Artigo Destaque dos editores

Panorama das propostas de reforma do regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada

Exibindo página 1 de 3
01/11/2001 às 01:00
Leia nesta página:

Sumário

: 1.Introdução; 2.História e características das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, necessárias à situação do tema; 3.Sociedade limitada no Projeto de Código Civil; 3.1.Generalidades sobre o projeto de Código Civil unificado e a sociedade limitada; 3.2.Impropriedade do nomem iuris; 3.3.Penhora de quotas; 3.4.Regime jurídico subsidiário da sociedade limitada; 4.Projeto de lei sobre sociedades de responsabilidade limitada; 4.1.Generalidades sobre o anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada; 4.2.Constituição; 4.3.Sócios; 4.3.1.Deveres dos sócios; 4.3.1.1.Título executivo na execução do sócio remisso;4.3.2. Direitos essenciais; 4.3.2.1. Situação do direito de voto; 4.3.2.2. Proposta de uma orientação distinta para o direito de retirada; 4.4. Capital social; 4.5. Quotas; 4.5.1. Cessão e penhora de quotas; 4.5.2. Quotas preferenciais; 4.6. Órgãos sociais; 4.7. Administradores; 4.8. Acordo de quotistas; 4.9. Dissolução, liquidação e extinção; 4.10. Disposições gerais; 5.Conclusões.

1.Introdução

A sociedade por quotas de responsabilidade limitada é o tipo societário mais comumente empregado na organização empresarial de pequeno e médio portes, sendo, assim, mecanismo fundamental no cenário econômico pátrio.

O regime jurídico dessa forma societária foi instituído pelo Decreto n.º 3.708, que remonta a 1919. Cuida-se de diploma legislativo possuidor de apenas dezenove disposições e inúmeras lacunas.

É certo que essa lacunosidade da formatação normativa propicia maiores possibilidades de adequação do tipo societário à multiplicidade de realidades e necessidades perceptíveis na dinâmica da vida empresarial. No entanto, concomitantemente, gera incertezas quanto a muitos aspectos da praxe societária, bem como flagrante instabilidade de suas categorias. Jurisprudência e doutrina mostram-se vacilantes. Tudo, de sorte a criar um ambiente de difícil cálculo do risco empresarial, inibindo o desenvolvimento de algumas atividades econômicas, ou mesmo as onerando excessivamente.

Rachel Sztajn, estudando os custos provocados pelo direito, aponta que segurança é a palavra de ordem. Quanto maiores os riscos de uma atividade, serão proporcionalmente maiores os valores repassados aos seus consumidores, para que se compense o investimento realizado. Veja-se:

"A insegurança que decisões apressadas e inconsistentes pode provocar nos agentes econômicos constitui fonte inesgotável de custo pois aumenta os custos de transação, do que resultará ineficiência alocativa."[1]

Pois bem, atentas a esse reclamo geral de estabilidade das categorias do Direito Societário, a fim de que se reduzam os riscos e, conseqüentemente, os custos empresariais, recentemente, as propostas de modificação da disciplina jurídica das sociedades limitadas têm despertado a atenção de legisladores e profissionais do Direito.

O presente trabalho tem por objeto o estudo de aspectos relevantes da sociedade limitada no projeto de Código Civil unificado, bem como proporcionar uma visão geral do anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada, apontando semelhanças e diferenças entre ambos.

Ao longo do desdobramento das intrincadas questões que revestem o tema, será feita uma análise do atual regime das limitadas, em atenção às recentes posições doutrinárias e jurisprudenciais.

Contudo, a finalidade primordial do presente estudo é orientar a elaboração e a alteração de contratos sociais das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, sugerindo a sua pronta adequação às regras e aos princípios constantes das propostas de reforma, que são meros reflexos das tendências doutrinárias e jurisprudenciais manifestadas quando da apreciação do Decreto n.º 3.708/19.

A propósito, o anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada contém uma reclamada categoria jurídica: a empresa individual de responsabilidade limitada. Trata-se de novidade para o ordenamento jurídico pátrio, embora já tenha merecido preciosas obras doutrinárias, como as de Sylvio Marcondes (Limitação da Responsabilidade do Comerciante Individual) e Calixto Salomão Filho (A Sociedade Unipessoal). Todavia, o complexo estudo da empresa individual ultrapassa os limites do presente trabalho, não sendo, portanto, nele abordado.


2.História e características da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, necessárias à situação do tema

O sistema singular do Código Comercial de 1850 conhecia apenas cinco formas societárias: companhias, sociedades em comandita, sociedades em nome coletivo, sociedades de capital e indústria e sociedades em conta de participação.

Dentre essas categorias, as companhias ou sociedades anônimas eram as únicas a, efetivamente, limitar a responsabilidade da totalidade de seus sócios. Todavia, do início da vigência do Código Comercial até 1882, eram elas constituídas mediante autorização, o que dificultava o seu implemento, além de serem elevados os custos de suas formalidades. Isso estimulou os pensamentos acerca de um inovador regime societário, que, ao mesmo tempo, fosse de ampla e irrestrita possibilidade de constituição, oferecesse limitação da responsabilidade dos sócios e representasse baixos custos operacionais.

A partir de 1882 instituiu-se, no Brasil, a plena liberdade de constituição das sociedades anônimas, o que não conteve o impulso então já originado, pois continuaram elevados os dispêndios com as companhias.

Notadamente inspirada pelo direito alemão, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada ingressou no ordenamento brasileiro por intermédio do Decreto n.º 3.708/19. Vale lembrar que Sylvio Marcondes sustenta que a primeira tentativa séria de instituição das limitadas no Brasil deu-se em 1912, no projeto de Código Comercial elaborado por Inglês de Souza.[2]

Perceba-se que foi o primeiro tipo societário concebido sob a segurança da personalidade jurídica, consagrada no Código Civil Brasileiro de 1916. Quando da disciplina das demais sociedades mercantis, pelo regime ímpar do Código Comercial de 1850, não havia a personificação delas; não eram qualificadas como sujeitos de direito, mas sim meros contratos.[3]

Inicialmente, o Código Comercial Brasileiro procedeu apenas à limitação da responsabilidade dos sócios, balizando-a conforme a diversidade dos tipos societários. A categoria da pessoa jurídica como sujeito somente se revestiu de certeza a partir do advento do Código Civil.

Sem dúvida, a limitada representa um regime intermediário, em que há limitação da responsabilidade dos sócios, liberdade de constituição e baixos custos.

A propósito, a responsabilidade dos quotistas no regime jurídico do Decreto n.º 3.708/19 pode ser dividida conforme o momento vivido pela sociedade: antes da integralização do capital social, os sócios respondem solidariamente até o limite do capital; uma vez integralizado o capital, cada sócio responde pela sua quota.

Comporta mencionar que doutrina e jurisprudência muito questionaram sobre a oportunidade de verificação da responsabilidade solidária dos sócios quando não realizado totalmente o capital; se somente poderia se efetivar em caso de falência da sociedade, por força do disposto no art. 9º do Decreto n.º 3.708/19, ou se se efetivaria em qualquer execução. Hodiernamente, tem prevalecido o entendimento de que, não estando integralizado o capital da sociedade, em qualquer processo de execução poderá ser exigida a obrigação solidária dos quotistas no limite do montante do capital social. Vale argumentar que o regime das limitadas pode ser também utilizado por sociedades civis, que não se sujeitam à falência, o que inviabilizaria o implementar da obrigação solidária dos quotistas quando não integralizado o capital, caso predominasse o entendimento de restrição à quebra.

As normas da limitada, em virtude de sua lacunosidade, configuram um regime híbrido, tanto servindo à concretização de sociedades de pessoas, quanto às de capital. Para se aferir a característica de determinada sociedade por quotas, deve-se investigar seu contrato constitutivo. Da análise de suas cláusulas, extrai-se sua qualidade, se de pessoas ou de capital. Será de pessoas a limitada que veda ou dificulta o ingresso de terceiros no seu quadro de quotistas; será de capital aquela que se preocupa, tão-somente, com o aporte financeiro que o sócio está disposto a realizar.

O tipo da sociedade por quotas de responsabilidade limitada pode ser utilizado tanto para a organização de sociedades mercantis quanto civis. Assim, seu regime pode dar nascimento a sociedades mercantis e civis, diferenciando-as em razão do objeto social; quando realizar atos de comércio, a sociedade será comercial e, nos demais casos, civil. Esse é o entendimento dominante na doutrina, comportando transcrever as palavras de Romano Cristiano, in verbis:

"Parece-nos, pois, insofismável que o Direito Positivo brasileiro admita claramente que a sociedade de fins econômicos tenha natureza civil e forma comercial, desde que excluída a forma anônima. Ocorre que anônima e limitada são formas societárias de tipo diferentes, não podendo haver confusão entre uma e outra. Com o quê – e visto que a exceção atinge apenas a anônima – temos que a forma limitada pode ser tranqüila e pacificamente adotada por sociedade civil, a qual não deixa, por isso, de ser civil. devendo ser tratada como tal, inclusive quanto à falência."[4]

São essas, em apertada síntese, as características do regime jurídico mais utilizado na organização empresarial de pequeno e médio portes, responsável por expressivo contingente de sujeitos econômicos. Consultem-se, por exemplo, as estatísticas da Junta Comercial sobre constituição de empresas no estado de Minas Gerais, em que há um nítido predomínio da limitada sobre os demais tipos.[5]


3.SOCIEDADE LIMITADA NO PROJETO DE CÓDIGO CIVIL

3.1.Generalidades sobre o Projeto De Código Civil unificado e a sociedade limitada

Por tratar-se de regime jurídico tão importante para o cenário empresarial, que está intimamente relacionado com as taxas de desenvolvimento do país, as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, repetidas vezes, é alcançada pelas intenções legislativas. De tempos em tempos, recebe ela propostas de modificação de sua disciplina.

Em 1967, formou-se uma comissão, coordenada por Miguel Reale, que apresentou o anteprojeto de Código Civil em 1972, em que há proposta de novo regime das sociedades limitadas.

Compunham a comissão os juristas: José Carlos Moreira Alves, encarregado da Parte Geral; Agostinho de Arruda Alvim, incumbido do Direito das Obrigações; Sylvio Marcondes, com o Livro do Direito de Empresa; Ebert Vianna Chamoun, incumbido do Direito das Coisas; Clóvis do Couto e Silva, cuidando do Direito de Família; e Torquato Castro, trabalhando o Direito das Sucessões.

Ao Professor Miguel Reale, conforme suas próprias palavras:

"coube o papel de coordenador-geral, propondo a estrutura ou sistemática do projeto, que foi aceita pelos colaboradores, sem prejuízo, é claro, de elaborar os textos que considerasse necessário acrescentar ou substituir, como de fato ocorreu."[6]

Na tarefa de sistematização do anteprojeto, Miguel Reale orientou-se por três princípios fundamentais, a saber: o da socialidade, o da eticidade e o da operabilidade. Pelo primeiro desses princípios, pretendeu-se imprimir ao conteúdo do documento um sentido social, em contraste com o caráter individualista predominante no Código Civil de 1916. O segundo princípio que inspira o anteprojeto, o da eticidade, nos dizeres de Reale, "confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto."[7] Quanto ao princípio da operabilidade, introduziram-se no anteprojeto disposições que tenham fácil aplicação, afastando normas complicadas que contêm equívocos e dificuldades.

Segundo dados apresentados por Miguel Reale:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

"O projeto de Código Civil foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984, após cuidadoso estudo e debate de 1063 emendas, o que não deve causar estranheza por tratar-se de uma lei com cerca de 2100 artigos. Além de haver muitas emendas repetidas, a maioria delas não foi aceita pelo plenário."[8]

Muita coisa mudou de lá para cá, conforme lembra Newton de Lucca:

"É preciso reconhecer-se, em suma, que os desafios de nossa época assumem aspecto tão preocupante e assustador, que não deixa de soar curiosa e pitoresca a negação de que os valores da Parte Geral do Direito Civil estejam em evidente fase de transformação, quando já não migraram para outras paragens do Direito de que a Constituição da República é o melhor paradigma."(9)

O Senado Federal também prestou sua contribuição ao projeto. Em 1997, aprovou-o com 332 emendas propostas pela Comissão Especial. Agora, o projeto está sob os renovados cuidados da Câmara dos Deputados, aguardando votação final das emendas oriundas da outra Casa do Congresso Nacional.

A exemplo do Código Civil Italiano, de 1942, o projeto ora em tramitação tem a pretensão de unificar o Direito Privado Brasileiro. Quando se fala em unificação, deve-se pensar, primeiramente, na estruturação do Direito Privado sobre a base de um único direito obrigacional, ou seja, o ponto nodal da unificação é a elaboração de um único Direito das Obrigações, comum a todos os sujeitos, não distinguindo entre comerciantes e não-comerciantes.

À época da feitura do anteprojeto de Código Civil, discutia-se sobre a necessidade de reforma do regime jurídico das sociedades por ações. Deveria ele ser inserido no anteprojeto ou mereceria uma lei especial?

Em razão da especificidade das sociedades por ações e da imprescindibilidade de se criar uma legislação que atendesse ao seu caráter institucional, preocupada com os direitos das minorias, concluiu-se pela elaboração de um anteprojeto de lei destacado do anteprojeto de Código Civil.

Constituiu-se, assim, a comissão para elaboração daquele anteprojeto, composta pelos professores Alfredo Lamy Filho e Bulhões Pedreira, que deu vida à atual Lei n.º 6.404/76, que dispõe sobre as sociedades por ações. Mas, e a sociedade por quotas de responsabilidade limitada?

Na oportunidade, não lhe emprestaram a mesma deferência das sociedades por ações. Inseriram-na no bojo do projeto de Código Civil unificado, que destina trinta e dois artigos à sua disciplina.

Sob o nomen iuris de sociedade limitada, o projeto prevê regramento distinto às sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Do art. 1055 é possível extrair suas características, veja-se:

"Art. 1055. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de sua quota, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social."

Nota-se que o capital é dividido em quotas e, com respeito à responsabilidade dos sócios, da apreciação do sistema do projeto, verifica-se que não há margem para as antigas discussões sobre a ocasião de reconhecimento da solidariedade dos quotistas, pois não é delimitada à hipótese de falência.

Tecendo opiniões sobre as normas gerais da sociedade limitada no projeto de Código Civil unificado, Waldírio Bulgarelli, aparentemente entristecido, afirma:

"Quanto aos tipos de sociedades, principalmente, as sociedades que o Projeto denominou de limitadas (as atualmente, por quotas de responsabilidade limitada), vale lembrar que o número de emendas apresentadas ao Projeto, a maioria de elaboração do Prof. Egberto Lacerda Teixeira e a série de críticas recebidas estão a demonstrar que as alterações procedidas não foram de molde a agradar a doutrina. Temos para nós, que sendo as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, um produto híbrido, que se situa entre as sociedades de pessoas e as de capital, tem servido como um modelo dúctil, capaz de albergar desde as simples sociedades entre marido e mulher até as holdings e que portanto não mereceria em princípio alterações, até porque a doutrina e a jurisprudência têm sabido com galhardia enfrentar e resolver os problemas que apresenta. Certamente, que perante um regime empresarial, haveria que se atentar para alguns aspectos que atuam contra a preservação da empresa, e lembraria aqui, como exemplo contundente, o valor a ser pago ao sócio retirante."[10]

São variados os aspectos cotejados pelo projeto, merecendo maior atenção os itens em que se desdobra o presente capítulo, conforme desenvolvimento adiante.

3.2. Impropriedade no nomen iuris

O nome atribuído pelo projeto de Código Civil ao tipo societário substitutivo da atual "sociedade por quotas de responsabilidade limitada" é "sociedade limitada", como usualmente é conhecido no meio empresarial.

Contudo, a expressão não se presta, adequadamente, a refletir a extensão e a compreensão da categoria jurídica que pretende denominar. Para a identificação dos diversos tipos societários brasileiros, é bastante o exame da responsabilidade dos sócios e a forma em que se divide o capital social. A título exemplificativo, a sociedade anônima tem o capital dividido em ações e a responsabilidade dos sócios é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas (art.1º da Lei n.º 6.404/76); a sociedade em comandita por ações tem o capital dividido em ações e apresenta duas categorias de sócios: o gerente, com responsabilidade ilimitada e subsidiária e os demais sócios, que têm a responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações por eles adquiridas ou subscritas; e assim por diante.

Comporta lembrar que João Marcos Silveira, ao tecer considerações sobre o antigo projeto de lei do Senado n.º 46/93, que versava sobre "sociedade de responsabilidade limitada", não poupou críticas ao nomen iuris, asseverando:

"De início o Projeto dispõe, em seu art. 1º, que regula a ‘Sociedade de Responsabilidade limitada’. Como, a rigor, existem outras espécies de sociedades de responsabilidade limitada, a supressão da expressão ‘por quotas’ é por isso contestável."[11]

Seguindo essa linha de raciocínio, o nome "sociedade por quotas de responsabilidade limitada" é o mais apropriado à identificação de seu regime jurídico. Da apreciação do nomen iuris, verificam-se todos os elementos necessários ao seu isolamento; o capital é dividido em quotas e a responsabilidade dos sócios é limitada ao valor de seu capital.

O nome é tão suficiente em si que Romano Cristiano brinca que a "sociedade em nome coletivo" é uma "sociedade por quotas de responsabilidade ilimitada".[12]

A propósito, "sociedade limitada" é um nome ostensivo que não revela seu conteúdo oculto. Afinal, não é só na limitada que se encontra a responsabilidade dos sócios adstrita ao valor de suas participações. Por exemplo, na sociedade anônima, a limitação da responsabilidade dos acionistas é ainda melhor delineada, porquanto independente da integralização do capital social.

A mesma impropriedade ganha lugar no atual anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada. Melhor seria a manutenção do atual nomen iuris, embora pesem sobre ele críticas outras.

3.3. Penhora de quotas

Antes de abordar o trato da penhora das quotas da sociedade limitada no projeto de Código Civil, mister se faz uma visão do problema sob os auspícios do atual regramento jurídico.

O tema diz respeito à penhorabilidade das quotas sociais por dívidas exclusivas dos sócios, ou seja, investiga a possibilidade de a participação societária sofrer constrição em processo executivo, em que somente o sócio figure como devedor.

Elaborando comentários sobre recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça (Resp. 39.609-SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira), Uinie Caminha ministra que:

"Na sua acepção clássica, ‘quota’ é o termo utilizado para designar o quinhão com que o sócio contribui para a formação do capital social de qualquer sociedade. É, na definição de Egberto de Lacerda Teixeira, a entrada ou contingente com que cada um dos sócios contribui ou se obriga a contribuir para a formação do capital social. Assim, é parte integrante do patrimônio da sociedade, apartado do patrimônio dos sócios por força de sua personalidade jurídica (CCiv. art. 20)."

E, conclui adiante:

"Logo, é inteiramente descabido se falar em expropriação de quota se como tal se entende a contribuição do sócio para a formação do capital social. Nesse caso, repita-se, a quota não integra o patrimônio do sócio quotista, razão pela qual não pode ser expropriada em execução, na qual apenas o sócio figure como devedor. Dessa forma, só se pode cogitar de expropriação de quotas, se como tal se designar os direitos provenientes do fato de se ter contribuído para a formação do patrimônio autônomo da sociedade, e não a própria contribuição. Apenas esses direitos, por integrarem o patrimônio do sócio quotista, podem ser objeto de expropriação em processo executivo movido contra ele."[13]

A questão não é pacífica, havendo quem se posicione em sentido contrário, embora o entendimento esposado por Uinie Caminha seja o melhor sobre o tema.

Egberto Lacerda Teixeira, afirma que, nesse particular da penhora das quotas, o projeto de Código Civil unificado é silente.[14] No entanto, examinando a penhora das quotas sociais no projeto, Carlos Henrique Abrão afirma que ele cuidou de regulá-la de forma indireta.[15] E, a seguir, o doutrinador indica a disposição do projeto. Veja-se:

"Art. 1.029. O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bem do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação.

Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.034, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até três meses após aquela liquidação."

O autor procede a ferrenhas críticas ao dispositivo projetado, dizendo que em nada aproveita ao aprimoramento da categoria jurídica, persistindo todas as discussões sobre a efetivação dessa garantia dos credores. A disposição não se basta, sendo de excessiva complexidade e difícil aplicação a casos concretos. Melhor tratamento é o dispensado pelo atual anteprojeto de lei de sociedades de responsabilidade limitada, que será abordado oportunamente.

3.4. Regime jurídico subsidiário da sociedade limitada

Desde 1.919, o regime das sociedades por quotas de responsabilidade limitada qualifica a disciplina das sociedades anônimas como seu instrumento supletivo. O art. 18 do Decreto 3.708/19, assim prevê:

"Serão observadas quanto às sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, no que não for regulada no estatuto social, e na parte aplicável, as disposições da lei das sociedades anônimas."

Interpretando esse dispositivo, a doutrina pátria experimentou verdadeira fragmentação.

A primeira corrente que se formou afirmava que a lei das sociedades anônimas seria fonte supletiva do contrato social e nada além. Pretendiam conferir ao regime das sociedades anônimas o papel de orientar a interpretação dos contratos das limitadas.

A segunda posição asseverava que a disciplina das sociedades anônimas constituiria fonte subsidiária do Decreto n.º 3.708/19. Para esse setor doutrinário, a lei das sociedades anônimas integraria o regime das limitadas, nos seus aspectos lacunosos.

Todavia, uma terceira visão, conciliadora das duas anteriores, prevalece atualmente. A lei das S/A fornece regime subsidiário tanto ao Decreto n.º 3.708/19 quanto aos contratos sociais das limitadas.

Sobre o caráter subsidiário da Lei de Sociedades Anônimas e sua harmonização com o Decreto n.º 3.708/19, Carlos Henrique Abrão lembra que:

"o melhor estudo a respeito da harmonização dos diplomas societários foi desenvolvido por Egberto Lacerda Teixeira. Para efeito de hermenêutica supletiva, o mencionado autor divide as normas das sociedades anônimas em quatro modelos: imperativas ou cogentes, supletivas, facultativas e incompatíveis."[16]

Essa posição proporcionou sucesso às limitadas no cenário empresarial, pois permite a ela a assunção do caráter de sociedade de pessoas quando seu contrato reporta-se ao regime societário do Código Comercial e, sociedade de capital, quando nitidamente orientado pela lei das sociedades anônimas.[17]

Nada obstante esse sucesso, o projeto de Código Civil, em seu art. 1056, remete o regime subsidiário à disciplina da planejada sociedade simples, ao prever:

"A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste capítulo, pelas normas da sociedade simples."

Sem dúvida, uma novidade do projeto de Código Civil, no campo do direito societário, é a sociedade simples, à qual são dedicados 41 artigos (arts. 1.000 a 1.041).

A doutrina afirma que esse tipo societário nasceu no unificado Código de Obrigações da Suíça e, mais tarde, foi transplantado para o Código Civil Italiano, de 1942. O projeto de Código Civil, assim como fez o projeto de Código de Obrigações, tenta introduzir no ordenamento brasileiro essa figura societária.

Transcrevendo as palavras de Sylvio Marcondes, Rubens Requião assevera que:

"valendo-se das sugestões do Código de Obrigações suíço e do Código Civil italiano – e é sintomático que, a respeito, este se tenha utilizado daquele – o anteprojeto coordena os preceitos gerais das sociedades, do Código Comercial, com as regras do Código Civil, e estrutura as sociedades simples, como um compartimento comum, de portas abertas para receber e dar soluções às apontadas questões."[18]

Contudo, a sociedade simples sofre incisivas críticas de Rubens Requião. Veja-se:

"Condenamos, conforme já tivemos oportunidade de expressar em outro estudo, a introdução da sociedade simples no direito brasileiro, sem raízes na tradição jurídica de nosso País. Seria mais conveniente que o Anteprojeto de Código Civil estabelecesse, como no regime atual, os princípios gerais que presidem as sociedades."[19]

Carlos Henrique Abrão, balizando o objeto da sociedade simples, pondera:

"A definição de sociedade simples deve ser buscada pela análise conjunta dos dispositivos do Projeto de Código Civil. Diante do quadro bosquejado, chegamos à conclusão, de lege ferenda, que a sociedade simples ficaria reservada:

I-aos profissionais intelectuais, não organizados em empresa;

II-aos pequenos empresários, enquanto tais;

III-às sociedades cooperativas, por força do disposto no art. 1096 do Projeto de Lei n. 634-B, de 1975."[20]

Ora, o sucesso do regime subsidiário oferecido pela lei das sociedades anônimas não pode sucumbir perante uma incógnita. Não se apresenta sensata a opção feita no bojo do projeto, sobremaneira porque a sociedade simples tem nítido caráter de sociedade de pessoas, o que pode prostrar as limitadas, que, então, passarão a se orientar, estritamente, por normas desse tipo de sociedade.

Comporta, nesse ponto, fazer honrosa menção ao anteprojeto de lei das sociedades limitadas, em que se contempla a melhor doutrina contemporânea, dispondo, em seu art. 49, in verbis:

"A sociedade de responsabilidade limitada e a empresa individual de responsabilidade limitada reger-se-ão pela presente lei e pelo seu contrato social, e, subsidiariamente, pela Lei das Sociedades por Ações, no que for aplicável."

Resta patente que o atual anteprojeto contempla a Lei das Sociedades por Ações como fonte subsidiária tanto da lei quanto do contrato.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcelo Andrade Féres

professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), doutorando e mestre em Direito pela UFMG, diretor do gabinete do Advogado-Geral da União, procurador federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉRES, Marcelo Andrade. Panorama das propostas de reforma do regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2381. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos