3. Considerações finais
Diante desse quadro, não se exige uma solução de lege ferenda para que a mudança desejada seja atingida. A incompatibilidade do atual art. 28, I da LC nº 73/93 foi substituída pelo impedimento do art. 6º da Lei 11.890/2008, que atribuiu ao Advogado-Geral da União a competência para regulamentar o exercício de atividades privadas. Agora, a limitação presente em textos legais é apenas do exercício de atividades “potencialmente causadoras de conflito de interesses”, o que já é disciplinado pelo Estatuto da OAB e poderia ser minudenciado em regulamentos internos, expondo que constituiria falta funcional a dedicação a atividades paralelas, como participar de audiências ou atender clientes privados, durante o horário de trabalho.
O projeto de lei, contudo, dá um passo para trás e institui situação desigual, que não resistirá ao controle de constitucionalidade da Comissão de Constituição e Justiça do Congresso ou mesmo do Poder Judiciário. Se o exercício da advocacia foi permitido aos licenciados, fica claro o favoritismo que se quer empregar ao exercício dessa prerrogativa, pois não é qualquer procurador que consegue uma licença: depende da aprovação superior.
Nessa perspectiva, frisamos se falar de perspectivas sobre um assunto ou quando se quer fazer arranjos institucionais, é muito comum adotar modelos já prontos, o que, em muitos casos, não é de todo recomendável. As conclusões desse trabalho tentam ser realistas. É certo que uma mudança de paradigma dentro da Advocacia-Geral da União trará novos problemas. Trará também novos desafios a serem enfrentados por uma Instituição que amadureceu, mas que ainda está aquém da sua importância.
Um primeiro ponto é que não se pode dar continuidade ao modelo existente – proibição, ainda que flexibilizada, da advocacia fora das atribuições funcionais – porque ele contraria a Constituição. A vontade popular soberana se esgotou na constituinte de 1988 e trouxe consensos mínimos representados pelos direitos fundamentais, que não podem ser alterados por vontades circunstanciais do Poder Legislativo, como foi aquela que deu um passo para trás, ao cercear a liberdade de profissão dos advogados públicos do Poder Executivo Federal (rememore-se que os advogados do Senado não tiveram sua liberdade de profissão malferida), conforme art. 28, I da LC nº 73/93. Esse direito – a liberdade de profissão - é uma realidade que somente o pensamento inovador de uma nova assembleia constituinte poderia dar tratamento diverso do atual. Pouco importa, pois, se convicções pessoais ou novas leis ordinárias ou complementares sustentem a proibição: sob a Constituição de 1988, ela nunca terá validade.
Por outro lado, partir de afirmações maniqueístas de que a liberdade de profissão favoreceria poucos privilegiados ou resultaria em deixar para segundo plano as atribuições do dia-a-dia da Advocacia da União, é adotar uma presunção de má-fé e mau caratismo e desconsiderar a existência de mecanismos efetivos de controle e fiscalização da dos trabalhos dos advogados públicos, que são medidas mais adequadas e menos gravosas para se atingir a mesma finalidade que a intransigente proibição da advocacia almejou. A argumentação contrária ao direito fundamental baseia-se no medo. No entanto, a experiência bem-sucedida de muitos Estados é testemunha de que há meios de se garantir a qualidade e presteza do ofício do advogado público. Eventuais escolhas por determinados tipos de controle serão feitas e justificadas, evidentemente, dentro de um debate sobre o desenho institucional que a AGU enfrentará diante da inevitável constatação: não há fundamento constitucional para proibir a advocacia fora das atribuições funcionais.
Importar simplesmente os modelos das Procuradorias de Estado ou até mesmo de outras instituições como o Ministério Público da União é perder a oportunidade de criar um modelo melhor, pois nem o MPU, nem as Procuradorias de Estado se deparam com os problemas e virtudes existentes na AGU. Isso não significa desprezar a experiência dos outros órgãos, mas sinalizar para a necessidade de criar uma moldura que se adapte às efetivas necessidades da advocacia pública federal.
Por tudo isso, é preciso redefinir o estatuto jurídico dos advogados públicos federais à luz da Constituição, para enquadrá-los como advogados, que têm direitos e deveres assegurados no Estatuto da OAB, mas que também exercem uma função essencial à Justiça, a exemplo do Ministério Público, de fundamental importância para toda a sociedade.
A Advocacia-Geral da União está em busca de uma identidade.
Referências bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 21ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006;
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008;
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008;
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007;
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986;
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006;
SARMENTO, Daniel. “Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional”. In: Daniel Sarmento (Org.). Interesses públicos versus interessesprivados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Jures, 2007.
Notas
[1] A própria Advocacia-Geral da União, por intermédio de sua Corregedoria (Orientação Normativa nº 01/2011 da Corregedoria), exigiu que seus Procuradores devem ser, obrigatoriamente, inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, sob pena de falta funcional. Em outros termos: a AGU reconhece, no que diz respeito às obrigações da profissão, que seus Membros são advogados. Mas, paradoxalmente, os advogados públicos da AGU não são considerados advogados para o exercício da advocacia fora das atribuições funcionais ou para recebimento de honorários.
[2] O STF assim definiu o silêncio eloquente: “Litígio entre sindicato de empregados e empregadores sobre o recolhimento de contribuição estipulada em convenção ou acordo coletivo de trabalho. Interpretação do art. 114 da CF. Distinção entre lacuna da lei e 'silêncio eloquente' desta. Ao não se referir o art. 114 da Constituição, em sua parte final, aos litígios que tenham origem em convenções ou acordos coletivos, utilizou-se ele do 'silêncio eloquente', pois essa hipótese já estava alcançada pela previsão anterior do mesmo artigo, ao facultar a lei ordinária estender, ou não, a competência da Justiça do Trabalho a outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, ainda que indiretamente. Em consequência, e não havendo lei que atribua competência a Justiça Trabalhista para julgar relações jurídicas como a sob exame, é competente para julgá-la a Justiça comum.” (RE 135.637, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 25-6-1991, Primeira Turma, DJ de 16-8-1991). No caso, pode-se sustentar que os Membros do Ministério Público e da Advocacia Pública podiam advogar antes da CF/88. Após ela, a restrição só incidiu sobre os Membros do MP. Portanto, houve silêncio eloquente com relação aos Membros da AGU, que não foram impedidos de exercerem a advocacia pela vontade popular soberana expressa na constituinte de 1988.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 309.
[4] RE nº 603.583/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.10.2011.A questão do risco à coletividade como critério que norteia a interpretação das restrições do direito fundamental à liberdade de ofício também se fez presente ao nortear os julgamentos do RE nº 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16.06.2009, que tratou da exigência de diploma para exercício da profissão de jornalista, e do RE nº 414.426/SC, Relª. Minº Ellen Gracie, j. 01.08.2011, que cuidou da exigência do registro dos músicos no conselho profissional como condição de exercício da profissão.
[5] SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986.
[6] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 48.
[7]Vale a pena conferir os argumentos sobre a necessidade “permeabilidade do Estado a demandas da sociedade civil” no artigo de Pedro Abramovay disponível em: <http://www1.valor.com.br/opiniao/2959192/nova-lei-da-agu-republica-e-democracia>, sobre a incorporação do membro não concursado como “reconhecimento de fato capitulado pela vida real” no artigo de Arnaldo Godoy disponível em: < http://www.conjur.com.br/2012-set-17/arnaldo-godoy-reacao-lei-agu-fabulizacao-advocacia-publica> ou sobre o “desengessamento” da AGU segundo critérios de compromisso com a governabilidade e com a eficiência administrativa, no artigo de Heleno Torres disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-set-13/heleno-torres-quem-interessar-agu-engessada-burocracia> . Acesso em: 6 mar. 2013.
[8] Processo administrativo nº 00404.000124/2013-75
[9] Processo administrativo nº 00407.004734/2011-56 – Parecer nº 22/2012/DEPCONS/PGF/AGU, aprovação em 23.04.2012.
[10] Internamente, há uma peculiaridade interessante: a existência de cargos em comissão, as chamadas “chefias”, dentro da Administração Federal impede que seus titulares advoguem fora das atribuições funcionais, nos termos do Estatuto da OAB. Dentro da AGU, onde esses cargos são bastante numerosos, haveria um controle natural, porque os chefes seriam aqueles que se disporiam a assumir, voluntariamente, o munus de não exercer a advocacia fora das atribuições funcionais e seriam adequadamente remunerados pela sua escolha.
[11]SARMENTO, Daniel. “Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional”. In: Daniel Sarmento (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Jures, 2007, p. 82.
[12] Agravo de Instrumento na Ação Popular nº 5003643-37.2012.404.7104 interposto pela União no TRF-4.
[13] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 21ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 760
[14] Apesar de a lei não fazer qualquer ressalva em seu texto com relação ao exercício da advocacia privada, entende a AGU que não há vedação ao exercício da advocacia durante o afastamento temporário do procurador, conforme Nota Pública veiculada pela Advocacia-Geral da União, em 21.12.2012, na página do órgão na internet, disponível em: <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=223125&id_site=3> Acesso em: 2 jan. 2013. Na prática, durante o período de férias, o procurador também se encontra afastado e, segundo esse entendimento, poderia advogar livremente.
[15] A redação do art. 102, § 2º da CF diz que “as decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal Federal (…) produzirão efeitos vinculantes”. Por isso, passou-se a sustentar que a Administração Pública só estaria vinculada a dada interpretação após a manifestação do Supremo. Antes disso, poderia, por conta própria, ter como inconstitucional ou negar a vigência de uma norma – o que dá no mesmo – somente se vinculando quando o órgão de cúpula do Judiciário der a palavra final sobre a constitucionalidade de uma lei, ou evidentemente, diante de uma medida cautelar que suspenda a eficácia da norma impugnada.
[16] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 388
[17] Uma abordagem interessante sobre a crise da legalidade compreendida como a vinculação positiva à lei e sua substituição pela vinculação ao princípio da juridicidade pode ser encontrada em BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 130.
[18] Nesse julgamento, ficou assentado que temas como “férias” dos procuradores da Fazenda Nacional não estariam compreendidos no conceito de “organização e funcionamento” da AGU (art. 131 da CF), que seriam os únicos submetidos à reserva de lei complementar. No caso, o Supremo aceitou que Lei Ordinária (art. 77 da Lei nº 8.112/90), que reduziu para 30 dias o período de férias de Procurador da Fazenda Nacional, revogasse o art. 30 do Decreto-lei nº 157/67, que foi recepcionado pela Constituição Federal com natureza de Lei Complementar (art. 34 § 5º do ADCT), que lhes atribuía, inicialmente, 60 dias de férias.
[19] . RE nº 603.583/RS, Rel. Min. Marco Autério, j. 16.10.2011.