Código Penal
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
- Dispositivo introduzido pela Lei n. 10.224, de 15.5.2001
1.Assédio ambiental
Não está previsto na Lei n. 10.224/2001. Consta, por exemplo, do Código Penal espanhol (art. 173) e se caracteriza por "um comportamento de natureza sexual de qualquer tipo que tem como conseqüência produzir um contexto laboral negativo – intimidatório, hostil, ofensivo ou humilhante – para o trabalhador, impedindo-o de desenvolver seu trabalho em um ambiente minimamente adequado"[1].
2.Assédio moral
Não foi previsto na Lei n. 10.224/2001. Caracteriza-se pela conduta tendente a transformar a vítima em um robô, como proibição de sorrir, conversar, levantar a cabeça, cumprimentar os colegas de trabalho etc. (fonte: Luiz Flávio Gomes, www.direitocriminal.com.br, 23.7.2001).
3.Vigência
Publicada em 16.5.2001, a Lei n. 10.224 entrou em vigor na mesma data.
4.Irretroatividade
A novatio legis incriminadora não tem efeito retroativo, aplicando-se somente a fatos cometidos a partir de sua vigência (16.5.2001).
5.Crítica
No plano da tipicidade, o tipo do art. 216-A é extremamente confuso, deixando de conferir clareza e precisão ao texto, contrariando, assim, as recomendações do art. 11, I e II, da Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998 (Lei da Técnica de Elaboração das Leis). Além disso, peca pela limitação da incriminação (parágrafo único vetado) e exagero punitivo (em quantidade, a pena mínima é a mesma do aborto consentido).
6.Objetividade jurídica
O novo tipo penal encontra-se descrito no rol dos crimes contra os costumes (bem jurídico genérico), especialmente no capítulo que trata dos delitos contra a liberdade sexual (interesse jurídico específico). Não há dúvida de que este é um dos bens jurídicos protegidos pela norma. A leitura do dispositivo em apreço, entretanto, leva-nos a concluir sobre a existência, concomitante, de outros bens jurídicos (delito pluriofensivo): honra e direito a não ser discriminado no trabalho ou nas relações educacionais.
7.Utilidade da norma – prevenção geral
Os efeitos da nova incriminação já puderam ser sentidos, visto que inúmeras são as instituições (públicas[2] e privadas) que passaram a se preocupar com o tema, reforçando programas de esclarecimento, promovendo cursos, palestras, afixando comunicações nos quadros de avisos da empresa etc.
8.Necessidade da incriminação
Haverá duas posições: 1.ª) a incriminação era desnecessária, uma vez que já tínhamos as descrições dos crimes de constrangimento ilegal, ameaça, estupro e atentado violento ao pudor, além da contravenção da importunação ao pudor e recursos cíveis e trabalhistas; 2.ª) a incriminação era necessária, uma vez que as figuras do constrangimento ilegal etc. nunca ofereceram proteção aos bens jurídicos questionados, por falta de perfeita adequação típica. Nossa posição: a segunda. Realmente, o fato, objeto de merecimento criminal, nunca teve uma adequação típica tranqüila em nossa legislação penal.
9.Sujeitos do crime
Qualquer pessoa, homem ou mulher, pode ser sujeito ativo do crime de assédio sexual, o mesmo ocorrendo em relação ao sujeito passivo. Assim, o fato pode ser praticado entre dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher. A lei exige, entretanto, uma condição especial dos sujeitos do crime (crime próprio). No caso do autor, deve estar em condição de superioridade hierárquica ou de ascendência em relação à vítima, decorrente do exercício de cargo, emprego ou função (plano vertical, de cima para baixo). A vítima deve encontrar-se em situação de subalternidade em relação ao autor.
10.Homossexual
Pode ser sujeito passivo.
11.Diarista
Haverá duas orientações: 1.ª) não há delito, tendo em vista a ausência de relação de emprego; 2.ª) existe crime, pois o diarista encontra-se em posição de inferioridade na relação trabalhista. Segundo pensamos, o diarista não pode ser sujeito passivo do crime (primeira corrente), uma vez que não realiza atividade inerente a "emprego".
12.Pais e filhos
Desde que inexista relacionamento laboral (cargo, função ou emprego) e prevalecimento, não podem ser sujeitos do delito.
13.Hierarquia religiosa
Inexiste delito, uma vez ausente o relacionamento inerente a emprego, cargo ou função.
14.Ascendência religiosa
Inexiste delito, uma vez ausente o relacionamento inerente a emprego, cargo ou função.
15.Empregador e doméstica
Há delito, uma vez que se encontra presente a relação laboral (emprego).
16.Assédio praticado em coabitação
Ex.: assédio de um parente que vive sob o mesmo teto (exemplo de Luiz Flávio Gomes, Lei do Assédio Sexual – Lei n. 10.224/01 – Primeiras notas interpretativas, site www.direitocriminal.com.br, 23.7.2001). Não há delito, tendo em vista que inexiste relacionamento referente a cargo, emprego ou função.
17.Assédio cometido em ocasião de hospitalidade
É possível que o autor assedie sexualmente uma pessoa que hospeda (exemplo de Luiz Flávio Gomes, Lei do Assédio Sexual – Lei n. 10.224/01 – Primeiras notas interpretativas, site www.direitocriminal.com.br, 23.7.2001). Não há delito, tendo em vista que inexiste relacionamento referente a cargo, emprego ou função. (Nesse sentido: Luiz Flávio Gomes, Lei do Assédio Sexual – Lei n. 10.224/01 – Primeiras notas interpretativas, site www.direitocriminal.com.br, 23.7.2001).
18.Hipótese de superior de um departamento e inferior de outro, da mesma empresa
Inexistência de crime. Exemplo e solução de Ataliba Pinheiro Espírito Santo, Crítica à Lei n. 10.224, de 15.5.2001 – Assédio Sexual, Revista Jurídica, Porto Alegre, jun. 2001, 284:87.
19.Hipótese entre sócio e empregado da sociedade
Inexistência de crime. Exemplo e solução de Ataliba Pinheiro Espírito Santo, Crítica à Lei n. 10.224, de 15.5.2001 – Assédio Sexual, Revista Jurídica, Porto Alegre, jun. 2001, 284:87.
20.Hipótese entre hóspede e empregado de hotel etc.
Inexistência de crime. Exemplo e solução de Ataliba Pinheiro Espírito Santo, Crítica à Lei n. 10.224, de 15.5.2001 – Assédio Sexual, Revista Jurídica, Porto Alegre, jun. 2001, 284:87.
21.Hipótese de cliente importante e funcionário de estabelecimento bancário
Inexistência de crime. Exemplo e solução de Ataliba Pinheiro Espírito Santo, Crítica à Lei n. 10.224, de 15.5.2001 – Assédio Sexual, Revista Jurídica, Porto Alegre, jun. 2001, 284:87.
22.Hipótese de vizinho e empregada doméstica de outra residência
Inexistência de crime. Exemplo e solução de Ataliba Pinheiro Espírito Santo, Crítica à Lei n. 10.224, de 15.5.2001 – Assédio Sexual, Revista Jurídica, Porto Alegre, jun. 2001, 284:87.
23.Conduta típica
O núcleo do tipo é o verbo constranger. Sobre seu conceito penal no dispositivo, acreditamos que haverá duas correntes: 1.ª) o legislador empregou o verbo constranger no sentido de tolher a liberdade de, obrigar, forçar, compelir, coagir, como nos delitos de constrangimento ilegal, estupro etc.; 2.ª) o verbo constranger, na figura típica, significa acanhar-se, incomodar, embaraçar, envergonhar, causar vexame. Segundo pensamos, certamente o legislador não pretendeu empregar a expressão em seu segundo sentido. Caso contrário, constituiria delito o fato de o patrão contar uma piada picante à sua funcionária, presente a intenção libidinosa e as outras elementares do tipo. Mas, adotando a primeira posição, criou enorme dificuldade de interpretação no sentido de diferenciar o delito de assédio sexual de outros crimes que empregam o mesmo verbo. A norma de conduta deixou de fazer menção ao meio por intermédio do qual a ação se pode dar (constrange-se alguém por meio de), como nas descrições dos delitos de estupro etc. A idéia de constranger implica uma conduta que passa a existir por meio de algum ato realizado pelo agente. Constrange-se por intermédio de algo (palavras, gestos etc.). Não há previsão daquilo a que a vítima venha a ser constrangida (constrange-se alguém a algo), como no constrangimento ilegal, extorsão, estupro e atentado violento ao pudor. O verbo constranger, transitivo, exige objeto direto (constrange-se alguém; idéia de pessoa) e indireto ou complemento preposicionado (constrange-se alguém a algo; idéia de coisa, no sentido de fazer ou não alguma coisa).
24.Meios executórios
Crime de forma livre, o constrangimento tendente ao assédio sexual pode se dar por quaisquer das formas de comunicação (verbal, escrita ou mímica). Embora tipo de execução livre, cremos que o meio de realização do crime não pode ser a violência física e nem a grave ameaça, cuja presença conduziria ao atentado violento ao pudor e ao estupro.
25.Cerceamento de direito da vítima
Não é qualquer constrangimento que pode configurar o delito de assédio sexual. Há necessidade de cerceamento a um direito ao qual a vítima faz jus. Assim, não se pode falar no tipo em análise quando se trata de um privilégio que o sujeito ativo oferece à vítima em troca de uma ação de natureza sexual.
26.Requisitos
O legislador brasileiro dotou o crime de assédio sexual das seguintes elementares: ação de constranger; intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, para si ou para outrem; prevalência do agente de sua condição de superior hierárquico ou de ascendência em relação à vítima (abuso); as situações (superioridade hierárquica ou ascendência) devem existir em decorrência de emprego, cargo, ou função; legitimidade do direito ameaçado ou injustiça do sacrifício a que a vítima deve suportar por não ceder ao assédio.
27.Condição de superioridade hierárquica ou ascendência em relação à vítima
É necessário, para a existência do crime, que o autor se apresente em condições de superioridade hierárquica ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Trata-se de relacionamento concernente a hierarquia ou ascendência laboral pública (cargo ou função) ou privada (emprego).
28.Elemento normativo do tipo: prevalecimento da relação de hierarquia ou ascendência
laboral
O tipo exige que o comportamento seja realizado com prevalecimento de uma condição de superioridade ou de ascendência do autor, que se aproveita, utiliza-se de determinada situação, cometendo abuso no exercício de cargo, função ou emprego. Cuida-se de elemento normativo, cumprindo o Juiz elaborar uma apreciação valorativa sobre a presença do abuso. Não basta, pois, que o fato seja realizado no exercício de atividade referente a emprego, cargo ou função. É necessário nexo de causalidade entre o exercício da atividade e o abuso que o sujeito comete em relação à vítima determinada.
29.Elementos subjetivos do tipo
O primeiro é o dolo, que, abrangente, deve alcançar as outras elementares objetivas e normativas. A norma prevê outro elemento subjetivo do tipo, caracterizado pelo especial fim de agir do agente, qual seja, obter vantagem ou favorecimento sexual.
30.Qualificação doutrinária
Trata-se de crime próprio. Além disso, é formal: o tipo descreve a conduta e o resultado visado pelo sujeito, mas não o exige.
31.Consumação e tentativa
Consuma-se o assédio sexual com a conduta de constranger (delito formal), independentemente de obter ou não o autor os favores sexuais pretendidos. A conduta da vítima não é exigida (crime formal). Conforme a hipótese, a tentativa é admissível. É o que ocorre, por exemplo, no caso em que o assédio tenha sido tentado por meio escrito, chegando a correspondência, em face de extravio, nas mãos de terceira pessoa. Quando empregado meio verbal ou gestos, a tentativa é inadmissível.
32.Causas de aumento de pena do art. 226 do CP
Incidem as circunstâncias do concurso de pessoas (I) e da condição de casado do autor (III), com exceção de parte do inciso II, porque as hipóteses nele aventadas, por já integrar a figura típica (direta ou indiretamente), não podem, novamente, ser objeto de valoração (relação de superioridade e ascendência).
33.Pena e ação penal
A pena é de detenção, de um ano a dois anos. Adotamos a tese de que o parágrafo único do art. 2.º da Lei dos Juizados Especiais Criminais Federais (Lei n. 10.259, de 12.7.2001), admitindo, para essa qualificação, delitos a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, derrogou o art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95). Diante disso, é de entender-se que o delito de assédio sexual é da competência dos Juizados Especiais Criminais da Justiça Comum. Aplica-se ao assédio sexual o disposto no art. 225 do CP. Desta forma, a ação penal é, em regra, privada. As exceções estão previstas nos parágrafos do mesmo artigo. Não é louvável deixar, na espécie, em regra, a persecução penal dependendo da iniciativa da vítima. A ação penal deveria ser pública incondicionada. Pela natureza do delito, em face da superioridade ou ascendência do autor, a vítima fica sob sua pressão, podendo ele compeli-la a não levar o fato ao conhecimento da autoridade. Além disso, ainda em face da natureza do fato, deixar à exclusiva iniciativa do sujeito passivo o direito de movimentar a persecução penal é permitir "chantagens" em troca de silêncio.
34.A questão do veto ao parágrafo único do art. 216-A do CP previsto no Projeto de Lei
O Projeto de Lei, do qual se originou a Lei n. 10.224/01, previa um parágrafo único ao art. 216-A, que foi vetado. Por meio dele, também cometeria o crime aquele que agisse: "I – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; II – com abuso ou violação de dever inerente a ofício ou ministério". A justificativa acolhida pelo Presidente da República foi de que o parágrafo único descrevia situações que já estavam previstas como causas especiais de aumento de pena no art. 226 do CP, o que não permitiria sua incidência nos casos de assédio sexual. Sem razão, porém, uma vez que sem o veto teríamos a punição das várias espécies de assédio sexual: laboral (caput do dispositivo), proveniente das relações domésticas, de coabitação e de hospitalidade, como também o assédio proveniente do abuso de dever inerente a ministério (religioso). Com o veto, subsistiu somente o assédio laboral (caput). Os outros tipos de assédio são atípicos.
NOTAS
1.EVANGELIO, Ángela Matallín. El nuevo delito de acoso sexual. Valencia : Tirant lo Blanch, 2000, p. 26.
2.De acordo com notícia da Folha de S. Paulo, ed. de 25 de julho de 2001, "todos os órgãos da Prefeitura da Capital deverão ter afixada em local visível uma cópia da Lei Municipal n. 11.846, de 1995, sobre as punições contra a prática de assédio sexual entre funcionários da administração. A obrigatoriedade consta da Portaria n. 182, assinada pela Prefeita."