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Encefalocele e aborto legal: o necessário cuidado da fundamentação para evitar o viés eugênico

01/03/2013 às 15:55
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A lei, nessa situação-limite, escolheu a preservação da vida da gestante em detrimento do produto da concepção. Essa escolha é moralmente defensável?

A 17ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais autorizou a prática de aborto de feto com encefalocele em caso no qual havia risco à vida e à saúde da gestante.  

Inicialmente é preciso dizer que a encefalocele (ou cranium bifidum) é um defeito do tubo neural, doença na qual ocorre a herniação do cérebro e das meninges por aberturas no crânio. Pode causar deficiências motoras e intelectuais graves. O único tratamento efetivo disponível é a cirurgia reparadora. A permissão do TJMG para o aborto nesse caso deve ser vista não pelo prisma do defeito congênito do feto, mas pelos riscos da gravidez para a gestante, configurando aquilo que se convencionou denominar de “aborto necessário ou terapêutico”. No caso concreto, a fundamentação usada para a permissão do abortamento foi a de que havia risco de morte para a gestante, o que se coaduna com um dos casos de aborto legal previsto no ordenamento jurídico brasileiro. É bom anotar que se a autorização para o abortamento se basear somente na doença do feto estaremos diante de uma odiosa postura eugênica, já que a encefalocele não é necessariamente letal e tem tratamento, ainda que por meio de intervenção cirúrgica. É bem verdade que “o índice de mortalidade nesses casos é alto, podendo atingir 44 %, e o desenvolvimento intelectual está prejudicado em mais de 90% das vezes”. [1] Não obstante, como visto, há chances preponderantes de sobrevida, bem como nem sempre há lesões intelectuais e mesmo que o haja, isso não pode ser motivo para a eliminação da vida como se pudesse existir um critério de vidas que merecem ser vividas, lembrando muito proximamente a eugenia nazista.  No bojo da ADPF 54 que tratava do tema da “anencefalia”, o STF foi bem claro no sentido de que não se estava descriminalizando o aborto, mas indicando um caso em que não havia vida potencial, o que permitiria a retirada do produto da concepção não dotado do bem jurídico tutelado pela norma. Esse claramente não é o mesmo caso da “encefalocele” de modo que a adoção da autorização do abortamento pelo seu simples diagnóstico pode configurar aquilo que os contrários ao abortamento em casos de anencefalia preconizavam, ou seja, o fenômeno da “ladeira escorregadia”. Iniciar-se-ia com a anencefalia, depois a encefalocele, depois alguma outra doença congênita, até chegar em prognósticos de retardo mental, de Síndrome de Down, possibilidade de cegueira, surdez, quem sabe de miopia ou futura calvície?!

Entretanto, retomando a questão dos abortamentos legais previstos na legislação brasileira, há previsão no artigo 128, I e II dos abortos “terapêutico ou necessário” (para salvar a vida da gestante) e “sentimental, humanitário ou ético” (em casos de gravidez resultante de estupro). Havendo risco de morte da gestante, conforme alegado no decisório do TJMG, o abortamento está justificado pelo disposto no artigo 128, I, CP, desde que praticado por médico. Nesses casos o aborto também pode, excepcionalmente, ser perpetrado por não médico, mas somente em casos de estado de necessidade, aplicando-se então o artigo 24, CP e não o artigo 128, I, CP. Nossa legislação não prevê o aborto necessário quando está em jogo tão somente a preservação da saúde da gestante, não havendo efetivo risco de morte. Não obstante, parece que no caso concreto era induvidosa a situação de risco de morte, afiançada pelos pareceres de três profissionais médicos de alto gabarito.

A decisão do TJMG, aliás, conta com precedente do STJ no HC 86835 de relatoria do Ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, onde se aduz que “com risco de perder a vida e grávida de criança portadora de encefalocele occital e rins policísticos (Síndrome de Meckel-Gruber)” é permitida à gestante a interrupção da prenhez.  

Observe-se novamente que o fundamento da decisão não é a presença da anomalia fetal, mas o risco de morte da gestante.

Greco esclarece que o aborto necessário não passa de um caso específico de estado de necessidade:

“No caso do aborto necessário, também conhecido por aborto terapêutico ou profilático, não temos dúvida em afirmar que se trata de uma causa de justificação correspondente ao estado de necessidade”. Traz inclusive à baila a opinião concordante de Heleno Claudio Fragoso que aduz que, “segundo a opinião dominante”, o aborto terapêutico “constitui caso especial de estado de necessidade”. No mesmo sentido também menciona o escólio de Frederico Marques para quem o aborto necessário tem a mesma “ratio essendi” da impunidade que advém do estado de necessidade. Aponta ainda Paulo José da Costa Júnior para quem o próprio dispositivo do artigo 128, I, CP seria desnecessário, tendo em vista a existência do artigo 24 do mesmo codex. A conclusão é realmente insofismável, vez que se trata de uma situação – limite em que se deve escolher entre a vida da gestante e a vida do feto, “ambos bens juridicamente protegidos”, sendo fato que “um deve perecer para que o outro subsista”. [2]

É mesmo devido a essa quase identidade com o estado de necessidade que nos casos de aborto necessário praticado por não médico há também exclusão de criminalidade, mas então com base no artigo 24, CP (estado de necessidade), uma vez que o artigo 128, I, CP, exige que o ato seja praticado por médico.

A lei nessa situação – limite escolheu a preservação da vida da gestante em detrimento do produto da concepção. Essa escolha é moralmente defensável?

A resposta é positiva.

 Nem a morte em si, nem a sua expectativa ou suas conseqüências são iguais quando se trata de um ser humano já formado e com relações interpessoais vivenciadas e um ovo, embrião ou feto. Em havendo um eventual conflito, não configuraria nenhum preconceito, injustiça, crueldade ou parcialidade optar pela vida humana formada em detrimento do produto da concepção. Isso não significa que a vida intrauterina seja desprovida de valor ou de tutela jurídica, mas que em casos – limite, o conflito deve ser solucionado pela proporcionalidade.

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REFERÊNCIAS

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume II. 8ª. ed. Niterói: Impetus, 2011.

OLIVEIRA, André Luiz Baptista. Epidemiologia dos defeitos de fechamento do tubo neural no hospital de clínicas de Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Medicina. Programa de Pós – graduação em medicina: Ciências médicas. Dissertação de Mestrado, 2008.


Notas

[1] OLIVEIRA, André Luiz Baptista. Epidemiologia dos defeitos de fechamento do tubo neural no hospital de clínicas de Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Medicina. Programa de Pós – graduação em medicina: Ciências médicas. Dissertação de Mestrado, 2008, p. 22. Também disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13567/000651939.pdf?sequence=1. Acesso em 10.02.2013.

[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume II. 8ª. ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 235 – 236. 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Encefalocele e aborto legal: o necessário cuidado da fundamentação para evitar o viés eugênico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3530, 1 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23850. Acesso em: 21 nov. 2024.

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