CONCLUSÃO.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o Ministério Público é um subsistema do sistema de justiça que ganhou energia sistêmica a partir de sua diferenciação em relação ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo operada legalmente nos idos da década de 80, especialmente com a Constituição de 1988. Como subsistema, atua na fronteira entre o sistema de justiça em sentido amplo e o ambiente sistêmico da sociedade organizada, captando demandas de setores sociais, especialmente grupos hipossuficientes, internalizando-as em operações próprias e, por vezes, canalizando-as ao Poder Judiciário, quando tal se mostre imprescindível ou viável em autênticos acoplamentos estruturais seletivos. Nesse sentido, ao solucionar (e selecionar) demandas de grande interesse social, seja isoladamente, mediante inquérito civil, seja mediante ações judiciais, a exemplo das ações civis públicas, ações de improbidade administrativa, processos criminais de repercussão, contra a criminalidade organizada do setor privado ou público, ou mesmo atuações tradicionais contra a criminalidade de menor potencial ofensivo que no seu arcabouço revela interesse social (violência doméstica, criminalidade de trânsito), o Ministério Público vem reforçando o papel do sistema de justiça, esforçando-se por gerar-lhe energia sistêmica, traduzida em legitimidade política e reconhecimento social.
Mesmo que a sociedade brasileira venha a organizar-se mais eficientemente em longo prazo, dispensando, em parte, o poder tutelar do Ministério Público, parece correto vaticinar que a crescente complexidade social, a engendrar novas demandas e imprevistos riscos, continuará a demandar uma proteção pública autônoma e, destarte, o saber de experiência então acumulado pelo Ministério Público brasileiro que o habilitaram, em 1988, ao papel de defensor do povo brasileiro, haverá de continuar a capacitá-lo neste mesmo mister no futuro.
De certo modo, analisando-se a história recente do Estado brasileiro e sua tradicional tripartição dos poderes sob o instrumental teórico da teoria dos sistemas, parece justo e não soa pretensioso afirmar que o Poder Judiciário deve, em boa parte, ao Ministério Público o ganho institucional que possa ter auferido nos últimos tempos, pois não fosse a atividade seletora do Ministério Público exercida nas fronteiras do sistema de justiça, grandes questões de repercussão nacional não teriam aportado à arena judicial, tornando o judiciário importante protagonista na tutela dos direitos sociais. Se o Poder Judiciário vem ganhando espaços da complexidade social, solucionando problemas de ampla envergadura e, destarte, conquistando legitimidade, isto se deve, em muito ao Ministério Público republicano.
E não seria incorreto afirmar que também o Poder Executivo vem se beneficiando das atividades do parquet em matéria de defesa dos interesses coletivos, pois, embora, em certo sentido tenha sido diminuído em sua função redistributiva, o Executivo tem se valido da atuação jurisdicional e do Ministério Público, para justificar-se nas pendências antimajoritárias, evitando o desgaste eleitoral na tomada de decisões que contrariem amplos segmentos da sociedade ou interesses econômicos mais poderosos. Ademais, a fiscalização sobre contas públicas, procedimentos licitatórios e eleitorais, acredita-se possa aos poucos expulsar das pretensões eleitorais aqueles que finalizam no exercício de mandatos eletivos tão-somente interesses escusos.
Por fim, o legislativo também é favorecido sistemicamente pelo Ministério Público, pois, em 1988, atribuiu-lhe a defesa da ordem jurídica e do regime democrático de sorte que lhe outorgou mecanismos de accountability de suas próprias decisões legislativas em face dos demais poderes públicos e sociais. Ou seja, o parquet brasileiro, ao assumir a função constitucional de defensor do regime democrático, posiciona-se na obrigação de fazer valer a lei produzida de modo democrático nos parlamentos brasileiros.
Conclui-se, portanto, que, mesmo defendendo os interesses primários da sociedade, o Ministério Público, paradoxalmente, reforça a importância do Estado, enquanto subsistema do grande sistema social omniabarcador. Cuida-se de instituição essencial à organização social e estatal no Brasil, país em que assume características muito próprias em relação a outros nações, adotando diversas subdivisões internas e pontos de contato com outros setores da sociedade civil e política.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA:
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
ARANTES, Rogério Bastos, Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo: EDUC, Ed. Sumaré, Fapesp, 2002.
AXT, Günter. Ministério Público no Rio Grande do Sul – Evolução Histórica. Projeto Memória. Porto Alegre: Procuradoria Geral de Justiça, 2001.
GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e Democracia – Teoria e Práxis. Leme –São Paulo: Ed. de Direito, 1998.
KERCHE, Fábio. O Ministério Público e a Constituição de 1987/88. In: SADEK, Maria Tereza (org.). O Sistema de Justiça. São Paulo: IDESP/Ed. Sumaré/Fundação Ford, 1999.
PERTENCE, José Paulo Sepúlveda (prefácio). In: ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais – Considerações acerca da Legitimidade Política e Processual do Ministério Público e do Sistema de Justiça para sua Tutela. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
SALLES, Carlos Alberto de. Entre a Razão e a Utopia: A Formação Histórica do Ministério Público. In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes; MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (org.). Ministério Público II – Democracia. São Paulo: Atlas, 1999.
Notas
[1] Por Estado Novo se denomina a fase histórica do primeiro governo do Presidente Getúlio Dornelles Vargas, no período de 1930 a 1945. Nesse período, coincidente com a Segunda Guerra Mundial, o Brasil sofreu significativos câmbios sócio-econômicos, de uma sociedade ruralista e conservadora, para uma sociedade crescentemente urbana e industrializada. Ademais, foi período de grande avanço nos direitos sociais, surgindo a legislação laboral – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – e o início da previdência social, muito embora tenha sido período reconhecido como de redução das liberdades individuais, visto tratar-se de governo ditatorial.
[2] Convém registrar que o Código Civil de 1916 incumbiu ao Ministério Público, por exemplo, a curadoria das fundações (art. 26); a legitimidade para propor ação de nulidade de casamento (art. 208, parágrafo único, inc. II), defesa dos interesses de menores (art. 394, caput), legitimidade para promover a interdição (art. 447, III) promover a nomeação de curador de ausentes, entre outras. Por outro lado, o Código de Processo Civil de 1973 deu-lhe tratamento sistemático no Título III, do Livro I, além de diversas referências esparsas. O Código de Processo Penal de 1941, já anteriormente, havia consolidado a posição do Ministério Público como titular da ação penal, a qual passou a ser a regra, e estabeleceu o poder de requisição de inquérito policial e de diligências à autoridade policial.
[3] SALLES, Carlos Alberto de. Entre a Razão e a Utopia: A Formação Histórica do Ministério Público. In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes; MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (org.). Ministério Público II – Democracia. São Paulo: Atlas, 1999, p. 28.
[4] AXT, Günter. Ministério Público no Rio Grande do Sul – Evolução Histórica. Projeto Memória. Porto Alegre: Procuradoria Geral de Justiça, 2001, p. 84-5.
[5] Idem, ibidem.
[6] Insta frisar, por oportuno, que a ampliação da legitimidade ativa para o controle concentrado de constitucionalidade ocorrida em 1988, é sem dúvida uma das mais relevantes razões do processo de judicialização da política no Brasil, enquanto monopolizado este controle pelo chefe do Ministério Público Federal, houve um represamento da contestação a diplomas legislativos acusados de inconstitucionalidade, cuja denúncia não chegava ao Supremo Tribunal Federal. A abertura da legitimidade ativa para o controle concentrado de constitucionalidade em 1988, estendida a outros entes além do Ministério Público, importou no rompimento da represa, deslocando o eixo de poder, centrado precipuamente no Executivo, para a jurisdição constitucional que passou a ser o palco de discussões sobre temas de grande repercussão social e política.
[7] PERTENCE, José Paulo Sepúlveda (prefácio). In: ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 09.
[8] Vale registrar que esta mudança de atitude do Ministério Público na sua atuação criminal é um traço ainda mais perceptível no Brasil dos últimos anos, quando a instituição passou a priorizar o combate aos atos criminosos contra o patrimônio e o interesse público, como ocorre nas demandas criminais em face de agentes públicos ímprobos, em fenômeno que já vem sendo denominado “criminalização da política”. Em tais casos, mostra-se patente a opção institucional pela defesa da comunidade e o bom uso que pode fazer da independência em relação aos demais poderes.
[9] ARANTES, Rogério Bastos, Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo: EDUC, Ed. Sumaré, Fapesp, 2002, p. 32 e segs. Este dispositivo do CPC foi apresentada pelo Promotor gaúcho, Sérgio da Costa Franco, no I Congresso Nacional do Ministério Público em São Paulo, no ano de 1973. A tese foi aprovada no Congresso Nacional, cuja redação original do art. 82, inc. III, do CPC impunha ao Ministério Público intervir “em todas as demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte”.
[10] PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais – Considerações acerca da Legitimidade Política e Processual do Ministério Público e do Sistema de Justiça para sua Tutela. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006, p. 155-6.
[11] GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e Democracia – Teoria e Práxis. Leme –São Paulo: Ed. de Direito, 1998, p. 95. Vide, acerca do conceito de sociedade em Gramsci, o tema abordado no Capítulo II desta dissertação.
[12] GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e Democracia – Teoria e Práxis, p. 96. Porém, conforme alerta Gregório Assagra de Almeida, “observa-se que esse deslocamento da sociedade política para a sociedade civil é muito mais funcional que administrativo, pois administrativamente o Ministério Público ainda permanece com estrutura de instituição estatal, com quadro de carreira, lei orgânica própria e vencimentos advindos do Estado, o que é fundamental para que ele tenha condições de exercer o seu papel constitucional em pé de igualdade com os poderes por ele fiscalizados”[grifos no original] (ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 509-10).
[13] Conforme já se sublinhou, durante o regime militar, o Procurador Geral da República, nomeado pelo Presidente da República mesmo fora da carreira, era o único titular da ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, o único capaz de efetuar o controle de constitucionalidade da legislação de origem prevalentemente executiva, mediante os famigerados “decretos-leis”, que se transformavam em leis, mediante simples decurso de prazo sem deliberação legislativa.
[14] Apud ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil, p. 86.
[15] KERCHE, Fábio. O Ministério Público e a Constituição de 1987/88. In: SADEK, Maria Tereza (org.). O Sistema de Justiça. São Paulo: IDESP/Ed. Sumaré/Fundação Ford, 1999 p. 61 – 77.
[16] Op. cit., p. 61.
[17] Ou seja, uma herança do ideário político de Getúlio Vargas.
[18] Op. cit. p. 69.
[19] Neguentropia é expressão advinda da Teoria dos Sistemas e significa, resumidamente, ganho energético interno do sistema. Tal ganho advém de operações endógenas do sistema que contrariam sua fatal tendência à entropia, ou seja, à perda de energia, que ensejaria a diluição sistêmica em seu entorno.