3. Os requisitos legais para a legítima manutenção e aquisição de espécies da fauna.
Configurada a importância da fauna como fator indispensável à manutenção do equilíbrio ecológico e, em último aspecto, na efetivação do direito à sadia qualidade de vida do homem, o respeito à preservação da fauna passa pela aplicação de normas legais e infralegais, incumbidas de regular o exercício de Poder de Polícia Ambiental, capaz de limitar o exercício de direitos individuais em prol do bem-estar coletivo, e de sancionar a criação artificial de espécies da fauna e o acesso sem prévio controle aos animais silvestres.
O controle da fauna mostra salutar após estudos científicos que apontam ser a taxa de mortalidade de animais nascidos na natureza mais elevada do que aquela ocorrida em cativeiro. Assim, a captura de animais silvestres e a restrição à posse não controlada desses (retirados da natureza) é medida que se impõe à preservação das espécies, do equilíbrio ecológico e da biodiversidade, sob pena de se fomentar a extinção das espécies, contribuindo para o desequilíbrio ecológico.
A Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/67), em seu parágrafo primeiro do art. 3º, permite, àqueles que estejam prévia e devidamente autorizados pelo Poder Público competente, a caça das espécies silvestres e o comércio dos produtos e objetos provenientes de criadouros legalizados:
“Art. 3º. É proibido o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos e objetos que impliquem na sua caça, perseguição, destruição ou apanha.
§ 1º Excetuam-se os espécimes provenientes legalizados.
§ 2º Será permitida mediante licença da autoridade competente, a apanha de ovos, lavras e filhotes que se destinem aos estabelecimentos acima referidos, bem como a destruição de animais silvestres considerados nocivos à agricultura ou à saúde pública.
§ 3º O simples desacompanhamento de comprovação de procedência de peles ou outros produtos de animais silvestres, nos carregamentos de via terrestre, fluvial, marítima ou aérea, que se iniciem ou transitem pelo País, caracterizará, de imediato, o descumprimento do disposto no caput deste artigo.
(grifo nosso).
O excedente populacional dos animais nascidos em criadouros justifica e autoriza a sua comercialização. Assim, autoriza-se a aquisição de animais em criadouros comerciais ou comerciantes de espécimes previamente autorizados e registrados pelo IBAMA, mediante a emissão de nota fiscal conferindo a origem lícita daqueles. A Portaria IBAMA nº 118 –N, de 15/11/97 e Portaria IBAMA nº 117 – N, de 15/10/1997, tratam de esmiuçar os requisitos legais a serem observados por aqueles criadouros – portanto, trata-se de atividade comercial regulada e controlada por meio do exercício do poder de polícia do Estado.
No que tange à Portaria IBAMA nº 118 –N, DE 15/11/97 – a qual normatiza o funcionamento de criadouros de animais da fauna silvestre brasileira com fins econômicos e industriais, nesses compreendidos as áreas dotadas de instalações capazes de possibilitar o manejo, a reprodução, a criação ou recria de animais –, cumpre destacar ser dever do criador manter-se atualizado com a declaração da quantidade de animais presente em seu plantel. Fica ainda obrigado a manter em seus arquivos cópia das notas fiscais dos animais e produtos comercializados, ficando os agentes ambientais autorizados a vistoriar o criadouro a qualquer tempo e, caso constatado irregularidades, promover a devida responsabilização:
“Art. 13. O criadouro deverá remeter anualmente à Superintendência do IBAMA declaração dos animais vivos mantidos em cativeiro e de animais abatidos, partes e produtos constantes em seu estoque, conforme modelo constante no Anexo II, bem como informar a quantidade de selos/lacres de segurança fornecidos pelo IBAMA.
Parágrafo Único. O criadouro deverá manter em seu poder, as cópias ou segundas vias das Notas Fiscais dos animais vivos, abatidos, partes e produtos que foram comercializados
(...)
Art. 16. O proprietário do criadouro que não cumprir as determinações previstas nesta Portaria será notificado e terá um prazo de 30 (trinta) dias para regularizar a situação.
§ 1º - Findo este prazo, será realizada vistoria no criadouro e constatada a continuidade das irregularidades, será lavrado o Termo de Apreensão e Depósito dos animais e assinado Termo de Compromisso, conforme Anexo III da presente Portaria.
§ 2º - Esgotado o prazo definido no Termo de Compromisso, dar-se-á início ao processo de cancelamento do registro e aplicadas as sanções civis e penais.
(...)
Art. 22 - O IBAMA poderá realizar vistoria no criadouro em qualquer tempo.”
A Portaria IBAMA nº 117 – N, de 15/10/1997, por sua vez, evidencia a obrigatoriedade do animal silvestre estar acompanhado de nota fiscal de compra emitida pelos criadouros comerciais legalizados, ou jardins zoológicos devidamente registrados no IBAMA ou por pessoas jurídicas que intencionem adquirir animais e revendê-los a particulares para dar inicio à criação comercial ou conservacionista, ou para aqueles que pretendam mantê-los como animais de estimação (art. 10). Na nota fiscal deverá conter obrigatoriamente “o número de registro junto ao IBAMA, especificação do produto e espécie comercializada, quantidade, unidade de medida e valor unitário” (art. 9º, caput) e “os dados referentes à marcação individual dos espécimes” (§ 1º do art. 9º).
Para os compradores de animais silvestres, a mencionada Portaria dispensa o prévio cadastro no Ibama, mas exige o controle pelo criadouro ou comerciante de animais vivos da fauna silvestre brasileira por meio da manutenção de cadastro atualizado de seus compradores e quantidade de animais comercializados, a ser informado semestralmente ao órgão ambiental. Além disso, deverá manter disponíveis as cópias ou segundas vias das Notas Fiscais para possível fiscalização do IBAMA ou demais Órgãos Públicos (art. 10).
Diante de tal regulamentação, chama atenção – especialmente pelo objeto do presente estudo, guarda de animais silvestres – a norma contida no parágrafo terceiro do art. 13 da Portaria IBAMA nº 117 – N, de 15/10/1997, que declara a ilegalidade de possuir animal silvestre em cativeiro sem prova de aquisição nos criadouros legalizados, in verbis:
“Art. 13. A pessoa física ou jurídica que intencione comprar animais da fauna silvestre brasileira de criadouro comercial ou comerciante registrado no IBAMA, com objetivo de mantê-los como animais de estimação, não necessitará de registro junto ao IBAMA.
§ 1º O vendedor deverá manter um cadastro, constando o nome do comprador, CPF, endereço de residência, endereço onde os animais serão alojados e telefone/fax de contato.
§ 2º O criadouro, comerciante ou importador deverá fornecer aos compradores de animais de estimação um texto com orientações básicas sobre a biologia da espécie (alimentação,fornecimento de água, abrigo, exercício, repouso, possíveis doenças, aspectos sanitários das instalações, cuidados de trato e manejo) e sobretudo, a recomendação da não soltura ou devolução dos animais à natureza, sem o prévio consentimento da área técnica do IBAMA.
§ 3º A manutenção dos animais da fauna silvestre brasileira em cativeiro somente terá reconhecimento legal se o seu proprietário possuir Nota Fiscal de compra.
§ 4º O particular que adquirir animais poderá cedê-los ou revendê-los a outrem mediante Termo de Transferência, conforme modelo constante no Anexo II da presente Portaria, acompanhado da via original da Nota Fiscal.” (grifo nosso)
Nesses termos, evidencia-se o modo de controle de aquisição e manutenção das espécies da fauna silvestre em cativeiro, somente permitida se proveniente de criadouros legalizados e sendo possível a visualização de sua origem pelo contido na nota fiscal de compra. A não observância dos dispositivos regulamentares acima expostos configurará, em tese, infração ambiental nas esferas penal e administrativa. A regra, portanto, é a aquisição e a manutenção em cativeiro de animais previamente controlados e identificados (Instrução Normativa Ibama nº 02/2001 e Instrução Normativa Ibama nº 01/2003).
Acredita-se que, mesmo com o advento da Lei Complementar nº 140, de 2011, que passou para a atribuição dos Estados o controle sobre os criadouros (art. 8º, inciso XIX), o regime jurídico relativo ao controle da aquisição e guarda de animais silvestres permanecerá, se não em sua integridade, mas ao menos parcialmente, nos termos aqui exposto. É que a Lei Complementar permite a formalização de “Acordos de Cooperação Técnica” entre a União e os Estados (art. 7º, IV c/c art. 8º, V), o que, na prática, representa o compartilhamento de experiências, dentre as quais inserem-se também o aproveitamento do contexto normativo, já que poderão servir de parâmetro para os Estados na feitura de sua própria legislação, possibilitando assim a continuidade e efetividade na prestação do serviço público.
A excepcionalidade da guarda doméstica de animais que não se adequem a tais expedientes será apresentado a seguir.
4. O caráter excepcional e temporário da guarda doméstica.
Como vimos, somente permite-se a aquisição e a manutenção em cativeiro de animais silvestres se adquiridos em criadouros legalizados, sendo imperioso demonstrar a sua origem lícita pelo contido na nota fiscal de compra.
A presença de animais silvestres em domicilio em desacordo com tal orientação configurará, em tese, ilícito contra a fauna, possibilitando assim, se caso confirmado, a imposição das sanções penais do art. 29 da Lei nº 9.605, de 1998, e as administrativas previstas no art. 24 do Decreto nº 6.514, de 2008. Por outro lado, a entrega espontânea ao órgão ambiental por aquele que detém a guarda de espécime silvestre autorizará a não aplicação das sanções dispostas no decreto regulamentar (art. 24,parágrafo quinto, do Decreto nº 6.514, de 2008).
Cumulada às sanções privativa de liberdade (pena de seis meses a um ano) e pecuniária (multa), a configuração do ilícito provocará ainda a aplicação da medida de apreensão dos animais mantidos em desacordo com a legislação infraconstitucional. Se não há maiores indagações acerca da obrigatoriedade da apreensão dos animais silvestres, pois decorrente da aplicação fiel das normas do artigo 25, parágrafo primeiro, da Lei nº 9.605, de 1998, combinado com o artigo 3º, inciso IV, do Decreto nº 6.514, de 2008, a destinação daqueles demandará a análise do caso concreto, uma vez que a legislação elenca mais de uma possibilidade na sua destinação.
Sobre o destino a ser dado aos animais silvestres apreendidos, o Decreto nº 3.179, de 1999, previa a possibilidade de mantê-los com particulares, estes na condição de fiel depositários, caso restasse inviabilizada a soltura no hábitat ou a entrega aos cuidados de técnicos especializados. De todo modo, já se podia extrair da norma que a guarda doméstica seria excepcional e como medida de ultima ratio, pois somente autorizada caso prejudicadas as duas outras opções anteriores, in verbis:
“Art. 2º As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções:
(…) omissis
IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;
§ 6º A apreensão, destruição ou inutilização, referidas nos incisos IV e V do caput deste artigo, obedecerão ao seguinte:
I - os animais, produtos, subprodutos, instrumentos, petrechos, equipamentos, veículos e embarcações de pesca, objeto de infração administrativa serão apreendidos, lavrando-se os respectivos termos;
II - os animais apreendidos terão a seguinte destinação:
a) libertados em seu habitat natural, após verificação da sua adaptação às condições de vida silvestre;
b) entregues a jardins zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados; ou
c) na impossibilidade de atendimento imediato das condições previstas nas alíneas anteriores, o órgão ambiental autuante poderá confiar os animais a fiel depositário na formados arts. 1.265 a 1.282 da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, até implementação dos termos antes mencionados;”
(grifo nosso)
Diante da necessidade de regular a concessão do depósito doméstico provisório de animais silvestres apreendidos pelas atividades de fiscalização ambiental, o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA editou a Resolução nº 384, de 27 de dezembro de 2006. Em sua redação, a Resolução deixa evidenciar a natureza excepcional da medida aqui estudada, exigindo que reste comprovada a impossibilidade de atender às exigências previstas no artigo 2º, parágrafo sexto, inciso II, alíneas “a” e “b”, do Decreto nº 3.179, de 1999, podendo a qualquer tempo ser revista, no interesse da conservação (art. 6º, 7º, inciso I). Nesse sentido, o artigo 5º da mencionada Resolução dispõe:
“Art. 5º Não existindo a possibilidade de retirar o animal da posse do autuado no ato da fiscalização, justificadas as razões para tanto, deverá ser lavrado Termo de Apreensão e Depósito em caráter emergencial e temporário, que não poderá ultrapassar quinze dias úteis, confiando-se ao depositário a integral responsabilidade pelo espécime apreendido, para que sejam viabilizadas as condições para a destinação adequada do animal pelo órgão ambiental competente.
(…) omissis
§ 3º. A lavratura do Termo de Depósito Doméstico Provisório de que trata o § 1º deste artigo estará sujeita à prévia avaliação, por técnico legalmente habilitado, sobre as condições de manutenção e o grau de dependência do animal com o ser humano.”
Segundo a Resolução CONAMA nº 384, de 2006, o Termo de Depósito Doméstico Provisório destina-se aos anfíbios, répteis, aves e mamíferos da fauna silvestres brasileira, excluídos aqueles com potencial de invasão de ecossistemas e os que constem nas listas oficiais da fauna brasileira ameaçada de extinção, nacional, estadual, regional ou local e no Anexo I da Convenção Internacional para o Comércio de Espécies da Fauna e Flora Ameaçadas de Extinção – CITES, salvo na hipótese de assentimento prévio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA ou do órgão ambiental estadual competente, mediante parecer técnico. De todo modo, o Termo limitar-se-á a duas espécimes por depositário (art. 7º, § 2º).
O Decreto nº 3.179, de 1999, foi revogado pela publicação, no Diário Oficial da União de 23 de julho de 2008, do Decreto nº 6.514, de 22 de julho de 2008, o qual, em seu texto original, não mais previa a manutenção da guarda doméstica provisória de animais silvestres:
“Art. 107. Após a apreensão, a autoridade competente, levando-se em conta a natureza dos bens e animais apreendidos e considerando o risco de perecimento, procederá da seguinte forma:
I - os animais da fauna silvestre serão libertados em seu hábitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações, centros de triagem, criadouros regulares ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.
Foi com edição do Decreto nº 6.686, de 10 de dezembro de 2008, que a guarda doméstica foi novamente prevista no texto do Decreto nº 6.514, de 2008, restando, por conseguinte, autorizadas a aplicação das normas contidas na Resolução CONAMA nº 384, de 2006, acima expostas, uma vez que o próprio texto regulamentar faz expressa menção à observância aos regulamentos vigentes:
“Art. 107. Após a apreensão, a autoridade competente, levando-se em conta a natureza dos bens e animais apreendidos e considerando o risco de perecimento, procederá da seguinte forma:
I - os animais da fauna silvestre serão libertados em seu hábitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações, entidades de caráter cientifico, centros de triagem, criadouros regulares ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados, podendo ainda,respeitados os regulamentos vigentes, serem entregues em guarda doméstica provisória.”
(grifo nosso).
Assim, em atenção ao regulamento vigente, qual seja a Resolução CONAMA nº 384/2006, ao proceder a fiscalização e autuação do infrator (§ 2º do art. 5º da Resolução), deve-se verificar a possibilidade de destinação imediata dos animais silvestresatendendo à primeira parte do art. 107, inciso I. Caso esta alternativa reste inviabilizada, situação a ser demonstrada por préviolaudo técnico especializado que ateste as condições do cativeiro, se adequadas ou não a manutenção da espécie, e o grau de dependência do animal com o ser humano (§ 3º do art. 5º c/c art. 8º da Resolução), será possível depositar o animal silvestre sob a guarda provisória de particulares.
A possibilidade da manutenção excepcional e provisória dos animais silvestres sob guarda domiciliar decorre do fato de que, quando trazidos ao convívio doméstico, perdem a habilidade de buscar o alimento na natureza, de se proteger dos predadores ou de situações adversas. Dessa forma, a adaptação com o apoio de técnicos especializados é medida que se impõe como forma de assegurar o sucesso da inserção dos animais na vida natural, diminuindo as chances de morte e, consequentemente, da perda daquela biodiversidade.
Também por tais razões, entende-se que para os casos de guarda ilegal de animais silvestres deve-se sempre privilegiar a visão biocêntrica disposta no parágrafo primeiro, inciso I e VII, do artigo 225 da Constituição Federal, atuando no sentido de privilegiar a preservação de todas as formas de vida – bens, como vimos, sem titularidade, pois de natureza difusa, transindividual, afastando a análise sob a visão estritamente antropocêntrica, na qual, na maioria dos casos, se não em sua integralidade, beneficia somente a alguns (aqueles que se apropriaram indevidamente do patrimônio público) em detrimento de toda a coletividade. Lembre-se que a regra é a sobreposição do interesse público sobre o privado, e não o inverso.
Em outras palavras, entende-se que na aplicação das normas ambientais os princípios devem ser aplicados em favor do meio ambiente, ao invés de resguardar interesses estritamente privados. Aplica-se aqui o princípio da vida sustentável, o qual busca proteger todas as espécies de vida no planeta a fim de garantir qualidade de vida satisfatória ao ser humano.
Assim, quer seja pela aplicação dos princípios do direito ambiental, quer pela interpretação e aplicação das normas constitucionais e infraconstitucionais, a guarda doméstica de animais silvestresé medida provisória e excepcional, pois somente restará deferida enquanto pendente o trâmite do procedimento administrativo de apuração da infração ambiental e desde que comprovada a impossibilidade da destinação imediata da espécie integrante da fauna silvestre ao seu hábitat ou a jardins zoológicos, fundações, entidades de caráter cientifico, centros de triagem, criadouros regulares ou entidades assemelhadas.