O projeto de reforma da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União – o PLP 205/2012 – tem trazido acirradas discussões sobre o modelo de advocacia pública adotado pela Administração Federal que, em última análise, poderá servir de paradigma para toda a advocacia pública brasileira.
A Constituição Federal trouxe o Ministério Público e Advocacia Pública para a vida dos brasileiros. A experiência constitucional anterior demonstrou que a figura do “promotor-advogado” não era adequada para a realização das missões institucionais do Parquet. Cindiram-se, então, as atribuições da promotoria de justiça, que ficaram a cargo do Ministério Público, das atribuições de advogado, que ficou nas mãos da Advocacia-Geral da União e das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal.
Passadas duas décadas após a Constituição de 1988, o Ministério Público da União e o Ministério Público dos Estados receberam tratamento bastante similar em todo País. Durante esse tempo, o promotor de justiça ganhou destaque no cenário nacional e a razão de ser de suas funções foi assimilada pela sociedade.
Os advogados públicos, porém, ainda não têm uma identidade. Não obstante suas atribuições terem sido alçadas a mesma dignidade constitucional daquelas previstas para o Ministério Público e para a Magistratura, existem enormes assimetrias entre as carreiras que integram a advocacia pública. Em âmbito federal, as discrepâncias parecem gritar: os Membros da AGU são considerados advogados pela Instituição para fins de inscrição na OAB e pagamento das respectivas anuidades sob pena de falta funcional, mas não são considerados como tais para fins de recebimento de honorários e livre exercício de sua profissão[1].
Mas isso não deveria ser assim. Os advogados públicos de todas as esferas federadas receberam da Constituição uma idêntica missão – a representação judicial e o assessoramento do ente público. Além do regramento constitucional, há outra nota de semelhança que aproxima toda a categoria: apesar do adjetivo, o advogado público não deixa de ser advogado, que exerce uma função constitucionalmente privilegiada por ser indispensável à administração da Justiça. Somente a partir da aceitação de sua natureza e da autoafirmação de seus direitos, em toda sua plenitude, é que os advogados públicos conseguirão construir uma identidade nacional homogênea e projetar a importância de seu papel perante a sociedade brasileira.
No particular, o PLP 205/2012, que pretende reformar a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, trouxe para debate na sociedade assuntos polêmicos como a aceitação de não concursados como membros da AGU, regras sobre a proteção e a hierarquia da opinião jurídica do advogado e pequenas mudanças estruturais no órgão, que incluiu formalmente na Lei Orgânica a Procuradoria do Banco Central e a Procuradoria-Geral Federal. Mas um aspecto totalmente novo – a efetiva liberação do exercício da advocacia privada pelos membros da AGU – passou praticamente despercebido em meio às acaloradas discussões.
Nesse artigo, concentraremos nossos argumentos sobre a nova redação que o projeto pretende dar ao art. 28, I da LOAGU que, infelizmente, restringe a prerrogativa de advogar fora das atribuições funcionais em favor de poucos membros da AGU, a serem escolhidos dentro de critérios de conveniência e oportunidade das chefias da Instituição, criando internamente um tratamento nitidamente discriminatório entre os membros da carreira, em violação frontal ao estatuto constitucional da advocacia pública e desconsiderando que não é justo, numa carreira em que existe quase dois mil cargos vagos, licenciar membros para tratar de “interesse particular” para que possam então advogar.
2. O estatuto constitucional da advocacia pública
A defesa do Estado Brasileiro, no âmbito federal, é mister da Advocacia-Geral da União, que foi concebida como instituição essencial à Justiça pelo art. 131 §§ 1º à 3º da Constituição da República, in litteris:
“Art.131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
§ 1º A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
§ 2º O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.
§3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei”
A Constituição disciplinou que compete à AGU a representação judicial e extrajudicial da União, a consultoria e assessoramento do Poder Executivo, bem como a execução da dívida ativa de natureza tributária e remeteu à Lei Complementar apenas as questões relativas à organização e ao funcionamento da instituição.
Ao contrário do que fez com os Membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, ex vi do art. 128, II, “b” e art. 134, §1º da CF/88, a Constituição Federal não vedou o exercício da advocacia pelos Membros da AGU. Trata-se, pois, de um silêncio eloquente[2]. Isso não importa reconhecer que todas as regras sobre a Advocacia-Geral da União devam estejam previstas no texto constitucional. A lei pode criar limites à atividade do advogado público, mas deverá atentar aos limites impostos constitucionalmente pelo direito fundamental do art. 5º, XIII da CF, in verbis:
“Art. 5º (in omissis)
(…)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
De acordo com a regra constitucional, o exercício da advocacia deve ser livre, obedecidas apenas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Trata-se de uma reserva legal qualificada ao direito fundamental, que tolhe do legislador ordinário a discricionariedade para restringir o direito de forma diferente do que dispõe a fórmula “atendida as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes[3], "[t]em-se uma reserva legal ou restrição legal qualificada quando a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado direito seja prevista em lei, estabelecendo também, as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados”. No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 70.563/SP, entendeu que "a liberdade do exercício profissional se condiciona às condições de capacidade que a lei estabelecer. Mas, para que a liberdade não seja ilusória, impõe-se que a limitação, as condições de capacidade, não seja de natureza a desnaturar ou suprimir a própria liberdade”.
As qualificações profissionais para exercício da advocacia de que trata o art. 5º, XIII da CF, encontram-se na Lei 8.906/93, que disciplina o Estatuto da OAB. Para ser advogado, o art. 8º do Estatuto prescreve:
“Art. 8º Para inscrição como advogado é necessário:I - capacidade civil;
II - diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada;
III - título de eleitor e quitação do serviço militar, se brasileiro;
IV - aprovação em Exame de Ordem;
V - não exercer atividade incompatível com a advocacia;
VI - idoneidade moral;
VII - prestar compromisso perante o conselho”
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.583/RS, cuja transcendência dos motivos determinantes vinculam todo o Poder Público, o Ministro Marco Aurélio, diante da indagação do por que o constituinte limitou as restrições à liberdade de ofício às exigências de qualificação profissional, concluiu que elas são a “salvaguarda de que as profissões que representam serão limitadas, serão exercidas somente por aqueles indivíduos conhecedores da técnica”.
Assim, as limitações ao direito fundamental da liberdade de ofício encontram sua justificativa para tão somente “assegurar que as atividades de risco sejam desempenhadas por pessoas com conhecimentos técnicos suficientes, de modo a evitar danos à coletividade”[4]. Portanto, qualquer restrição legal que destoe das “qualificações que a lei estabelecer”, sob a ótica da preservação da sociedade do perigo do exercício profissional de quem não detenha conhecimento técnico suficiente, receberá a pecha da inconstitucionalidade.
Não é, a toda evidência, o caso dos advogados públicos federais que, além de habilitados pela OAB, também tiveram sua qualificação técnica atestada em concurso público de provas e títulos, que é condição de investidura no cargo.
Também se argumenta que a proibição da advocacia fora das atribuições funcionais pelos Membros da AGU estaria inserida nos critérios políticos de conveniência e oportunidade do legislador e que a proibição seria mais consentânea com a defesa dos interesses fazendários.
Em primeiro lugar, o poder de conformação do legislador, diante desse direito fundamental sujeito a uma reserva legal qualificada, só poderá se ater às “qualificações que a lei estabelecer” e à “autorização” para exercício da atividade. Qualquer forma de restrição diferente estabelecida pela lei configurará autêntica violação ao núcleo essencial do art. 5º, XIII c/c art. 170, parágrafo único, da CF. Não há espaço para discricionariedade do legislador, em matéria de direitos fundamentais, de forma distinta daquela autorizada pelo constituinte, sob pena de transformar os direitos fundamentais em meros “direitos na medida da lei”, ao sabor dos movimentos políticos circunstanciais, como ocorreu na Alemanha Nazista, cujas atrocidades aconteceram dentro da legalidade que se construiu em afronta à inoperante Constituição de Weimer. Alegar a “discricionariedade” contra a insustentável proibição do exercício da advocacia pelos Membros da AGU é um mero topoi, que peca um enorme déficit de fundamentação, por fugir do ônus político-deliberativo. Vale lembrar que, na ditadura, na entrada do DOI-Codi de São Paulo, havia uma placa com a inscrição “contra a Pátria não há direitos”. Por isso, perguntamos: contra a discricionariedade não há direitos?
Em segundo lugar, a argumentação que embasa a proibição de advocacia pelo Membro da AGU desrespeita o princípio federativo. O interesse perseguido pela União é apenas diferente daquele perseguido pelos Estados e pelos Municípios, quando não comuns ou concorrentes. Esse é o traço distintivo do federalismo cooperativo. Se os advogados públicos federais são impedidos de advogar fora das suas atribuições, significa dizer que o "interesse público federal" é superior ao interesse público dos estados e dos municípios, o que não tem cabimento.
Em terceiro lugar, pecaria por razões pragmáticas: o contato do advogado público com o mundo privado é salutar e enriquecedor para a própria defesa da União. As fronteiras do público e do privado não são as mesmas que separam, na bela metáfora de Nelson Saldanha, a praça do jardim[5]. A Administração Pública, frequentemente, se imiscui em temas privados, como nas parcerias público-privadas, nos contratos de financiamento internacionais, nas concessões de serviços públicos ou mesmo na atuação de empresas estatais na exploração de atividades econômicas. Privatiza-se o direito público, ao se reconhecer a figura da Administração Pública consensual, da soft law, da fuga para o direito privado ou do Estado Subsidiário, que abre espaço aos atores do terceiro setor[6]. Para ser um pouco menos doutrinário e mais prático, basta pensar que as principais manchetes de política e economia dos jornais brasileiros veiculam temas como a cotação dos títulos da dívida pública “C-Bonds”; a evolução do “risco País”; a adoção de um fundo garantidor da remuneração de concessionários (Decreto nº 5.411/2005) justamente para contornar esses riscos; a contratação de empréstimos externos junto a instituições financeiras ou mesmo as licitações custeadas por organismos internacionais, que se submetem a regras privadas que exorbitam o direito comum brasileiro (art. 42, §5º da Lei nº 8.666/93); a arbitragem a que se submetem as empresas em que a União tenha participação acionária e até mesmo o próprio Poder Público (art. 11, III da Lei nº 11.079/2004) etc. Tudo isso parece um mundo distante da vida do advogado público federal, que está encastelado na burocracia estatal e pouco familiarizado com a sofisticação do direito privado que rege os rumos da Nação. Se um dos objetivos do projeto admitindo até mesmo não concursados nos seus quadros é a “oxigenação” do órgão com ideias da iniciativa privada ou a “permeabilidade do Estado a demandas da sociedade civil” [7], ele atingirá esses mesmos objetivos, em maior escala, se estender a possibilidade de exercício da advocacia privada a todos os membros concursados, não concursados e licenciados, sem as restrições inconstitucionais criadas pela redação proposta ao art. 28, I da LOAGU.
Por último, também fica sem resposta a indagação: por que um médico ou um dentista ou um professor, que têm vínculo estatutário com a União, pode exercer livremente sua profissão, fora do horário de trabalho, mas os advogados públicos federais são os únicos que não podem? Há um exemplo até mais gritante: os Advogados do Senado são advogados federais, à semelhança dos Membros da AGU, mas podem exercer livremente a advocacia. Ambos estão a serviço da mesma causa - a defesa dos interesses da União – e o que lhes separa é o vínculo a Poderes diferentes: os Advogados da União estão ligados ao Executivo, ao passo que os Advogados do Senado, ao Legislativo. Porém, isso não é um discrímen legítimo para justificar um tratamento tão discrepante. Seja como for, não se precisaria ir tão longe nas comparações: se um advogado tomasse posse, no Poder Executivo, num cargo de técnico ou analista de alguma autarquia, poderia exercer sua profissão de advogado livremente, nos termos do art. 5º, XIII da CF c/c Estatuto da OAB. Por que, então, não poderia fazê-lo justamente quando investido no cargo de advogado, respeitando-se naturalmente o impedimento de advogar contra a União? A vedação do exercício da advocacia direciona-se exclusivamente sobre o cargo de advogado público e não quaisquer sobre outros do poder executivo, cuja natureza das atribuições – e não uma proibição genérica e discriminatória - é que vai determinar eventual incompatibilidade, nos termos do art. 28, I à XIII da Lei 8.906/94. Daí se vê que proibição do art. 28, I da Lei Orgânica da AGU, a toda evidência, é irrazoável e não sobrevive sob o cotejo do princípio da igualdade.
Outrossim, os advogados públicos federais estão autorizados, por lei, a exercer outras atividades privadas estranhas a suas atribuições funcionais. Podem ser professores, empresários, músicos, membros de conselhos de administração de sociedades anônimas, delegatários de serviços notariais[8] ou até mesmo conferencista de cargas em portos[9]. Em resumo, o advogado público pode ser tudo, menos advogado. A proibição de advogar, portanto, parece ser um tabu e se apoiar meramente em argumentos extrajurídicos. Não há nenhum fundamento constitucional que ampare a castração do direito mais fundamental dos advogados públicos que é advogar[10].
O exercício da advocacia, obedecidos os limites éticos impostos pelo Estatuto da OAB, será um fator de atração de profissionais qualificados para os quadros da AGU, além de permitir o crescimento profissional dos seus Membros, por lhes fomentar o contato com outras realidades do Direito na iniciativa privada que exige a constante reciclagem e oferece desafios que o servidor público não conhece. Inegavelmente, o serviço público também ganhará com isso.
Na verdade, no caso em apreço, pode-se até mesmo estar diante de uma discussão inexistente – se viola ou não viola o interesse público – em razão da incorreta identificação do interesse público, como no exemplo de uma passeata e da interrupção do trânsito de uma via pública, em que haveria, na verdade, a convergência entre o interesse público e o privado[11].
Segundo voto do Ministro Marco Aurélio Mello, na decisão do Recurso Extraordinário nº 603.583/RS, “a garantia constitucional de acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efetiva, prevista no inciso XXXV do art. 5º da Carta Federal, além de exigir o aparelhamento do Poder Judiciário, também impõe que seja posto à disposição da coletividade corpo de advogados capazes de exercer livre e plenamente a profissão”. Este, aliás, foi um dos argumentos utilizados pela União, no recurso interposto contra decisão liminar na ação popular que pretendia limitar o recebimento de “jetons” pelos Ministros de Estado ao teto constitucional. Naquela peça[12], a Advocacia-Geral da União sustentou, dentre outras coisas, que a participação dos Ministros como conselheiros das estatais gera inúmeros benefícios para aquelas empresas. Com a mesma razão, a atuação do membro da AGU poderá resultar inúmeros benefícios para a sociedade.
Recentemente, a imprensa noticiou casos de membros da AGU que atuaram na esfera privada, enquanto afastados do exercício de suas funções, durante essas licenças. Certamente, a expertise desses membros, caso estivessem em atividade, seria de extrema importância para a defesa e assessoramento da União, como acontece nas Procuradorias de Estado, que contam atualmente com alguns dos maiores juristas do País, a exemplo de Luís Roberto Barroso, Alexandre Aragão, Gustavo Binenbojm e tantos outros que exercem a atividade de advogado privado, sem embaraços criados pelas leis estaduais de suas carreiras.
Nesse quadro, os advogados públicos federais, por enquanto, são advogados para fins de inscrição na Ordem e pagamento da OAB, mas não o são para recebimento de honorários ou para o livre exercício de suas atividades; integram uma carreira típica de Estado que exerce uma função essencial à Justiça, mas não lhes assiste nenhuma garantia que está presentes no estatuto jurídico dos Membros do Ministério Público e da Magistratura, tão essenciais à Justiça quanto a Advocacia-Geral da União.
Se a atividade do Membro da Advocacia-Geral da União é considerada por lei advocacia (art. 3º, § 1º da Lei nº 8.906/93) e se houve o preenchimento das qualificações profissionais estipuladas em lei (art. 5º, XIII da CF/88 c/c art. 8º do Estatuto da OAB), o advogado público não deveria sofrer restrições para exercício de seu direito fundamental de advogar, respeitando-se apenas o impedimento e incompatibilidades (art. 28, III e II c/c art. 30, I do Estatuto da OAB), como já acontece com a maioria das Procuradorias de Estados, de Municípios e do Distrito Federal.
Nesta toada, também reputo importante destacar que a Constituição erigiu como um dos fundamentos da ordem econômica brasileira a livre iniciativa e assim dispôs:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
A advocacia, quando enfocada como atividade econômica é de livre exercício por todos aqueles que foram habilitados pela OAB para exercerem-na, conforme previsão constitucional.
A Constituição foi clara: foi permitido à lei excepcionar essa liberdade de exercício para tão-somente condicionar-lhe a algum ato de autorização dos órgãos públicos, o que, no caso da advocacia, é realizado pela OAB. A ressalva diz respeito apenas à necessidade de autorização. O parágrafo único do art. 170 da Constituição não autoriza o legislador ordinário, em tema de livre iniciativa, dispor de forma diferente do mandamento constitucional.
Nas palavras de Celso Antô nio Bandeira de Mello[13], “se o constituinte houvesse pretendido dizer que a atividade econômica é livre, mas que a lei poderia excepcionar tal regra, bastar-lhe-ia dizer: 'É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, salvo os casos indicados em lei'. Mas não foi isso que fez. Intercalou a expressão 'independentemente de autorização dos órgãos públicos'. Logo, ao estampar, em seguida, ´salvo os casos indicados em lei´, deixou claro que aquilo que facultou à lei excepcionar foi justamente a prescindência de autorização. (….) Se qualquer atividade econômica é exercitável por todos, segue-se, induvidosamente, que o Estado não pode restringir apenas a uns ou alguns (noção antitética a 'todos') o exercício de tal ou qual atividade econômica (noção antitética a 'qualquer'), pois, seja qual for a atividade, é insuscetível de ser excluída do âmbito de ação dos particulares”.
A própria Advocacia-Geral da União, sem modificar o texto da lei em vigor, deu um passo importante que infirma a questionável proibição do art. 28, I da LC nº 73/93: a partir de 2009, os Membros da AGU foram autorizados, institucionalmente, a exercer a advocacia fora das atribuições funcionais, em caráter pro bono e também em causa própria, conforme (i) Portaria nº 758/2009 do Advogado-Geral da União, (ii) Instrução Normativa Conjunta nº 1/2009 do Corregedor-Geral da União e do Procurador-Geral Federal e (iii) Orientação Normativa nº 27/2009 do Advogado-Geral da União. Os Membros da AGU, se licenciados, também podem exercer a advocacia plenamente, exceto contra a Fazenda Pública Federal.
O art. 28, I da atual Lei Orgânica da AGU, ao proibir o exercício da advocacia fora das atribuições funcionais, não fez qualquer ressalva sobre hipóteses em que a advocacia seria permitida. As permissões foram “criadas” em regulamentos da própria AGU que somente agora pretendem ser transpostas para o texto da lei pela redação do projeto.
No entanto, é preciso, mais uma vez, chamar a atenção para as situações nitidamente anti-isonômicas criadas por esses atos administrativos entre os membros da AGU. Enquanto uns estariam proibidos de advogar, outros, amparados numa licença para tratar de interesse particular, poderiam advogar livremente[14]. Em outras palavras, o exercício do direito fundamental do art. 5º, XIII da Constituição estaria sujeito à discricionariedade das Chefias da Instituição para conceder as licenças.
Nada disso faz sentido.
O Conselho Federal da OAB, a quem cabe com exclusividade a interpretação da disciplina do Estatuto da Ordem, entendeu que, mesmo em períodos de licença, servidor proibido de advogar continua proibido. A propósito:
EMENTA DO CONSELHO FEDERAL DA OAB: Ementa 45/2003/OEP. Auditor Fiscal - Atribuições Previstas em Lei - Incompatibilidade para o exercício da Advocacia. - O Auditor Fiscal ocupa cargo público de atividade-fim na área tributária. Dentre suas atribuições estão a de inspeção, controle e execução de trabalhos de administração tributária, executar a revisão físico-contábil; fiscalizar as receitas estaduais; constituir privativamente créditos tributários através de lançamentos ex officio com lavratura de auto de infração (Lei Estadual 4.794/88), portanto, misteres incompatíveis com a atividade advocatícia, a teor do disposto no art. 28, VII, do EAOAB. - O afastamento temporário não faz extinguir a incompatibilidade. Se permanece ocupando, em situação permanente, cargo incompatível com a advocacia, a incompatibilidade persiste, ainda que eventual e temporariamente não exercendo as respectivas funções. Recurso improvido. (Recurso 0008/2003/OEP-BA. Relator: Conselheiro José Brito de Souza (MA), julgamento: 13.10.2003, por unanimidade, DJ 18.11.2003, p. 456, S1);
EMENTA DO CONSELHO FEDERAL DA OAB: Ementa 055/2003/PCA. Servidor do Poder Judiciário Licenciado dele não se desvincula, permanecendo incompatível com o exercício da advocacia (art. 28, IV do EOAB), mesmo quando passa a exercer junto a outro poder cargo que apenas o tornaria impedido de advogar (art. 31, I do EAOAB). Recurso que se conhece, para negar provimento, mantida a decisão recorrida. (Recurso nº 0302/2003/PCA-SP. Relator: Conselheiro Edson Ulisses de Melo (SE), julgamento: 13.10.2003, por unanimidade, DJ 22.10.2003, p. 651, S1);
EMENTA DO CONSELHO FEDERAL DA OAB: A cessão de Analista Judiciário para a Advocacia Geral da União não elide a incompatibilidade, inerente ao cargo de origem, para o exercício da advocacia. Recurso improvido. (Proc. 005.232/98/PCA-SC, Rel. José Paiva de S. Filho, j. 10.8.98, DJ 29.9.98, p. 262).
No panorama atual, a Lei Orgânica da AGU diz que é vedado o exercício da advocacia fora das atribuições funcionais. Aquelas portarias, despachos e instruções normativas disseram o contrário e criaram algumas exceções. Ao reduzir o campo de incidência da proibição legal de advogar, a Administração negou aplicação à Lei Complementar naquelas hipóteses específicas, o que equivale, em outros termos, ao reconhecimento de sua inconstitucionalidade pelo próprio Poder Executivo. Sob a Constituição de 1988, passou-se a sustentar que o Poder Executivo também poderia fiscalizar a constitucionalidade das leis[15], afinal não faz sentido o Poder Executivo deixar de lado a Constituição para dar cumprimento a lei que lhe parece inconstitucional e, o que é pior, que viola o núcleo essencial de direitos fundamentais[16], como é o caso do art. 28, I da LOAGU.
O STF, na Representação de Inconstitucionalidade nº 980, decidiu que o Poder Executivo pode deixar de cumprir leis inconstitucionais. Segundo o Ministro Moreira Alves, no seu voto, “(...) em face dos princípios que norteiam a atividade administrativa, que exige plena e total conformidade com a ordem jurídica que assenta, fundamentalmente, nos países de Constituição rígida, como é o nosso, no texto da Constituição – a única conclusão possível é, repetimos, a de que não somente pode o Executivo recusar cumprimento a disposições emanadas do Legislativo, mas evidentemente inconstitucionais, como é de seu dever zelar para que não tenham eficácia na órbita administrativa.”
Se o Executivo deve zelar para que leis inconstitucionais não tenham eficácia na órbita administrativa, são plenamente válidos esses regulamentos infralegais, porque retiram seu fundamento de validade na Constituição e não na lei[17]. Mas pecam por querer instituir um tratamento discriminatório e excludente entre os membros da carreira: todos devem ser livres para exercer a profissão de advogado, nos termos do Estatuto da OAB.
Em segundo lugar, esses despachos e regulamentos que autorizaram a advocacia privada para alguns membros nos parecem inócuos. É como se a AGU tivesse editado portarias afirmando que os procuradores estão autorizados a viajar nos feriados ou a se casarem nos finais de semana. Trata-se de uma intromissão numa esfera de interesses que o regime estatutário, por sua natureza, não poderia disciplinar. Não cabe à AGU ou a qualquer outro órgão da União regular o exercício de atividades privadas pelo advogado público federal que não causem conflito, ainda que potencial, de interesses com a Administração Pública Federal. Cabe apenas analisar se há, ou não, o conflito. Se não fosse assim, admitir-se-ia que o regime estatutário poderia dispor sobre aspectos mais comezinhos da vida de um indivíduo, aniquilando seu direito fundamental de liberdade.
O argumento nuclear dessa construção é que o regime estatutário regula a relação do advogado público com o Estado, ao passo que a OAB regula, com exclusividade, a relação do advogado público com os atores privados. São círculos de competência que não se tocam ou se sobrepõem.
Dentro do regime estatutário podem ser criados deveres relacionados a esse estado especial de sujeição do servidor perante o Poder Público, abrangendo os aspectos que interfiram no bom desempenho das atribuições do cargo. O que está fora dessa esfera de sujeição está protegido pelo direito de liberdade, a exemplo da advocacia privada, sem vinculação a outro empregador, quando o advogado público pode tratar de causas como um divórcio, uma ação de cobrança ou qualquer outro assunto estranho ao serviço público federal. Mais uma vez, salta aos olhos o tratamento discriminatório sofrido pela advocacia: por que o advogado público federal pode exercer tantas e tão diferentes atividades privadas, mas não pode justamente advogar?
Nem mesmo a submissão ao regime de dedicação exclusiva ampara tamanha castração. Ao tratar do regime de dedicação exclusiva do extinto regime jurídico do “serviço civil do Poder Executivo”, o art. 12, parágrafo único, inciso II da Lei nº 4.345/64 rezava o seguinte:
“Art. 12. Considera-se regime de tempo integral o exercício da atividade funcional sob dedicação exclusiva, ficando o funcionário proibido de exercer cumulativamente outro cargo, função ou atividade particular de caráter empregatício profissional ou pública de qualquer natureza.
Parágrafo único - Não se compreendem na proibição dêste artigo:
(…)
II. as atividades que, sem caráter de emprêgo, se destinam à difusão e aplicação de idéias e conhecimentos, excluídas as que impossibilitem ou prejudiquem a execução das tarefas inerentes ao regime de tempo integral;”
Desde aquela época, entendia-se que o regime de dedicação exclusiva impedia o titular do cargo de ocupar outro ou de ter outro emprego. A União é o único “patrão” do servidor, cujo exercício das atribuições do cargo deve ser prioritário. É esse, inclusive, o sentido das proibições do exercício de atividades empresariais pelo servidor, na condição de administrador ou diretor de uma sociedade. Não se quer – corretamente, a meu ver – que o servidor se dedique a outra atividade paralela que comprometa as atribuições de seu cargo. Mas, a exclusividade não tolhe seu direito constitucional de liberdade e de livre iniciativa e da liberdade de profissão. E não poderia tolher, muito menos, o exercício da advocacia, que é uma profissão eminentemente liberal e envolve a aplicação de ideias, difusão de teses e de conhecimento, pode ser exercida de múltiplas formas.
Essa tem sido a interpretação dada pelos departamentos de pessoal da AGU quanto ao exercício de outras atividades privadas pelo advogado público federal, com base no poder que lhe foi conferido pelo art. 6º, parágrafo único, da Lei nº 11.890/2008. Infelizmente, em razão do art. 28, I da LOAGU, advocacia é a única atividade cujo exercício, irracionalmente, permaneceu proscrito em caráter absoluto.
Por esse motivo, com base na jurisprudência do STF, ainda é possível ir mais longe e sustentar que a proibição de advogar – que é inconstitucional – estaria fora das atribuições funcionais não estaria mais em vigor, porque revogada pela Lei nº 11.890/2008.
Com efeito, no julgamento do RE n º 539370/RJ[18], o STF delineou, expressamente, que matérias atinentes ao estatuto pessoal do Membro da AGU não estão sob a alçada de lei complementar, por não dizerem respeito à organização e funcionamento da Instituição (art. 131 da CF), podendo ser disciplinadas por lei ordinária.
Durante a gestão do Ministro Gilmar Mendes, como Advogado-Geral da União, foram editadas Medidas Provisórias que revogaram regras da LC nº 73/93, que disciplinavam a idade mínima para o advogado assumir a Consultoria Jurídica de um Ministério. Ademais, se as atividades do Membro da AGU fossem realmente matérias atinentes a organização e funcionamento do órgão e sujeitas à lei complementar, elas nunca poderiam ser tratadas por Medida Provisória, como fez o art. 38 §1º, I da MP nº 2.229-43/2001, que trouxe a mesma proibição da advocacia fora das atribuições funcionais para a carreira de Procurador Federal. Observe-se, no particular, que a Constituição proíbe que Medidas Provisórias tratarem de matéria sujeita à Lei Complementar (art. 62 § 1º, II da CF/88). Logo, se tantas Medidas Provisórias modificaram a Lei Complementar, fica claro que a proibição de advogar, além de inconstitucional, pode ser livremente tratada por lei ordinária ou medida provisória e que o art. 28, I da LC nº 73/93 é apenas formalmente complementar.
Nessa perspectiva, o art. 6º da Lei nº 11.890/2008 revogou o art. 28, I da LC nº 73/93. O primeiro prescreve aos Membros da Advocacia-Geral da União "impedimento do exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada, potencialmente causadora de conflito de interesses". Trata-se de lei posterior que regulou, de forma diferente, a mesma matéria tratada por lei anterior (art. 2º § 1º da LICC).
Ademais, o art. 44, II do Estatuto da OAB, que também é posterior à LC nº 73/93, atribuiu exclusivamente à OAB a disciplina da advocacia, não havendo espaço, nem mesmo em nível infraconstitucional, para a União regular a matéria de forma distinta daquela estabelecida pelo Estatuto da Ordem, sendo certo que o próprio STF, no julgamento da ADI nº 3.026/DF, assentou que a natureza sui generis da OAB, que presta um serviço público independente, a desafeta de qualquer vinculação ou subordinação ao Poder Público e justifica o regime especial da Lei nº 8.906/94. Mais recentemente, em outro julgamento[19], o Supremo Tribunal Federal deixou claro: “[a] Ordem dos Advogados do Brasil, precisamente em razão das atividades que desempenha, não poderia ficar subordinada à regulamentação presidencial ou a qualquer órgão público, não só quanto ao exame de conhecimentos, mas também no tocante à inteira interpretação da disciplina da Lei nº 8.906/94, consoante se verifica do artigo 78, a determinar que cabe ao Conselho Federal expedir o regulamento geral do estatuto. Nesse campo, a vontade superior do Chefe do Executivo não deve prevalecer, mas sim a dos representantes da própria categoria”.
Neste mesmo julgamento, o Min. Luiz Fux ressaltou que, ao desempenhar suas funções, “remaesce a OAB como entidade de autorregulação profissional, à qual se confia a disciplina infralegal da advocacia. Faz sentido que assim o seja, pois a própria legitimidade democrática da regulação profissional da advocacia também repousará na observância da visão concreta do mercado e de suas práticas usuais (em constante transformação), sem prejuízo das medidas corretivas que se eventualmente fizerem necessárias. Portanto, conferir à entidade de classe a fixação dos marcos regulatórios que orientarão a atividade profissional de seus próprios filiados é, em princípio, consagrar a reflexividade que, segundo SERGIO GUERRA (Discricionariedade e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2008), legitima a atividade regulatória”
Portanto, sob a vigente ordem constitucional brasileira, não se sustenta impor ao atual estatuto jurídico dos Membros da Advocacia-Geral da União a proibição de advogar fora das atribuições funcionais. Somente a vontade popular e soberana da constituinte poderia cercear esse direito, que, por se tratar de cláusula pétrea, está a salvo da vontade das maiorias legislativas ocasionais, como aquela expressa na LOAGU, que violou direitos fundamentais e usurpou a competência da OAB de interpretar a disciplina de seu próprio estatuto e o exercício da advocacia no território nacional.