira e Waldírio Bulgarelli.[23] Têm sido realizadas inúmeras audiências públicas, visando a participação da sociedade civil na sua feitura.

Nos próximos itens, serão abordados temas constantes do anteprojeto, de sorte a explicitar-lhe o conteúdo, a partir de uma reflexão sobre o atual regime das sociedades por quotas de responsabilidade limitada.

4.2. Constituição

Nos exatos dizeres de Rubens Requião:

"A sociedade se forma pela manifestação de vontade de duas ou mais pessoas, que se propõem unir os seus esforços e cabedais para a consecução de um fim comum."[24]

Para que essa manifestação de vontades enseje a qualificação da sociedade como um sujeito de direito, ou seja, para que nasça uma pessoa jurídica, é imprescindível que sua organização oriente-se por um dos tipos conhecidos do ordenamento jurídico e proceda-se às respectivas formalidades.

O art. 1º do anteprojeto prevê que a sociedade de responsabilidade limitada pode constituir-se por "escritura pública ou instrumento particular, assinado pelos sócios e subscrito por duas testemunhas, com ou sem finalidade lucrativa, caracterizando-se pela autonomia da vontade e pela limitação da responsabilidade dos sócios ao valor das quotas subscritas ou adquiridas."

O ato constitutivo da sociedade, que pode adotar tanto a forma pública assim como a particular, alberga as cláusulas que regem a vida social. Costuma-se, sob os auspícios do atual regime da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, dizer que melhor atende aos interesses dos sócios minoritários o detalhamento das tratativas contratuais, a fim de se evitarem discussões teóricas na solução de eventuais conflitos que se formem na vida social; e, ao majoritário, aproveita a lacunosidade do instrumento, o que, em regra, amplia o espectro de incertezas sobre os direitos dos demais sócios.

Dentre as diversas cláusulas entabuladas pelas partes, o contrato social, nos termos do art. 4º, I, do anteprojeto, poderá vedar ou estabelecer condições para:

"a) a caução, a penhora, o usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer cláusulas que venham a gravar as quotas;

b) a alienação e oneração de bens sociais essenciais ao funcionamento da sociedade;

c) a prestação de aval e de fiança;

d) o exercício pelos administradores dos poderes de praticar ato de liberalidade à custa da sociedade, transigir, renunciar a direitos ou contratar obrigações de valor relevante em relação ao patrimônio líquido da sociedade;

e) a participação dos sócios, sob qualquer forma, em empresa concorrente."

Ademais, o parágrafo único do mesmo art. 4º, do anteprojeto, diz que, constando essas previsões de contrato social devidamente arquivado, serão elas oponíveis erga omnes, salvaguardados os direitos de terceiros de boa-fé quando induzidos em erro, sem prejuízo da respectiva ação de responsabilidade, a ser intentada pela sociedade contra os administradores. Fica, portanto, evidente o intuito de manutenção da flexibilidade do regime das limitadas, ora reportando-se o anteprojeto à disciplina das sociedades anônimas (art. 49), sociedade de capital por excelência, ora inferindo-se sua característica contratual (art. 4º, I), em que se admite o impedimento ou dificultação de determinadas situações jurídicas, que comprometeriam a pessoalidade de certas sociedades.

Pois bem, uma vez elaborado o ato constitutivo da sociedade, independentemente da forma pública ou particular, deverá ele ser levado a arquivamento no respectivo Registro Público; tratando-se de sociedade limitada mercantil, deverá ser apresentado ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; cuidando-se de limitada civil, há de ser levado o documento ao Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas.

Vale lembrar que, sendo a sociedade limitada enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos do art. 6º, parágrafo único, da Lei n.º 9.841/99, seus atos constitutivos ou alterações contratuais não carecerão de vistos de advogados, para arquivamento no respectivo Registro Público.

4.3. Sócios

Com o emprego da expressão plural "sócios", o anteprojeto torna imprescindível o concurso de dois ou mais sujeitos no momento da constituição da sociedade, sendo eles pessoas naturais ou jurídicas.[25] Contudo, a proposta de reforma ressalva a continuidade da limitada que tiver seu quadro social reduzido a um único sócio, veja-se:

"Art.6º. A sociedade de responsabilidade limitada será formada por pessoa físicas ou jurídicas, facultando-se a sociedade entre cônjuges qualquer que seja o regime de bens.

§2º. Caso o número de sócios fique reduzido a um, o sócio remanescente deverá, no prazo de 30 (trinta) dias, comunicar o fato ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. Se, no prazo de 6 (seis) meses, não for admitido, no mínimo, mais um sócio, a sociedade se transformará em empresa individual de responsabilidade limitada."

O anteprojeto, assim, faz nítida opção pelo princípio da preservação da empresa. Atualmente, isso já é realizado pela doutrina e jurisprudência, aplicando-se o art. 206, I, d, da Lei n.º 6.404/76.[26] Entretanto, a regulação em lei especial torna certa a subsistência da atividade econômica, inclusive mantendo a limitação da responsabilidade através da transformação da sociedade em empresa individual de responsabilidade limitada.

Há uma curiosidade no anteprojeto: o tipo da limitada poderá ser empregado por sociedades sem finalidade lucrativa, o que importa reconhecer que as associações civis poderão se organizar sob sua forma.

A propósito, perceba-se que o dispositivo transcrito faculta a composição de sociedade limitada entre cônjuges, independentemente do regime de bens do casamento. Perante o silêncio do Decreto n.º 3.708/19, doutrina e jurisprudência compartilham de comedido receio contra a tese, porquanto a constituição da pessoa jurídica poderia ser empregada como instrumento de burla do regime de bens do matrimônio, especialmente do regime da comunhão universal.

Rubens Requião, apreciando o tema em toda sua dimensão, conclui:

"a tendência da jurisprudência de nossos tribunais é de admitir a sociedade limitada entre os cônjuges, desde que não constitua ela um instrumento de fraude ou alteração do regime matrimonial, visando excluir do marido a direção da sociedade conjugal."[27]

A par da sociedade entre cônjuges, deve-se perquirir da viabilidade da constituição de limitada entre conviventes. Seria ela possível?

No atual estágio do ordenamento jurídico, não se vislumbra a negativa e, muito menos, no regime projetado. Os conviventes em união estável não gozam de um regime cogente de bens, podendo dispor sobre o acervo patrimonial comum da forma que melhor lhes aprouver, segundo prescreve o art. 5º, caput, parte final, da Lei n.º 9.278/96.

Essa norma trata da repercussão patrimonial da união estável, estabelecendo uma presunção de que os bens adquiridos durante sua constância são frutos de esforço comum, concorrendo ambos em proporções iguais. Todavia, é patente o caráter dispositivo de que se reveste a regra, pois, ao seu final, permite-se a sua não incidência, em virtude de convenção escrita das partes.

Admite-se a sociedade limitada entre casados, que se encontram sob a égide de um regime de bens imutável e, assim, maior razão assiste à possibilidade de sua constituição entre companheiros, pois eles podem derrogar, contratualmente, a regra de regência de seus bens.

Seguindo a Lei n.º 6.404/76, o anteprojeto prevê:

"Art. 6º. (...)

§1º. As pessoas físicas não residentes no país e as pessoas jurídicas estrangeiras deverão ter procurador domiciliado no país com poderes para receber citação nas ações nas quais se discutam questões societárias."

Tornar-se-á, assim, obrigatório que o quotista ausente do Brasil constitua procurador com poderes especiais para receber citação de ações que tenham por objeto conflitos societários. Isso, de sorte a evitar a procrastinação das decisões empresariais. A medida agiliza a instauração de relações processuais envolvendo pessoas situadas no estrangeiro, eliminando a lenta e onerosa via das cartas rogatórias.

4.3.1. Deveres dos sócios

A principal obrigação do sócio da limitada é a de realizar o valor de suas quotas adquiridas ou subscritas, na forma e tempo constantes dos correlatos instrumentos.

A limitada detém um peculiar sistema interno de estímulo à realização das participações sociais. Enquanto não estiver integralizado o seu capital, os sócios são solidariamente responsáveis por todo o valor subscrito. Destarte, os próprios sócios se cobram, reciprocamente, a realização das quotas, sob pena de serem todos solidariamente responsáveis pela verba total.

4.3.1.1. Título executivo na execução do sócio remisso

O anteprojeto, em seu art. 9º, I, dispõe que, em se verificando a mora do sócio, a sociedade terá direito de promover a execução do valor subscrito pelo quotista remisso ou excluí-lo. Caso a pessoa jurídica escolha a via executória, diz o anteprojeto que esta terá suporte em título executivo extrajudicial, mas não procede à expressa identificação do documento.

Os títulos executivos são aqueles assim taxativamente qualificados pelo ordenamento jurídico, pois permitem ao credor, uma vez insatisfeito seu direito, o pronto socorro ao processo de execução. Esses títulos materializam a certeza quanto à relação de direito material existente entre credor e devedor, dispensando seu prévio acertamento pelo Estado Juiz. A propósito do título extrajudicial, Humberto Theodoro Júnior assevera:

"Ao criar um documento a que a lei reconhece a força de título executivo, o devedor além de reconhecer sua obrigação, aceita, no mesmo ato, o consectário lógico-jurídico de que poderá vir a sofrer a agressão patrimonial que corresponde à sanção de seu eventual inadimplemento."[28]

Pois bem, embora o projetado regime jurídico da limitada não indique de forma precisa o título extrajudicial necessário à cobrança dos valores subscritos pelos quotistas, não pode pairar dúvida sobre a afirmativa de que ele será o contrato social, porquanto deste constará a completa descrição das obrigações dos sócios perante a sociedade.

A petição inicial da execução deverá ser instruída com cópia autenticada do contrato da limitada, pois este lhe dará o necessário apoio documental. O anteprojeto, em seu art. 8º, dispensa qualquer outro expediente, ao prever que se constitui em mora, de pleno direito, o sócio que não realizar suas obrigações no tempo e modo constantes do contrato social. Ou seja, constatada a inadimplência, estará o devedor em mora, sendo a obrigação passível de incontinenti exigência em juízo.

4.3.2. Direitos essenciais

Os direitos essenciais dos sócios constituem o núcleo intangível pelo contrato social ou pela assembléia. Nenhum destes pode afastar os direitos mínimos legalmente assegurados. A doutrina costuma chamá-los de Bill of Rigths dos sócios.

O Decreto n.º 3.708/19 não traz um elenco explícito dos direitos essenciais, embora regule alguns deles.

O anteprojeto é rico em direitos essenciais. Seguindo a orientação da Lei n.º 6.404/76, que, em seu art. 109, consagra os direitos intangíveis dos acionista, ele, em seu art. 14, enumera sete direitos essenciais, a saber: participação dos lucros sociais; voto; direito de informação; direito de fiscalização; direito de preferência; direito de retirada; e direito de participar do acervo patrimonial da sociedade no caso de liquidação.

Quanto ao direito intangível de preferência dos quotistas, terá ele lugar no estudo do capital social, uma vez que constitui decorrência direta do aumento deste. O direito de voto e o recesso serão estudados a seguir. Os demais direitos essenciais não serão aprofundados na presente monografia.

4.3.2.1. Situação do direito de voto

Dentre os direitos essenciais do quotista, o anteprojeto, em seu art. 14, II, dá guarida ao direito de voto, dispondo:

"São direitos essenciais do sócio:

(...)

II- votar na assembléia geral na forma e nos casos previstos nesta lei e no contrato social, observado o disposto nos arts. 16 e 26, §1º;

(...)"

Contudo, o direito de voto não se reveste das mesmas características dos outros direitos essenciais. Há de ser assegurado como um direito, mas não essencial.

Quando se fala em direito essencial, comporta transcrever o art. 109, caput, da Lei n.º 6.404/76, que estabelece:

"Nem o estatuto nem a assembléia geral poderão privar o acionista dos direitos de: (...)"

Percebe-se, com isso, que direitos essenciais são intangíveis, não se sujeitando à vontade da assembléia geral ou às cláusulas estatutárias. Ainda, numa perspectiva um tanto quanto romântica, tendo em conta o significado do significante "essência", pode-se afirmar que esses direitos seriam substanciais, imprescindíveis à verificação do sócio, ou seja, a ausência de um direito essencial, no caso, o voto, desnaturaria a figura do quotista. Mas, não há como concordar com a situação do voto no elenco de direitos essenciais, sobremaneira, na sistemática projetada, em que se permite a contratualidade de quotas preferenciais, sem direito de voto.

O anteprojeto, no próprio corpo da disposição mal situada, refere-se à possibilidade de restrições ao voto. Então, não se lhe vista o chapéu da intangibilidade, enquanto seus membros e tronco são vulneráveis.

A propósito, a Lei n.º 6.404/76, que dispõe sobre as sociedades anônimas, não qualifica o voto como um direito essencial do sócio, pois, em certos episódios como nas ações preferenciais, sem direito de voto (art. 15, §2º), ou na suspensão do exercício de direitos do acionista (art.120), o sufrágio pode sofrer ingerências do estatuto ou da assembléia geral da companhia.

O exame da posição legal do direito de voto na Lei n.º 6.404/76 indica que ele é um direito não essencial; os direitos essenciais, dentre os quais não está o voto, encontram-se elencados no art. 109 e o direito de voto tem disciplina a partir do art. 110.

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Definitivamente, em atenção à sistemática do anteprojeto, o voto não pode ser qualificado como um direito efetivamente essencial.

4.3.2.2. Proposta de uma orientação distinta para o direito de retirada

Abordando o direito de retirada, atento aos dois tipos societários mais relevantes do cenário empresarial, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada e a sociedade anônima, Fábio Ulhoa Coelho sintetiza, com muita propriedade, as diferenças de ambos os regimes. Veja-se:

"O sócio pode, por vontade própria, desligar-se da sociedade empresária por dois modos: alienando sua participação societária, ou exercendo o direito de retirada. Na limitada, enquanto a venda é difícil, a retirada pode ocorrer a qualquer tempo, se contratada a sociedade por prazo indeterminado. Já na anônima, a lei procura facilitar a negociação e restringir a retirada."[29]

Percebe-se, claramente, que na limitada as hipótese de retirada são amplas e irrestritas, enquanto na sociedade anônima são elas restritas.

O anteprojeto tem a pretensão de limitar, taxativamente, os casos do direito de dissidência na limitada, elencando-os em seu art. 20. Todavia, a linguagem empregada no dispositivo é muito vaga, não se prestando a realizar o escopo almejado. As hipóteses são genéricas, podendo albergar quase todo e qualquer fato do cotidiano societário. Por exemplo, o sócio poderá retirar-se da sociedade quando houver quebra do espírito associativo, que possa impedir a realização do objeto social e pôr em risco o empreendimento. Pois bem, qualquer decisão pode ser compreendida pelos sócios como meio idôneo a romper o espírito associativo. A verificação da hipótese reveste-se de tamanho grau de subjetividade que compromete a limitação do direito de recesso, assim como ocorre em outros casos constantes do anteprojeto.

O Decreto n.º 3.708/19 não fixa prazo para o exercício do direito de retirada, o que dá lugar ao regime subsidiário da Lei n.º 6.404/76. Assim, aplicando-se seu art. 137, III, o reembolso da quota deve ser reclamado à sociedade dentro de trinta dias, contados da publicação da ata da assembléia.

O anteprojeto de lei de sociedades limitadas consagra o prazo de trinta dias como regra, mas prevê lapsos temporais outros, conforme o fato ensejador do direito de recesso (art. 20, § 2º).

Contudo, subsistirá a aplicação do art. 137, § 2º, in fine, da Lei n.º 6.404/76; o quotista pode exercer o direito de retirada, ainda que tenha se abstido de votar ou não tenha comparecido à reunião da assembléia.

4.4. Capital social

Na seara do direito societário, é tema de difícil enfrentamento a identificação da função do capital social. Durante muito tempo acreditou-se que ele seria a medida da garantia dos credores sociais.

Rubens Requião, citando estudo de Alfredo Lamy Filho, refuta a visão do capital como garantia dos credores:

"‘Doutrinariamente, o conceito de capital vem sofrendo, também de estudiosos europeus, sérias restrições. Nesse sentido, cumpre destacar, na matéria, o trabalho de Paulette Veaux-Fournerie. Mas é do eminente Prof. Bayless Maning a melhor demonstração sobre a imprestabilidade da noção de capital para a finalidade de garantia dos credores. Em seu livro sobre Legal Capital, capítulo V, diz o Prof. Maning que se pode afirmar, com segurança, que a maquinaria do capital social produz pouca ou nenhuma proteção aos credores, e eles, sabendo disso buscam outras garantias. E as razões seriam muitas entre as quais aponta: a) a cifra que traduz, num balanço, o lucro, é fruto de um sem-número de prévias decisões contábeis, que, se houver interesse, serão facilmente fraudadas; b) os credores não são ouvidos sobre as decisões de alterar a cifra do capital social, e esta é sempre arbitrária e irrelevante; c) não há nenhuma lógica em tomar-se um número qualquer (o capital) e faze-lo de medida para distribuição de dividendos e bonificações a acionistas; d) o sistema contábil não leva em conta a dimensão tempo, e não distingue entre um crédito a realizar-se em 20 anos e o realizável na próxima semana; e) uma contabilidade que pretendesse resolver esses problemas cairia em debates conceituais à pior maneira dos teóricos medievais etc. etc.’"[30]

Superadas as discussões sobre a função do capital social, hoje atribuem-lhe o papel de medida do sucesso da empresa. Quando o capital social aumenta com recursos internos da limitada, é sinal de prosperidade; quando reduz, indica prejuízos.

Sobre os princípios que orientam o capital social, consta da exposição de motivos do anteprojeto, in verbis:

"O capítulo terceiro fixa regras para a formação e preservação do capital social, inspirado nos princípios da realidade e intangibilidade, tornando sócios e administradores solidária e ilimitadamente responsáveis pela exata avaliação dos bens conferidos ao capital social."

Ambos são conhecidos da doutrina. Fábio Ulhoa Coelho, reportando-se ao princípio da intangibilidade, afirma:

"Tendo o capital social a função de medir, grosso modo, a contribuição dos sócios, o princípio jurídico fundamental do regime aplicável aos recursos correspondente é o da intangibilidade. Em outros termos, porque intangível o capital social, a sociedade está, em princípio, proibida de restituir os recursos correspondentes aos sócios."[31]

O princípio da realidade (art. 23, parágrafo único e art. 25, §2º, ambos do anteprojeto) diz respeito à correta e justa avaliação dos bens transferidos à sociedade a título de realização das quotas sociais, assim como um constante entrosamento entre o capital real e o contratual. Os bens devem ser recebidos pelos seus reais valores. Isso, de sorte a evitar aquilo que Osmar Brina Corrêa Lima denomina "capital aguado"[32], ou seja, o capital constante do contrato não corresponde ao efetivo aporte patrimonial levado a efeito pelos sócios.

Nelson Abrão lembra que grande parte das legislações contemporâneas exige um mínimo de capital social para se proceder à constituição da sociedade limitada, veja-se:

"Impõe um mínimo de capital na sociedade por quotas de responsabilidade limitada a lei alemã, §50; a portuguesa, art. 4º; a austríaca, § 6º; a francesa, art. 35; a mexicana, art. 62; a suíça, art. 773; a italiana, Código Civil, art. 2474; a venezuelana, Código Comercial, art.315; e uruguaia (Lei n. 13.782, de 3-11-1969, art. 80)."[33]

O anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada, assim como o projeto de Código Civil e o Decreto n.º 3.708/19, não estabelece um piso de capital necessário para a constituição desse tipo societário. A intenção brasileira mostra-se perene, no sentido do respeito à isonomia dos sujeitos. Não se quer orientar a vedação do acesso à responsabilidade limitada por um critério censitário; seria flagrante afronta ao constitucional princípio da igualdade impedir que alguns sujeitos alcançassem a limitação da responsabilidade, ao argumento único de contarem com parcos recursos econômicos.

As regras sobre constituição do capital e avaliação de bens são cópias simplificadas da Lei n.º 6.404/76.

No estudo do aumento do capital social, mister se faz a menção ao direito de preferência dos sócios. No Decreto n.º 3.708/19, não há referência alguma a direito de preferência dos quotistas na subscrição de novas parcelas do capital na hipótese de seu aumento. Nelson Abrão, estudando a matéria sob a égide do atual regramento jurídico e não se olvidando do projeto de Código Civil unificado, afirma:

"implicando o reconhecimento de subscrição de novas parcelas do capital por estranhos modificação do contrato social, resulta que os sócios têm natural preferência sobre eles. Nesse sentido o espírito descortinado no Projeto de Código Civil, cujo art. 1083, §1º, de forma bastante evidente tipifica: ‘Até trinta dias após a deliberação, terão os sócios preferência para participar do aumento, na proporção das quotas de que sejam titulares.’"[34]

Indiscutivelmente, o posicionamento doutrinário justifica-se pela aplicação subsidiária da Lei n.º 6.404/76, que, em seu art. 109, prevê a preferência para subscrição de novas participações societárias advindas de aumento de capital como um direito intangível.

No atual regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, é recomendável aos minoritários a inserção da cláusula do direito de preferência no contato social, em virtude da omissão do Decreto n.º 3.708/19, o que torna inafastável a sua observância.

Contudo, o anteprojeto de lei de sociedades limitadas põe fim às discussões sobre a vigência do direito de preferência no seio desse tipo societário, ao regulá-lo sob a rubrica da essencialidade, art. 14, V, ou seja, é um direito legal, intangível, seja pela assembléia, seja pelo contrato social.

As características do direito de preferência estão previstas no art. 19 do anteprojeto. Faz-se, inclusive, menção expressa à possibilidade de o quotista ceder seu direito a outros sócios na proporção de suas respectivas participações societárias. Todavia, o dispositivo não se reporta ao tempo hábil ao exercício desse direito, devendo incidir, por conseguinte, o art. 171, §4º da Lei n.º 6.404/76, que diz que o estatuto ou assembléia deverá fixar-lhe prazo, não inferior a trinta dias.

4.5. Quotas

As quotas representam o contingente patrimonial com que o sócio concorre para o capital da sociedade. Pode-se compreendê-la como "quinhão" ou "parte"do capital social.

Segundo o art. 26 do anteprojeto:

"O capital social será dividido em quotas, ordinárias e preferenciais, com ou sem valor nominal, não podendo ser representadas por certificado ou cautelas."

Caso venha a tornar-se lei, o anteprojeto trará certeza sobre a existência de espécies de quotas nas sociedades limitadas: ordinárias e preferenciais, podendo estas ter o direito de voto suprimido.

As quotas podem, aliás, ter, ou não, valor nominal. Quando se diz dessa possibilidade, quer-se, em verdade, permitir que o contrato social atribua valor nominal às quotas. O valor nominal é o resultado da divisão do capital social pelo número de quotas contratualmente previstas. Versando o ato constitutivo da limitada sobre o valor nominal das quotas, deverão todas estas representar idêntico numerário, por força da aplicação subsidiária do art. 11, § 2º da Lei n.º 6.404/76.

Ao lado das quotas sociais, a doutrina mostra-se fragmentada quanto à possibilidade de a sociedade limitada emitir títulos outros para alavancar capital; poderia ela emitir debêntures ou partes beneficiárias?

A maioria da doutrina posiciona-se negativamente perante essa pergunta. A emissão dos títulos mencionados deve ser circunscrita ao regime das sociedades anônimas, pois somente elas são afeiçoadas à captação de recursos junto ao público, valendo-se, em geral, do mercado de capitais. A sociedade limitada deve buscar fomento junto a seus sócios ou valer-se de instituições financeiras.[35] Todavia, há posições em contrário.

O tratamento de relevantes questões sobre as quotas sociais será desdobrado nos itens a seguir.

4.5.1. Cessão e penhora de quotas

Com respeito à cessão de quotas, o Decreto n.º 3.708/19 é silente, tendo sobressaído entendimento doutrinário e jurisprudencial de que quando a cessão for para terceiro, deverá ela ser precedida da anuência dos demais sócios.

Pode-se dizer que o anteprojeto estabelece, em regra,[36] uma ordem de vocação de cessionários. Quando o sócio quiser ceder suas quotas, deverá proceder à notificação da sociedade para que exerça o direito de preferência. Não exercendo a limitada seu direito, o pretenso cedente deverá oferecer suas quotas aos demais sócios, que, por sua vez, poderão adquiri-las ou ceder o seu direito de preferência a outros sócios. Somente após a negativa da sociedade e dos co-sócios, podem as quotas ser cedidas a terceiros. O anteprojeto regula detalhadamente modo e tempo do que pode ser visto como procedimento de cessão de quotas.

A posição da própria sociedade limitada como primeira pessoa a exercer o direito de preferência sobre as quotas quer indicar, sem sombra de dúvidas, duas relevantes conseqüências jurídicas. A primeira delas trata da sobrevida da atual possibilidade de a limitada negociar as próprias quotas, caso se converta em lei o anteprojeto. E, a segunda diz respeito à predominância do caráter de sociedades de pessoas no regime projetado; no silêncio do contrato social, evita-se a cessão das quotas para terceiros, ao afirmar-se o direito de preferência da sociedade.

O art. 30 do anteprojeto dispõe que a sociedade ou sócios que representem, no mínimo, um quarto das quotas ordinárias podem opor-se à cessão de quotas a terceiros.

O anteprojeto cuidou de regular a responsabilidade solidária do cedente da quota social. Veja-se:

"Art. 7º. (...)

Parágrafo único. O sócio, que ceder suas quotas, continuará solidariamente responsável pela integralização do capital social até um ano após o arquivamento da alteração do contrato social."

E:

"Art. 32. Efetivada a cessão da quota, o cedente será, na hipótese de decretação da falência da sociedade e de constatar-se a não integralização do capital social, solidariamente responsável, até o limite do capital social, pelas obrigações contraídas até um ano após a data do arquivamento da alteração contratual que formalize a cessão de quotas e sua retirada da sociedade.

Parágrafo único. Quando tratar-se de quotista com reduzido número de quotas e sem participação no controle ou na gestão da sociedade, o juiz poderá exonerá-lo de responsabilidade."

Deve-se ressaltar que há, nesse particular do anteprojeto, um conflito aparente de normas, que facilmente resolve-se pelo princípio da especialidade.

O art. 7º, parágrafo único, prescreve que o cedente da quota fica solidariamente responsável pela integralização do capital até um ano após o arquivamento da correlata alteração contratual. Essa obrigação solidária tem lugar em qualquer execução, desde que se perceba que o capital não se encontra integralizado. Parece que a proposta alcança as obrigações sociais pretéritas, constituídas antes da cessão.

Por sua vez, o art. 32 projeta uma responsabilidade solidária adstrita à hipótese de verificação de falência da sociedade, cumulada com a constatação da não integralização do capital. Nessa especial hipótese de quebra, o cedente será, inclusive, solidariamente responsável por obrigações contraídas até um ano após a data do arquivamento da alteração contratual que formalizar a cessão, ou seja, a responsabilidade é muito mais grave, pois o cedente é solidariamente responsável por obrigações constituídas na sua ausência. Com essa regra, ao tempo da cessão, caso o capital não esteja integralizado, o cedente desconhece as obrigações que pode ser chamado a responder, porque elas se aperfeiçoarão ulteriormente.

A propósito, quando tratar-se de sócio de somenos importância censitária, o magistrado, no caso exclusivo de decretação de falência, pode eximi-lo da responsabilidade solidária. Em verdade, em nome da estabilização das relações negociais e sendo notório que o sócio minoritário não aponta o norte da vida empresarial, atento às peculiaridade do caso concreto, o juiz deverá eximir o cedente dessa obrigação.

A seu turno, a penhora de quotas no atual regime das sociedades por quotas de responsabilidade limitada foi estudada quando do cotejo do tema no projeto de Código Civil. Ao presente tópico interessa a estrita apreciação da sistemática do anteprojeto de lei de sociedades limitadas.

Mister se faz salientar que o contrato social tem a aptidão de tornar as quotas impenhoráveis. Nos exatos termos do art. 4º, I, a, do anteprojeto, é possível, contratualmente, vedar ou condicionar a penhora das quotas, sendo tal cláusula oponível erga omnes após o arquivamento de seu instrumento no respectivo Registro Público (art. 4º, parágrafo único).

Omitindo-se o contrato social, as quotas são passíveis de penhora. Ocorrendo a constrição judicial, a sociedade poderá pagar a dívida até o limite do valor patrimonial das quotas, "com fundos disponíveis e sem ofensa do capital social, reduzindo o capital social proporcionalmente ao valor das quotas do sócio executado" (art. 33, caput).

A vontade do sócio executado não interferirá no exercício desse direito da limitada. Trata-se de proposta de criação de um direito potestativo, haurido pelo predomínio do interesse da sociedade, que poderá ser exercido unilateralmente dentro de seu prazo decadencial.

Se a sociedade não exercer esse direito dentro de seis meses contados do aperfeiçoamento da penhora, qualquer sócio poderá proceder ao pagamento, tornando suas, no todo ou em parte, as quotas penhoradas (art. 33, §2º). Mais uma vez, esse direito será exercido, desprezando-se a vontade do devedor.

Caso as quotas sejam levadas à hasta pública, a sociedade e demais quotistas terão preferência para adquiri-las. Na hipótese de serem alienadas a terceiros, estes serão admitidos na limitada, na qualidade de sócios preferencialistas, sem direito de voto. Se a sociedade não tiver quotas preferenciais, sem direito de voto, deverá alterar-se seu contrato social.

Um episódio curioso pode acontecer no mundo da vida. Suponha-se que o capital de uma limitada fosse composto por dois terços de quotas preferenciais, sem direito de voto (limite projetado), e por um terço de quotas ordinárias. Se um sócio ordinarialista fosse executado e, ao final do processo se constatasse a arrematação das quotas por uma pessoa desconhecida da sociedade, a que título o arrematante nela ingressaria?

O anteprojeto não traz solução. A questão deve ser resolvida contratualmente. Os sócios deverão alterar o contrato social, de forma a redistribuir as espécies de quotas, permitindo que o arrematante ingresse na sociedade na qualidade de preferencialista dentro dos limites do anteprojeto. Ou, ainda, é possível que os demais sócios admitam o novo sócio como ordinarialista. O anteprojeto quer, através, da medida, vedar a ingerência de pessoas estranhas à sociedade. Contudo, entendendo os quotistas que não há mal algum em permitir o direito de voto ao novo sócio, poderão eles afastar a incidência do art. 33, §4º, do anteprojeto.

4.5.2. Quotas preferenciais

Em atenção ao atual regime jurídico das limitadas, resultante da confluência do diploma de 1919 e da Lei das Sociedades Anônimas, Viviane Muller Prado, reportando-se ao estudo de Egberto de Lacerda Teixeira, afirma que a existência das quotas preferenciais fundamenta-se no art. 15, §2º, da Lei n.º 6.404/76, que é norma de aplicação facultativa às sociedades por quotas de responsabilidade limitada. A autora aponta, de forma incisiva, a relevância dessas quotas na vida societária contemporânea, afirmando:

"As quotas que conferem privilégios na distribuição de dividendos mas são destituídas do direito de voto, possibilitam que o detentor do controle societário capte recursos de terceiros que não tenham interesse na gestão da empresa, mas apenas nos resultados financeiros por ela produzidos, sem comprometer tal poder de controle."[37]

Resta patente que a quota preferencial, a exemplo do que ocorre com a ação preferencial, sem direito de voto, permite que um único sócio ou um grupo de sócios, titular de pequena parcela do capital social, ostente o status de controlador da pessoa jurídica. Trata-se de um mecanismo de concentração do poder de determinação do norte societário.

Ao contrário do que parece, esse instrumental, no mais das vezes, mostra-se fundamental para o sucesso da atividade a ser desenvolvida pela sociedade. Imagine-se um mecânico, experimentado em seu mister, mas sem capital suficiente para estabelecer-se. Resolve ele constituir uma sociedade limitada, em razão de sua menor complexidade, em concurso com outros sujeitos, que não gozam do mesmo grau de conhecimento sobre as vicissitudes de uma máquina automotiva e, tampouco, compreendem a realidade do mercado de reparação de veículos. Ao mesmo tempo, não interessa aos seus consortes pôr as mãos na graxa; não lhes apetece a idéia de participar do dia-a-dia da oficina mecânica; preocupam-se somente em multiplicar o seu aporte de capital. Pois bem, torna-se conveniente atribuir o controle da sociedade ao mecânico, embora ele não detenha a maioria do capital social. E, como fazer isso? Através da previsão contratual de quotas preferenciais, sem direito de voto, permitindo que o mecânico titularize a maioria do capital votante, que não coincide, nessa hipótese, com a maioria do capital social.

Em contrapartida, às quotas sem voto são conferidas vantagens, que podem constituir em dividendos fixos ou mínimos; em prioridade na distribuição de dividendos; em prioridade no reembolso do capital, com prêmio ou sem ele; e na cumulação das vantagens enumeradas (art. 17 da Lei n.º 6.404/76).

No silêncio do contrato social quanto às vantagens da quota preferencial, terá lugar o dividendo diferencial instituído pela reforma da Lei n.º 6.404/76 (art. 17, I, primeira parte). Ora, a sonegação contratual de vantagens às quotas preferenciais dá azo à incidência de dividendos, no mínimo, 10% (dez por cento) superiores aos atribuídos às quotas ordinárias.

Embora haja setores doutrinários que admitem a existência, validade e eficácia das quotas preferenciais no direito brasileiro, a ausência de previsão legal específica, de tempos em tempos, cria certas complicações, sobremaneira junto ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. Pode ser que o órgão encarregado do Registro entenda que o estabelecimento contratual das quotas preferenciais esteja em desconformidade com a lei e, por conseguinte, negue o arquivamento, seja do próprio contrato social, seja de alterações que versem sobre a categoria jurídica.

Somente o advento de expressa disposição de lei pode pôr cobro às esporádicas discussões acerca do ingresso das quotas preferenciais no mundo do Direito.

Nem o Decreto n.º 3.708/19, nem o projeto de Código Civil regularam as quotas preferenciais, embora elas sejam, hodiernamente, previstas em muitos contratos de sociedades por quotas de responsabilidade limitada.

Ciente desse contexto e, sobretudo, atento aos anseios empresariais, o atual anteprojeto de sociedade de responsabilidade limitada dedicou um dispositivo ao tema, art. 26, o que tornará certa a viabilidade dessa espécie de quota.

A propósito, a norma prevê qualificação das quotas, imputando-lhes diferenças específicas. Haverá, legalmente quotas ordinárias e quotas preferenciais.

A redação projetada não cuida de conceituar o que é a quota preferencial. Contenta-se em facultar a sua previsão no contrato, dentro do limite de dois terços do capital da sociedade. Admite ainda, por razão maior de ser, restrições ao direito de voto de seu titular.

A quota preferencial tem lugar no contrato social e encontra o mesmo teto posto sobre as cabeças das ações preferenciais, ou seja, não poderão ultrapassar dois terços do capital social.

O voto pode experimentar, contratualmente, desde restrições referentes a algumas matérias até a sua total supressão. Surge, aqui, uma questão: uma vez suprimido o direito de voto da quota preferencial, ela jamais o restabeleceria?

A resposta é negativa. O anteprojeto, em seu art. 49, manda aplicar a Lei das Sociedades por Ações à sociedade de responsabilidade limitada, no que com esta for compatível. Assim, seria inegável, nesse caso, a incidência do art. 111, § 1º, da Lei 6.404/76. Fazendo-se uma leitura contextual da disposição, poderia dizer-se: as quotas preferenciais, sem direito de voto, adquirirão o exercício desse direito se a sociedade, pelo prazo previsto no contrato, não superior a três exercícios consecutivos, deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus, direito que conservarão até o pagamento, se tais dividendos não forem cumulativos, ou até que sejam pagos os cumulativos em atraso.

4.6. Órgãos sociais

O Decreto nº 3.708/19 não prevê órgãos sociais.

O anteprojeto, em um singelo dispositivo, art. 34, regula a assembléia geral e o conselho fiscal, afirmando a facultatividade deste último e dizendo que a convocação e o funcionamento de ambos serão regulados pelo contrato social, pelo acordo de quotistas, se houver, e pela Lei n.º 6.404/76, no que for compatível. Ou seja, a atual disciplina das sociedades anônimas orientará a estrutura orgânica das limitadas, seja de forma indireta na feitura do contrato, seja de maneira direta nas omissões contratuais.

4.7. Administradores

Um grande passo pretendido pelo projeto é estender, às pessoas jurídicas, a qualidade de administradoras das sociedades de responsabilidade limitada. Pretende-se permitir que a pessoa jurídica possa ser administradora dessa sociedade, o que constitui uma novidade para o ordenamento brasileiro. A esse respeito, a Lei n.º 6.404/76 reserva os cargos de administradores das sociedades anônimas para pessoas físicas, excluindo as pessoas morais.

Não se exige a qualidade de sócio do administrador, como ocorre no Decreto n.º 3.708/19. Qualquer pessoa, física ou jurídica, independentemente de ser sócia, pode ser administradora da limitada, segundo o anteprojeto.

Terá lugar no contrato social a designação de um ou mais administradores responsáveis pela representação da sociedade. Vale lembrar que o anteprojeto atribui-lhes o dever de diligência (art. 36).

Com respeito à responsabilidade da sociedade pelos atos dos administradores, o anteprojeto é inovador. As atribuições dos administradores, desde que constem de contrato devidamente arquivado, são oponíveis contra todos, o que reduz sensivelmente o campo de incidência da teoria da aparência. Os administradores só podem atuar nos limites de seus poderes contratuais e nada além. A atuação fora de seus limites gera sua responsabilização pessoal.

No campo da responsabilidade pessoal do administrador, o anteprojeto trilha os mesmos caminhos da Lei n.º 6.404/76.

4.8. Acordo de quotistas

Há muito, percebe-se na praxe societária a existência do acordo de quotistas, que é instrumento idôneo a formar grupos coesos de interesse no seio da sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Presta-se tanto à configuração do sócio controlador, quanto ao nascimento de fortes frentes de resistência das minorias.

A maioria da doutrina pátria, por exemplo, Celso Barbi Filho[38] e Waldírio Bulgarelli[39], sob a égide da atual ordenação das limitadas, admite sua validade, vigência e eficácia, fundamentada na aplicação subsidiária do art. 118 da Lei n.º 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações).

Por outro lado, setor isolado, representado por Tavares Guerreiro, rechaça a validade do acordo de quotistas. Argumenta que, por força do art. 2º, do Decreto n.º 3.708/19, o título constitutivo da sociedade por quotas de responsabilidade limitada regula-se pelos arts. 300 a 302 do Código Comercial Brasileiro; o art. 302, 7, do Código Comercial dispõe que deverão constar da escritura "Todas as mais cláusulas e condições necessárias para se determinarem com precisão os direitos e obrigações dos sócios entre si, e para com terceiro".

Com base nessas normas, essa doutrina afirma que o acordo de quotistas não poderia existir, pois competiria ao contrato social regular exaustivamente toda sorte de direitos e obrigações dos sócios. Waldírio Bulgarelli rebate, asseverando que:

"o acordo de quotistas não altera o contrato social – ao menos nas disposições essenciais – nem ofende em princípio o direito de terceiros, sendo destarte válido, vigente e eficaz; também não se trata de um contrato oculto entre todos os sócios infletindo sobre o contrato ostensivo, e sim, um ajuste entre sócios a respeito do exercício do direito de voto e outras avenças complementares. Por ser assim refoge, desde logo, à proibição do art. 302, 7, do Código Comercial."[40]

Celso Barbi Filho, entusiasmado pelo estudo do acordo de acionistas, admite, quanto ao acordo de quotistas, que:

"a ausência de previsão legal específica sobre o instituto, como visto, enseja dúvidas sobre a validade efetiva do acordo de quotistas."[41] (grifou-se).

O projeto de Código Civil não cuidou do tema, que veio a ter lugar num único artigo do anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada. Veja-se:

"Art. 39. Os sócios poderão celebrar acordo de quotistas, que, para valer contra terceiros, deverá ser arquivado no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, ensejando a execução específica.

Parágrafo único. Aplica-se ao acordo de quotistas o regime legal do acordo de acionistas previsto na Lei das Sociedades por Ações."

A primeira questão a ser suscitada, a partir da leitura da disposição transcrita, diz respeito à necessidade de arquivamento do acordo de quotistas na sede da própria sociedade, além de seu arquivamento no mencionado Registro Público. Seria essa formalidade imprescindível à observância do acordo pela limitada?

A resposta é afirmativa. Apreciando-se o disposto no art. 39, parágrafo único, do anteprojeto, fica patente a incidência do regime legal do acordo de acionistas sobre o de quotistas, o que torna necessário o seu arquivamento na sede da sociedade, para que esta o respeite (art. 118, caput, parte final, da Lei n.º 6.404/76).

Ainda em atenção ao regime do acordo de acionistas, aplicável ao de quotistas, comporta assinalar que não pode ele ser invocado para eximir a responsabilidade dos sócios pelo exercício do direito de voto e, tampouco para elidir a responsabilidade do quotista controlador.

Em princípio, podem ser objeto do acordo de quotistas a cessão de suas quotas, preferência para adquiri-las e o exercício do direito de voto.

Lembrando Celso de Albuquerque Barreto, Celso Barbi Filho aponta algumas restrições ao objeto do acordo de acionistas. Seriam elas:

"a) indeterminação de escopo, ou "acordos em aberto", caracterizados pela inespecificidade do ajuste quanto às matérias ou diretrizes do voto."

b) cessão do direito de voto sem transferência da titularidade das ações;

c) negociação do voto (crime, art. 177, § 2, Código Penal);

d) violação de direitos essenciais do acionista;

e) violação da legislação antitruste, de proteção à economia popular e aos consumidores;

f) acordo danoso aos interesses da sociedade (art. 115, da Lei das S/A);

g) acordos que tenham por objeto as declarações de verdade (aprovação de contas etc.)."[42]

A maioria dessas restrições, mutatis mutandis, aplica-se também ao acordo de quotistas.

A título ilustrativo, vale mencionar que as tratativas entabuladas com respeito ao voto na assembléia geral da sociedade limitada, em hipótese alguma, seja no atual regime jurídico, seja no projetado, poderá configurar o delito de negociação de voto, tipificado no art. 177, §2º, do Código Penal Brasileiro (letra c, supra). Trata-se de crime próprio, em que se exige o acionista como sujeito ativo; quotista não é acionista.

Caso o anteprojeto torne-se lei, a execução específica do acordo de quotistas, situada no art. 39, caput, parte final, do anteprojeto, pode mostrar-se problemática, tendo em vista a tormentosa experiência do acordo de acionistas.

A propósito, após o novel instituto processual da tutela antecipada, a execução desses acordos tem alcançado maior grau de efetividade.

Como o objeto do acordo é a declaração de vontade do sócio signatário, em verdade, o processo será de conhecimento, culminando com uma sentença, em que o Estado prestará a manifestação indevidamente omitida.[43]

Somente com a tutela antecipatória veio a ser possível o pronunciamento liminar, no sentido de antecipar os efeitos da decisão final, quando, é claro, preenchidos os pressupostos para tanto, art. 273 do Código de Processo Civil. Nesse contexto normativo, ganha maior respeitabilidade o acordo, pois colocam-se à disposição da parte lesada instrumentais suficientes à melhor realização de seu direito.

4.9. Dissolução, liquidação e extinção

O anteprojeto, em seu art. 40, dispõe que a dissolução, liquidação e extinção da sociedade deverão ser reguladas pelo contrato social e, no que for compatível, pela disciplina das sociedades por ações. Portanto, não se apresenta uma proposta expressa sobre procedimento de dissolução, que englobe o ato de dissolução, a liquidação, a partilha e a extinção da pessoa jurídica. Determina-se a regulação contratual, sendo de se aconselhar aos sócios minoritários o minucioso trato das hipóteses e do procedimento de dissolução.

Assim, no silêncio do ato constitutivo, as hipóteses de dissolução serão as constantes da Lei n.º 6.404/76, assim como, mutatis mutandis, o respectivo procedimento.

No que se refere à controvertida dissolução parcial da sociedade limitada, o anteprojeto é imperdoavelmente omisso.

Estudando a espécie, Carla Izolda Fiúza Costa Marshall assevera:

"A dissolução parcial vem a ser alternativa criada a partir da doutrina e da jurisprudência, não tendo sido matéria tratada pelo legislador ordinário.

O surgimento da dissolução parcial se deve ao fato de que nem sempre é necessária a extinção da sociedade. A dissolução total é por demais nefasta, em determinados casos, ou seja, quando é possível a manutenção do ente social. Desta forma, a dissolução parcial nasceu com a função de preservar a sociedade, quando desnecessária sua extinção."[44]

A dissolução parcial é uma constante nos pretórios brasileiros e reclama a devida regulamentação. Inclusive, seu procedimento é duvidoso. A doutrina não é unânime quanto ao rito processual adequado ao trâmite da dissolução parcial; se o comum, ordinário ou sumário, conforme o valor, ou se o subsistente procedimento de dissolução previsto no Código de Processo Civil de 1939.

Observem-se as gêneses distintas de ambas as pretensões. Na dissolução total, em abreviada síntese, busca-se a realização do ativo e pagamento do passivo, partilha do acervo patrimonial remanescente e, em última etapa, a extinção da limitada, com a cessação de sua atividade econômica. Lado outro, na dissolução parcial, pretende-se a apuração de haveres do sócio, seu pagamento e sua exclusão do quadro de quotistas, remanescendo, ao final, a sociedade em plena atividade, o que se mostra conforme com o princípio da preservação da empresa.

Ora, o procedimento estampado no CPC de 1939 é endereçado à dissolução total, e não à parcial. Os procedimentos especiais, dentre os quais se posiciona o de dissolução de sociedades, por serem excepcionais, aplicam-se somente às suas estritas hipóteses legais. Vale, ainda, lembrar que os procedimentos são cogentes, não competindo às partes escolher aquele que mais lhes convenha. Portanto, como o antigo CPC refere-se à dissolução total, não há falar-se em sua aplicação na dissolução parcial, que deve valer-se da via comum.

Embora não conste do anteprojeto, a dissolução parcial continuará a existir, principalmente pela projetada opção de reenvio à lei das sociedades por ações, que também tem comportado, doutrinária e jurisprudencialmente, o fenômeno da dissolução parcial.

4.10. Disposições gerais

Sob o capítulo das disposições gerais, o anteprojeto traz normas referentes a arbitragem, prescrição, publicidade das atas das assembléias e regime jurídico subsidiário.

Dispõe o art. 46 do anteprojeto:

"Art. 46. O contrato social poderá submeter à arbitragem as divergências entre a sociedade e os sócios ou entre estes, especificando as regras aplicáveis."

Permite-se expressamente, assim, a inserção de cláusula compromissória[45] de arbitragem no contrato social da sociedade de responsabilidade limitada. Essa disposição não se mostra imprescindível para o sucesso do anteprojeto, uma vez que, pela vigência singular da Lei n.º 9.307/96, que dispõe sobre arbitragem, já é possível a elaboração da cláusula para solução de litígios entre sócios. Há um único fundamento para sua inclusão no anteprojeto: a sociedade limitada não é parte em seu ato constitutivo e, portanto, somente a explícita menção legal pode autorizar o estabelecimento, por oportunidade da feitura do contrato, de cláusula compromissória para resolução de conflitos envolvendo ela e os sócios.

Com respeito à prescrição, o Decreto n.º 3.708/19 é silente, o que dá incidência aos prazos prescricionais do Código Civil e do Código Comercial (art. 444). O anteprojeto porta, em seu bojo, a previsão de que as ações decorrentes da sua violação ou do contrato social prescreverão em três anos.

A disposição é salutar e compatível com a dinâmica da atividade empresarial. Ela é primordial para a estabilização das relações societárias, que não podem ficar a mercê dos anos prescricionais atuais. Inclusive, é regra tardia, pois a Lei n.º 6.404/76 contém disciplina prescricional própria (arts. 285 a 288), com prazos extremamente reduzidos, se comparados aos do regime das limitadas, o que indica um tratamento de desigualdade entre sujeitos que dividem o mesmo mercado.

Comporta lembrar que tempus regit actum e, assim, os prazos prescricionais do anteprojeto, caso se tornem lei, somente incidirão sobre facta futura, por razões indiscutíveis de direito adquirido.

O art. 48 do anteprojeto dispensa, excetuada a hipótese de disposição contrária do contrato social, a publicação das atas das assembléias, mas exige o arquivamento delas na sede social, especialmente para o fim de prestar informações aos sócios, nos termos do art. 17, também do anteprojeto.

Houve por bem contrariar a opção de regime supletivo feita pelo projeto de Código Civil, que o aponta para o sistema das sociedades simples. O anteprojeto, em seu art. 49, preferiu dar subsistência ao regime subsidiário consagrado pelo art. 18 do Decreto n.º 3.708/19; tanto a sociedade de responsabilidade limitada, assim como a empresa individual de responsabilidade limitada, reger-se-ão, no que for compatível, pela Lei das Sociedades por Ações.

Haverá vacatio legis de seis meses.

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Sobre o autor
Marcelo Andrade Féres

professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), doutorando e mestre em Direito pela UFMG, diretor do gabinete do Advogado-Geral da União, procurador federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉRES, Marcelo Andrade. Panorama das propostas de reforma do regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2381. Acesso em: 24 abr. 2024.

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