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Tributação e Justiça Social: uma perspectiva filosófica

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10/03/2013 às 16:59
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Partindo da análise das concepções de justiça sob o aspecto filosófico, justiça distributiva como função do Estado, a abordagem parte da concepção de que o tributo deve por princípio ser ético, garantindo valores constitucionais e em alcance do princípio da dignidade humana.

Resumo: O presente artigo tem por proposta uma reflexão sobre o papel da tributação diante da questão relativa à justiça social. Não há justiça social sem justiça fiscal. Partindo da análise das concepções de justiça sob o aspecto filosófico, justiça distributiva como função do Estado, a abordagem parte da concepção de que o tributo deve por princípio ser ético, garantindo valores constitucionais e em alcance do princípio da dignidade humana.

Palavras-chaves: Justiça social, Justiça Fiscal, Tributação.


1. Introdução

O presente artigo parte para o desenvolvimento de uma temática que envolve a abordagem do conceito de justiça sob enfoque filosófico, sendo que o intuito é estabelecer a relação com preceitos de justiça social e tributação.

Ao se falar em justiça sob o ponto de vista filosófico amparado nos grandes pensadores da humanidade, não se objetiva aqui por óbvio aprofundar a abordagem, mas sim apenas delimitar um campo de reflexão e indagar sobre o papel ético na imposição tributária diante das agruras impostas pelo ordenamento pátrio e pela política fiscal.

O assunto, diante de sua complexidade e amplitude, instiga o autor. Não se tem de forma alguma a pretensão de diante da dogmática jurídica, analisar aspectos técnicos pontuais que sabemos ter grande influência na política adotada referente a tributação em nosso país e muito menos apresentar projetos e soluções que tenham a fórmula de tão complicada e imbricada questão, pelo menos não neste artigo, mas sim contrapor valores e tributação no contexto atual.

A justiça é valor essencial da humanidade, independentemente das políticas que se adotam na prática. Na conjuntura atual onde predomina os ideais do neo-liberalismo, que vem baseado em valores do mercado, avoluma-se as desigualdades sociais, sendo necessário observar com mais acuidade aspectos da tributação em consonância com a justiça social almejada e exigida.

Neste contexto a abordagem se dá no campo da reflexão e neste sentido é que é colocada a indagação sobre o papel da imputação tributária em atendimento aos anseios de justiça social e fiscal. Esta análise mesmo que superficial sobre as principais teorias de justiça da antiguidade clássica relacionada com a idade medieval e a idade contemporânea, concede espaço para concluir sobre o papel da tributação e sua compatibilidade ou não com os anseios de justiça social, valor modelo para a sociedade de acordo com a Constituição brasileira.


2. A Ideia de Justiça

A ideia de Justiça é utilizada em distintos e inúmeros sentidos, apresentada de vários modos e de várias formas. Desde a antiguidade várias teorias e modelos foram criados tentando explicar o que é Justiça.

Diante da problemática de uma conceituação, vamos procurar na medida do possível deixar de lado premissas dogmáticas positivistas e traçar um panorama que possa apresentar a ideia de justiça, trazendo a reflexão para o campo filosófico.

Assim, embora o foco deste artigo seja refletir sob o aspecto mais contemporâneo da questão, torna-se inevitável visitarmos a teorização clássica de onde se analisará a influência em posteriores formulações de uma teoria de justiça.

Aristóteles, um dos mais importantes filósofos clássicos na proposição de uma teoria da justiça, coloca como ponto central de sua ética o conceito de felicidade (eudemonia)[1], sendo que considerou a justiça como uma virtude que deve ser exercitada. Virtude no caso entendida como hábito, isto é, hábito que leva ao bem e que todos possuem em potencial, sendo desenvolvimento de parte das aptidões racionais do homem.

Vemos que todos os homens entendem por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo; e do mesmo modo, por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto. (ARISTÓTELES, 1129a)

Assim, a justiça relaciona-se como um valor ético e se apresenta em nossos atos normais. “Toda virtude e toda técnica nascem e se desenvolvem pelo exercício” (SALGADO, 1995, p. 33). As virtudes éticas implicam em buscar o bem, os fins corretos são na verdade uma disposição para o bem, daí a ideia de justo-meio em Aristóteles[2]. Este exercício de filosofia prática visa relações entre as pessoas, assim pode-se dizer que a justiça se dá na relação com o outro, nela se aplicando em relação à natureza do homem.

Nesse sentido, segundo Aristóteles, a justiça é a virtude integral e perfeita: integral porque compreende todas as outras, perfeita porque quem a possui pode utilizá-la não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros (ABBAGNANO, 2007, p. 594).

O Estagirita, a partir de uma teoria geral, descreve dois tipos de justiça, uma de caráter universal com observância de regramento, e outra de caráter particular, sendo esta o hábito de realizar a igualdade, tendo como fim último o bem comum.

Para elaborar a sua teoria da justiça, Aristóteles parte de uma definição de senso comum: “A Justiça (dikaiosyne) é a virtude que nos leva (...) a desejar o que é justo (dikaion).” Ora, a linguagem corrente, dikaion significa tanto o legal (nomimom) como o igual (ison) (BARZOTTO, 2003, p. 18).

Ao marcar em dicotomia dois tipos de justiça, ou seja, dois modos de se estabelecer o que é devido a outrem: pela regra ou pela igualdade, Aristóteles tem a justiça geral (universal)[3] como um ato justo que se exerce em conformidade com a lei (nomos). A lei determina quais são as ações devidas à comunidade, para se alcançar o bem comum.

Ora, o objeto da lei são os deveres em relação à comunidade, isto é, a lei estabelece como devidas aquelas ações necessárias para que a comunidade alcance o seu bem, o bem comum: “As leis se referem a todas as coisas, visando o interesse comum (...). Assim, neste primeiro sentido, chamamos justo (dikaion) aquilo que produz e conserva a vida boa (eudainomia) (...) para a comunidade política.” (BARZOTTO, 2003, p. 18).

Assim, podemos dizer que a justiça universal se orienta pela ideia de legalidade, em paralelo, a justiça particular no modelo aristotélico subdivide-se em justiça distributiva[4] e justiça corretiva[5], sendo esta subdividida em comutativa e judicial.

Sobre o aspecto da Justiça distributiva em Aristóteles (1331a 30), esta visa distribuir os bens entre a comunidade com uma igualdade proporcional, esta só pode ser considerada justa quando se utiliza de critérios, nos quais se aplicam: igualdade entre os iguais e diferença entre os diferentes, onde o justo é uma espécie proporcional, sempre analisado com as cautelas que uma democracia ateniense na época requer, uma vez que naquela sociedade o cidadão é co-participante da polis e não fica simplesmente observando. Fazer parte da política era motivo de distinção e respeito, o cidadão coloca suas riquezas e sabedoria a serviço da cidade-estado, recebendo em troca segurança, honra e bens. Neste sentido interessante o ponto de vista da relação do cidadão com o Estado.

Não estamos habituados a considerar o Estado como um distribuidor de riqueza entre os cidadãos. Pensamos nele mais como um distribuidor de fardos sob a forma de impostos. No entanto, na Grécia, o cidadão considerava-se, tal como foi dito, mais como acionista do Estado do que contribuinte (ROSS, 1987, P. 216).

Portanto, em síntese, podemos ter que em Aristóteles a justiça denota ao mesmo tempo os valores de legalidade e igualdade, onde, em sentido lato, genérico, refere-se à virtude daquele que cumpre a lei e em sentido estrito refere-se àquele que realiza a igualdade, verdadeiro e razoável equilíbrio entre o Estado e o cidadão.

Nesta linha, na idade média, outro expressivo filósofo, São Tomás de Aquino, dá continuidade à tradição aristotélica para formular e desenvolver sua teoria sobre justiça. São Tomás vincula-se com o pensamento aristotélico e com as sagradas escrituras, dando enfoque teológico à doutrina filosófica de Aristóteles.[6]

São Tomás estriba-se em conceitos éticos, para afirmar que a justiça é uma virtude e sustenta: "a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido" (AQUINO, q. 60, a.3). Com base na teoria aristotélica faz distinção entre justiça legal e justiça particular, sendo que a justiça legal equivale à justiça universal em Aristóteles, asseverando que a diferença entre justiça legal e particular funda-se no sujeito a quem é devido ao outro.

A justiça, diferentemente das outras virtudes, tem como função própria ordenar o homem para aquelas coisas que dizem respeito a outrem (AQUINO, q.57, a.1).

Luiz Fernando Barzotto equaciona a distinção entre justiça legal e justiça particular no tomismo:

A justiça que diz respeito àquilo que é devido “a outro considerado individualmente” é a justiça particular; a justiça que diz respeito àquilo que é devido “a outro em comum” ou à comunidade é a justiça legal. (BARZOTTO, 2003, p. 20).

O objeto da justiça particular é o bem particular, enquanto o objeto da justiça legal é o bem comum, entendido como bem de todos, isto porque a comunidade não constitui um bem que existe acima dos seus membros, estes são na verdade os beneficiários último do ato devido. “Os deveres da justiça legal não se referem, assim, em última instância ao todo social, mas a todos os membros da sociedade” (BARZOTTO, 2003, p.20).

Tal relação indivíduo-comunidade tem um aspecto de globalidade (virtude geral), considerando, porém, que a comunidade é aquela que promove o bem comum do qual é também a expressão; e como tudo aquilo que diz respeito à comunidade como Estado é regulado pelas leis, este tipo de justiça que se apresenta como geral é também uma justiça legal, na medida em que toda ação do indivíduo no âmbito estatal é regulada pelas leis (SANTOS, IIa).

A submissão à lei orienta todos os atos e todas as virtudes ao bem comum, ferir a lei denota um tipo de injustiça e ofende o bem comum. Todavia, para o filósofo da igreja, a justiça legal não esgota o conceito de justiça, se faz necessário o desenvolvimento da justiça particular (AQUINO, q 59, a. 1).

A exigência de uma justiça particular é demonstrada através de uma dupla analogia. Antes de tudo, eis a primeira: a justiça legal em sua dimensão geral postula a existência das virtudes particulares, cujos atos são ordenáveis também ao bem da comunidade. Dentro desta instância, emerge uma segunda, que se desenvolve sobre a dimensão específica de “justiça”, evocada pela justiça geral: deve existir também uma justiça particular que ordena as ações humanas interpessoais (SANTOS, IIa).

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Por sua vez, o conceito de justiça distributiva em São Tomás é mais amplo que em Aristóteles, e aí nos faz aproximar de uma reflexão sobre a finalidade última da imputação tributária. Para ele, a justiça distributiva é aquela que “reparte proporcionalmente o que é comum”, ou seja, trata da relação do todo com a parte, do que é comum a cada um dos indivíduos (AQUINO, q.61, a.1).

Em especial, a questão relativa a exigência de impostos (utilização de força) e a legitimidade para exigi-los é colocada por São Tomás como condição do Estado para promoção do bem comum, só assim a tributação se justifica, todavia, não é de qualquer modo, mas dentro dos limites éticos sob pena inclusive de pecado na argumentação da igreja Tomista.

Marchando no tempo e fazendo um salto para uma concepção contemporânea de justiça, a publicação da obra “Uma Teoria da Justiça” pelo filósofo norte americano John Bordley Rawls, foi fundamental para a discussão dentro da filosofia do direito[7]. Rawls contestou a ideia de autonomia dos ordenamentos jurídicos. Como pressuposto o filósofo americano parte da ideia de que a vida não é justa (life is not fair), assim, desenvolve sua teoria apontando para aspectos que dentro do campo do mundo natural onde os mais fracos são devastados pelos mais fortes, os justos nem sempre são felizes.

Para Rawls, o mundo natural não é conduzido dentro de uma ordenação que preze critérios de eticidade e moralidade, deste modo, a sociedade deve pautar-se em princípios de justiça com intuito de reduzir o sofrimento humano. O desenvolvimento da ideia de justiça em Rawls relaciona-se com equidade, com nítida importância para políticas públicas que devem incidir diretamente na redução de impactos sobre as injustiças sociais, sendo garantido a todos um mínimo existencial capaz de preservar a dignidade da pessoa humana.

Segundo Rawls, para chegar a isso, as sociedades devem ser reguladas a partir de um ordenamento jurídico que tenha por base um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais.

Assim a justiça deve servir a partir de um ponto de vista comum entre suas várias formas de compreensão. Em uma “sociedade bem-ordenada”, é necessário um ponto de consenso em relação à justiça, pois esta molda a estrutura básica da sociedade, ou seja:

(...) maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão e vantagens provenientes da cooperação social. (RAWLS, 2002, p. 7).

Deste modo, é necessário a escolha da concepção da justiça que deve moldar a estrutura da denominada “sociedade bem ordenada”. Rawls retoma a tradição contratualista como procedimento que será realizado para a escolha do conceito de justiça que melhor atenda a “sociedade bem ordenada”. O objetivo é propor um sistema e uma justiça como a melhor alternativa para esta sociedade.

(...) não se deve pensar no contrato original (a posição original) como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são objeto do consenso original. (RAWLS, 2002, p. 12).

A situação e consenso contratual suposto é que caracteriza a situação de partida, ou seja, os princípios nascidos da situação original (posição original), premissas genéricas aceitas como objeto de consenso, que será com base na equidade. Os princípios da justiça surgem de um acordo concluído numa situação inicial ela mesma equitativa. (RAWLS, 2002, p. 39). Este acordo dentro de uma situação inicial é onde as partes devem avaliar os princípios de justiça com base em considerações gerais, ignorando como cada concepção de justiça alternativa apresentada nesta posição original possa afetar o seu caso em particular.

Na posição original as partes não sabem que formas particulares seus interesses assumirão; mas elas supõem que têm esses interesses e também que as liberdades básicas exigidas para protegê-los são garantidas pelo primeiro princípio. Como precisam assegurar esses interesses, classificam o primeiro princípio como prioritário em relação ao segundo. (RAWLS, 2002, p. 163).

Temos então que na teoria de Rawls, a equidade pode ser alcançada, a partir do momento em que seja uma das características da situação original. A escolha dos princípios de justiça será eqüitativa se a situação original também for esta. Princípios de justiça para Rawls são princípios de distribuição. São construídos socialmente e visam repartição eqüitativa. Rawls estabelece dois princípios fundamentais de justiça, de onde as normas jurídicas deveriam ser extraídas.

O primeiro princípio assegura as liberdades iguais de cidadania: “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para outras pessoas” (RAWLS, 2002, p. 73). Em síntese a colocação plausível é de que a liberdade dos cidadãos deve ser garantida a partir da busca de um equilíbrio no uso da liberdade de todos.

O segundo princípio, que o filósofo americano denomina “princípio da diferença”, considera a justiça na distribuição da riqueza e renda, em conjunto com a distribuição da autoridade e da responsabilidade. “As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de modo a serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos favorecidos e (b) vinculados a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades” (RAWLS, 2002, p. 73). Assim, a desigualdade econômica para Rawls precisa ser razoável, não pode extrapolar esta razoabilidade, Rawls busca uma justificativa moral da riqueza a partir da ideia de uma isonomia jurídica que garanta igualdade de condições e de competição na sociedade.

Estes princípios são ordenados lexicalmente, ou seja, devem obedecer uma ordenação serial, onde o primeiro antecede o segundo, dentro de uma regra de prioridade. Aplicadas ao princípio de justiça, esta ordenação significa que:

Os atentados às liberdades básicas, iguais para todos os que são protegidos pelo primeiro princípio, não podem ser justificados ou compensados através de maiores vantagens sociais ou econômicas. (RAWLS, 2002, p. 92).

Este conjunto de princípios teria o intuito de fornecer um método para atribuir direitos e deveres à sociedade, com a finalidade de uma distribuição padrão adequada de benefícios (justiça social) e de suporte por esta sociedade de um ônus referente à necessária cooperação social (RAWLS, 2002, p. 387).

Em termos de justiça distributiva, as partes decidem que o arranjo social mais desejado é aquele no qual os menos afortunados obtenham a maior quantidade de benefícios possíveis. Por fim, o critério para a eleição dos princípios de justiça está em verificar a maneira com que eles regem a distribuição dos benefícios sociais diante das desigualdades de classe. A redução das desigualdades sociais naquilo pertinente a renda e a riqueza passam pela cooperação social equitativa dentro de uma estruturação das instituições e para a justiça distributiva de uma forma geral. Analisar a justiça de uma sociedade implica em analisar a quantidade de bens primários, básicos de que dispõem os menos favorecidos.


3. Justiça Social e a Imposição Tributária

Visto aspectos elementares para uma reflexão filosófica de justiça sob o pensamento dos mencionados filósofos abordando a questão sob o aspecto distributivo, passamos a analisar sob uma feição contemporânea aspectos da justiça social.

Em uma conceituação atual Joaquim Carlos Salgado assim equaciona a ideia de Justiça Social:

(...) é a ideia norteadora da consciência política dos povos civilizados contemporâneos, nascida sob condições históricas mais complexas. Enquanto a ideia de justiça que informa o Estado de direito, como Estado de direito simplesmente, é a realização da liberdade, a ideia de justiça contemporânea não se restringe ao conteúdo apenas ético da liberdade ou da paz perpétua, mas, ademais de incorporá-lo, estende-se às questões que envolvem as condições concretas de vida do povo e dá relevância ao aspecto social; não só a ideia de paz, mas também a idéia de uma felicidade perpétua. Justiça social passa a ser a ideia norteadora ou norma da ação política contemporânea (g.n.) (SALGADO, 1995, p. 20).

A Constituição brasileira procurou listar valores supremos do Estado Democrático de Direito, considerando os direitos sociais como fundamentais. A normatização programática do texto possui assim caráter principiológico, orientando a realização dos objetivos estabelecidos pela ordem constitucional.

O artigo 193 da Constituição Federal[8] dispõe sobre a ordem social. Tércio Sampaio Ferraz Jr, aborda a questão:

A ordem econômica deve visar assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social. O objetivo da ordem social é o próprio bem-estar social e a justiça social. A primeira deve garantir que o processo econômico, enquanto produtor, não impeça, mas ao contrário, se oriente para o bem-estar e a justiça sociais. A segunda não os assegura, instrumentalmente, mas os visa, diretamente. Os valores econômicos são valores-meio. Os sociais, valores-fim (FERRAZ JR, 1989, p. 53).

Desta forma, se entende que o escopo da ordem social constitucional é justamente a promoção da justiça social. Aos direitos sociais todos têm direitos, ricos, pobres, trabalhadores, crianças, idosos etc. Pontuando e retomando a teoria da justiça de Rawls, a injustiça social é efeito da organização e da ação do sistema econômico e político e da ação de quem os domina. A injustiça social, assim, pode caracterizar-se como um produto direto do desajuste político e econômico de uma ação política deficiente.

Para o filósofo americano, sem um nível mínimo de riqueza material e políticas públicas que proporcionem resgatar valores de dignidade, as pessoas não podem se desenvolver, não podem sequer existir enquanto seres livres e iguais. Deste modo, como já mencionado, a sociedade deve estabelecer um conjunto mínimo de bens sociais primários que precisam ser estendidos a todas as pessoas.

(...) abaixo de um certo nível de bem-estar material e social, bem como de treinamento e de educação, as pessoas simplesmente não podem participar da sociedade como cidadãos, e muito menos como cidadãos iguais (RAWLS, 2002, p. 237).

Segundo esta ótica e neste contexto, Rawls coloca o papel da tributação progressiva como verdadeira desconcentradora de riquezas a partir do momento em que atua como instrumento de concretização da igualdade eqüitativa de oportunidades (RAWLS, 2002, p. 306).

Retomando este raciocínio, a justiça distributiva parte da premissa de uma distribuição de bens ou encargos da comunidade entre os indivíduos que a compõe. Trata das relações dos indivíduos com a comunidade, regula relações do indivíduo com outros indivíduos (BARZOTTO, 2003, p. 30).

Deste modo, podemos dizer que a justiça social exige de todos e de cada particular aquilo que é necessário para atingir o bem comum, sendo que os homens devem realizar compreendendo um conjunto de condições sociais que possibilite além do trabalho, garantias de saúde, higiene, educação, segurança, moradia etc. Somente a partir disto é que haverá o favorecimento dos homens em sua integralidade e o desenvolvimento de sua personalidade.

Nesse passo, a tributação deve atuar como instrumento de justiça social, onde seu maior escopo é contribuir com a redução das desigualdades socioeconômicas. É o que Augusto César de Carvalho Leal explica sobre a finalidade redistributiva da tributação:

Evidente que só há sentido em se falar em finalidade redistributiva da tributação sob o paradigma filosófico-ideológico que admita a intervenção do Estado na economia com o desígnio de realizar justiça social (LEAL, 2012, p. 12).

Uma tributação desigual, seja ferindo princípios da isonomia fiscal seja oriunda de uma política nefasta, tem o condão de afetar as relações sociais da pessoa humana, ferindo não poucas vezes sua esfera pessoal, esvaziando o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob este contexto, Maria Angélica dos Santos, traça importante crítica ao sistema:

O que se vê, no atual sistema, é que a eqüidade básica e fundamental, que se apresenta como viga mestra para a construção da Justiça Social se vê perdida, ou melhor, deliberadamente abandonada.

Urge a necessidade de reestruturação sistêmica de modo a equilibrar as relações sociais vigentes e reorganizar o sistema baseado em um Estado de Direito a fim de que este cumpra sua finalidade que é o alcance da justiça.

(...)

É necessária uma redistribuição das riquezas e recursos sociais, para que haja um fomento das relações humanas e se alcance um adequado padrão de vida para todos os partícipes do sistema, sem que exista marginalizados e para que se verifique equilíbrio socioeconômico-cultural (SANTOS, 2006, p. 9).

A atuação do Estado deve ser orientada no atendimento das necessidades coletivas, o que reclama fontes de recursos, sendo que uma das vias de obtenção destes recursos é o poder fiscal, uma exteriorização da soberania estatal. Na conjuntura atual o Estado neoliberal prima pela aplicação do princípio da neutralidade da tributação, onde a mesma é vista como elemento restritivo de aplicação da igualdade tributária, impedindo a utilização da tributação como instrumento de indução comportamental (BONFIM, 2012, p. 27).

A neutralidade fiscal sustenta-se na perspectiva neoliberal, onde o papel do Estado é de Estado-polícia. Tal situação esvazia o debate sobre o verdadeiro papel da tributação e do sistema tributário no Brasil. É imperioso termos permanência de um caráter redistributivo da tributação, no intuito de extirpar desigualdades sociais e gerar desenvolvimento equilibrado e não excludente como acontece atualmente. O dever de pagar tributos é visto como um sacrifício pela sociedade, foge completamente de uma noção de cidadania fiscal até mesmo porque tributo e cidadania são conceitos dissociados (TORRES, 2005, p. 3).

O Estado representa o instrumento maior da realização do bem comum, sendo que o pagamento de tributos somente se justifica na promoção deste bem comum. A Justiça social tem por objeto o bem comum e indiretamente o bem estar do particular. O Estado deveria representar uma ordem social justa, a prevalência do bem comum sobre o bem particular. Em uma sociedade de iguais, isto significa que o outro é considerado, simplesmente por sua condição de pessoa humana, membro da comunidade. Assim, o que é devido a um é devido a todos, e o benefício de um recai sobre todos (BARZOTTO, 2003, p. 31).

O Estado da neutralidade tributária inverte isso, transformando-se em mera estrutura de poder na maioria das vezes visando a realização pessoal dos detentores deste poder e do sistema e só após o bem comum.

(...) a lógica social do bem comum termina por não corresponder à ética programática da principal instituição capaz de realizá-la, que é o Estado, visto que ele é constituído por homens, com suas grandezas e fragilidades, e a ética do poder esbarra, não poucas vezes, na simples e quase sempre aética forma de governar (MARTINS, 2010, p. 198).

Neste diapasão, o tributo jamais chega a uma conformação justa, uma vez que é retirado da sociedade mas não reverte ao bem comum. Nesse campo, a ética do tributo se transforma apenas numa ética da arrecadação, pois o objetivo principal não reside nele, mas na mera manutenção de uma estrutura de poder (MARTINS, 2012, p. 198).

Retomando Tomás de Aquino encontramos a questão referente à imputação tributária e sua justificação para obtenção de receitas, condicionada a promoção do bem comum:

Os governantes que exigem por justiça dos súditos o que estes lhes devem, para a conservação do bem comum, não cometem rapina, mesmo se violentamente, o exigirem. Os que, porém extorquirem indebitamente, por violência, cometem tanto rapina como latrocínio. Por isso, diz Agostinho: ‘Posta de parte a justiça, que são os reinos senão grandes latrocínios? Pois, por seu lado, que são os latrocínios senão pequenos reinos?’ E a Escritura: ‘Os seus príncipes eram no meio dela como uns lobos que arrebatam a sua presa.’ E portanto, estão, como os ladrões, obrigados à restituição. E tanto mais gravemente pecam que os ladrões, quanto mais perigosa e geralmente agem contra a justiça pública, da qual foram constituídos guardas.(AQUINO, q. 66, a. 8).

A Constituição brasileira determina a utilização da tributação como forma e instrumento do Estado para o alcance do bem comum. A função social deste Estado é proporcionar a Justiça Social e a tributação deve estar em consonância com os objetivos constitucionais. Roberto Wagner Lima Nogueira alerta para a questão:

É impossível pensarmos a justiça tributária sem dever ético de pagar o justo tributo. Por isso é preciso a sociedade brasileira avançar nos debates tributários, para enfim, acabar de vez com discursos que negam ao tributo, sua qualidade principal, que é o de ser instrumento financeiro indispensável à realização da justiça tributária, e, por conseguinte, justiça social (NOGUEIRA, 2008, p. 240).

O poder de tributar e a imputação tributária não são absolutos, o Estado deve garantir a justiça fiscal e social a partir de uma superação de dogmas positivistas, passando a primar pela aplicação efetiva de valores supra positivos. Tarefa árdua esta que não se vislumbra diante da sociedade vigente.

Raramente na humana história a tributação foi justa, na medida em que o cidadão paga tributo ao Estado para que este lhe preste serviços públicos. Parte, porém, do que paga é destinada a custear os privilégios e a manutenção dos detentores do poder, razão pela qual, como demonstrei, em meu Teoria da imposição tributária (2. ed. São Paulo: Ed. LTr, 1998), a norma tributária é necessariamente uma norma de rejeição social, em face de ser a carga tributária sempre maior do que a necessária para a sustentação dos privilégios de políticos e burocratas. É de se lembrar que todos aqueles que se aprofundam no conhecimento da história percebem que o povo sempre serviu mais aos detentores do poder que estes ao povo, sendo a corrupção e a má administração pública o corolário necessário da história, em todos os períodos e em todos os espaços geográficos. O poder é necessariamente corrupto e Lord Acton razão tinha quando dizia que ‘o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente'. Basta comparar o custo das obras públicas com aquele das obras privadas para se perceber que a corrupção e a concussão são as armas mais constantes da gestão da coisa pública, sendo este o motivo que torna o diferencial tão grande, entre um e outro. Nesta linha de raciocínio, a formulação doutrinária de juristas, economistas, sociólogos, filósofos e historiadores, na busca de uma política tributária ideal, esbarra na certeza de que, na prática, a teoria é sempre outra, e quem tem o poder de tributar sempre tributa mal, o mais das vezes sem qualquer respeito aos direitos individuais, o que exacerba a litigiosidade entre Fisco e Contribuinte (MARTINS, 2010, p.198).

Assim, somente a partir da superação pela justiça social é que será possível idealizar uma tributação que não seja absolutamente neutra, mas sim que se apresente como um instrumento eficaz de intervenção do Estado, visando desconcentração de riquezas por meio de distribuição de recursos voltada para a redução do abismo entre ricos e pobres. O objetivo primeiro da tributação deve ser o desaparecimento das desigualdades sociais, considerando que a aplicação do nosso sistema tributário faz muito pouco para reduzir tais disparidades.

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Sobre o autor
Marcelo Gollo Ribeiro

Professor Universitário. Procurador do Município de Ribeirão Pires (SP). Pós graduado em Direito Tributário pela PUC-SP. Pós graduado em Filosofia pela Universidade Gama Filho-RJ. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Marcelo Gollo. Tributação e Justiça Social: uma perspectiva filosófica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3539, 10 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23866. Acesso em: 19 abr. 2024.

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