5. A posição dos tribunais acerca da guarda doméstica de animais silvestres.
A jurisprudência dos tribunais, em sua maioria, acolhe o entendimento da excepcionalidade da guarda doméstica de animais silvestres, desde que não se trate de animal de espécie em extinção, e restando devidamente comprovado nos autos, por provas técnicas, e da análise das circunstâncias do caso concreto, a impossibilidade de sua reinserção na natureza.
No entender dos julgadores, uma vez comprovada as duas hipóteses acima elencadas – quais sejam espécie não constante da lista de animais extintos e sendo a adaptação à natureza danosa ao animal –, não haveria que se falar em ofensa à Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197, de 1997) ou à Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 1998), restando autorizada a concessão da guarda doméstica. De outro lado, se possível a reinserção na natureza, ficaria, então, prejudicada a manutenção dos animais sob a posse de particulares. Nesse sentido, têm-se o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça – STJ:
EMENTA: ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. APREENSÃO DE PAPAGAIOS. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 1º DA LEI 5.197/1997 E DO ART. 25 DA LEI 9.605/98.INEXISTÊNCIA. 1. Hipótese em que o recorrido impetrou Mandado de Segurança contra a apreensão de dois papagaios que viviam em sua residência havia 25 anos. 2. O Tribunal de origem, após a análise dos autos, constatou que os animais foram criados em ambiente doméstico, sem indícios de maus-tratos, tendo consignado não se tratar de espécie em extinção. Dessa forma, concluiu-se que as aves deveriam continuar sob a guarda do impetrante, pois sua readaptação a outro local lhe seria danosa. 3. Inexiste violação do art. 1º da Lei 5.197/1997 e do art. 25 da Lei 9.605/98 no caso concreto, pois a legislação deve buscar a efetiva proteção dos animais. Após 25 anos de convivência, sem indício de terem sido maltratados e afastada a caracterização de espécie em extinção, é desarrazoado determinar a apreensão de dois papagaios para duvidosa reintegração ao seu hábitat. 4. Registre-se que, no âmbito criminal, o art. 29, § 2º, da Lei 9.605/98 expressamente prevê que, “no caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena”. 5. Recurso Especial não provido (STJ, RESP 200801836879, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, D.J.E. 30/09/2010)[4].
A jurisprudência aponta também como razão de decidir a possibilidade da aplicação do perdão judicial ou da isenção da multa administrativa para os casos em que o animal silvestre mantido em cativeiro não constar da lista dos ameaçados de extinção, isto com fundamento no artigo 29, parágrafo segundo, da Lei nº 9.605, de 1998, e no artigo 24, parágrafo quarto, do Decreto nº 6.514, de 2008, o que justificaria a não penalização da conduta e, por conseguinte, autorizaria a permanência na guarda doméstica, desde que, repita-se, demonstrada a impossibilidade do retorno ao habitat. Para ilustrar tal posicionamento tem-se o seguinte acórdão também do Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. GUARDA, EM RESIDÊNCIA, DE AVES SILVESTRES NÃO AMEAÇADOS DE EXTINÇÃO (UMA ARARA VERMELHA, UM PASSARINHO CONCRIZ E UM XEXÉU, DOS GALOS DE CAMPINA E UM PAPAGAIO). FLAGRANTE DURANTE BUSCA E APREENSÃO REALIZADA POR DETERMINAÇÃO JUDICIAL EM OUTRO PROCESSO, QUE APURAVA CRIME TRIBUTÁRIO (OPERAÇÃO CEVADA). INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS DO PACIENTE INTERCEPTAÇÕES DESAUTORIZADAS, NAQUELES AUTOS, POR FALTA DE CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE (LANÇAMENTO DEFINITIVO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO). CONTAMINAÇÃO DAS PROVAS. FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. INEXISTÊNCIA. DESNECESSIDADE DE MANDADO JUDICIAL. CRIME PERMANENTE. ESTADO DE FLAGRÂNCIA. ART. 5, XI, DA CF. PRECENTES DO STJ. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE LESÃO AO BEM JURÍDICO PROTEGIDO PELA NORMA PENAL DE PROTEÇÃO À FAUNA. ORDEM CONCEDIDA, PARA TRANCAR O INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO CONTRA O PACIENTE. 1. No HC 57.624/RJ, relatado pelo Ministro Paulo Medina (DJU 12.03.07), a que faz referência a inicial, restaram cassadas as autorizações judiciais para a quebra do sigilo das comunicações telefônicas do paciente, para o efeito de investigação de crime de sonegação fiscal, porque deferidas antes de configurada a condição objetiva de punibilidade do delito, qual seja, o lançamento definitivo do crédito tributário. Como o que ocorreu, no tocante ao crime ora em apuração, foi o flagrante, realizado no momento de busca e apreensão em sua residência, não vislumbro a ocorrência da contaminação das provas, até porque não está devidamente provado que essa busca resultou daquelas interceptações. 2. Afastam-se as teses de necessidade de mandado judicial ou de existência de violação de domicílio, pois o crime em questão, nas modalidades de guarda ou ter em cativeiro animal silvestre, é de natureza permanente, prolongando-se sua consumação no tempo e, consequentemente, o estado de flagrância, o que permite à autoridade policial adentrar na residência do paciente sem qualquer determinação judicial, ex vi do art. 5º, inciso XI, da Carta Magna. 3. A Lei nº 9.605/98 objetiva concretizar o direito dos cidadãos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e preservado para as futuras gerações, referido no art. 225, caput da Constituição Federal, que, em seu § 1º, inciso VII, dispõe ser dever do Poder Público, para assegurar a efetividade desse direito, proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da Lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade. 4. Dessa forma, para incidir a norma penal incriminadora, é indispensável que a guarda, a manutenção em cativeiro ou em depósito de animais silvestres, possa, efetivamente, causar riscos às espécies ou ao ecossistema, o que não se verifica no caso concreto, razão pela qual é plenamente aplicável, à hipótese, o princípio da insignificância penal. 5. A própria lei relativiza a conduta do paciente, quando, no § 2º do art. 29, estabelece o chamado perdão judicial, conferindo ao Juiz o poder de não aplicar a pena no caso de guarda doméstica de espécie silvestre não ameaçada de extinção, como no caso, restando evidente, por conseguinte, a ausência de justa causa para o prosseguimento do Inquérito Policial, pela desnecessidade de movimentar a máquina estatal, com todas as suas implicações conhecidas, para apurar conduta desimportante para o Direito Penal, por não representar ofensa a qualquer bem jurídico tutelado pela Lei Ambiental. 6. Ordem concedida para trancar o Inquérito Policial 2006.83.00.002928-4 instaurado contra o paciente, mas abrangendo única e exclusivamente a apreensão das aves, não se aplicando a quaisquer outros inquéritos ou ações de que o paciente seja participante, em que pese o parecer ministerial em sentido contrário.
(STJ, HC 200602729652, Quinta Turma, Relator Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 05/11/2007)[5]
Não há como se adotar o entendimento jurisprudencial acima exposto aos procedimentos administrativos de apuração de ilícitos ambientais. Isto porque, a autorização da isenção da multa administrativa – em analogia ao disposto na Lei nº 9.605, de 1998 – não prejudicará a imposição, pela autoridade administrativa, da sanção de perdimento do bem ambiental apreendido, pois mantido em desacordo com a legislação ambiental. Tal conclusão se justifica por ser a multa e o perdimento medidas autônomas, independentes, não havendo sequer gradação entre elas. Logo, a não confirmação da pena pecuniária fixada no momento da fiscalização pelo agente ambiental não impedirá a aplicação de outras medidas necessárias à recuperação ambiental, à preservação das espécies e, destaca-se, que impeçam a perpetuação do dano (§ 1º do art. 107 do Decreto nº 6.514, de 2008).
A jurisprudência ao autorizar a permanência de espécies da fauna silvestre ao arrepio da legislação ambiental sobre o tema deixa de considerar a finalidade da norma, que é preservar a biodiversidade e, assim, a sadia qualidade de vida assegurada constitucionalmente, a qual é conquistada também pela função ecológica da fauna, conforme exposto no item 1 desse trabalho. Os tribunais abraçam tal posicionalmente, conforme se extraí da leitura do seguinte acórdão:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE AVES SILVESTRES (ARARA CANINDÉ E TUCANO. FALTA DE AUTORIZAÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO. ARTS. 29, § 1º, III, 70 E 72 DA LEI N. 9.605/98 E ARTS. 2º, IV E 11, § 1º, III, DO DECRETO N. 3.179/99. ASSISTENCIA JUDICIÁRIA. SOBRESTAMENTO DA COBRANÇA DAS VERBAS SUCUMBENCIAIS (LEI Nº 1.060/50, ART. 12).
1.Considerou o juiz “patente o enquadramento da situação narrada na exordial nos ditames da Lei nº 9.605/98. A caracterização da infração ambiental pode ser constatada pelos fatos e documentos expostos nos autos, mormente pela Transação Penal realizada pelo autor no Processo nº 12958/03 que tramitou na 2ª Vara da Comarca de Lagoa Santa/MG (fl. 25). Considerando que a infração foi devidamente constatada e assumida pelo autor, a decisão que porventura anulasse o auto de infração e a apreensão das aves, iria defrontar-se com o acordo feito em juízo. 2. O Auto de Infração foi expedido, em 25/01/2003, com base nos arts. 29, § 1º, III, 70 e 72, da Lei n. 9.605/98; e arts. 2º, IV, e 11, § 1º, III, do Decreto n. 3.179/99, e na Instrução Normativa n. 05/01. 3. O Decreto n. 3.179/99 (vigente à época da expedição do auto de infração), que dispõe sobre a especificação das sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, traz em seu art. 11 a mesma redação do art. 29 da Lei n. 9.605/98, inovando apenas quanto à fixação do valor de R$ 500,00 por animal apreendido para a multa prevista naquela lei. Da mesma forma, o art. 2º do Decreto repete o disposto no art. 72 da citada Lei. 4. Não há como falar que o Autor “não praticou quaisquer das condutas tipificadas na Lei n. 9.605/98”, porquanto o § 1º do art. 29 do dispositivo legal diz que incorre nas penas ali prevista quem “adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito...espécime da fauna silvestre...sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. 5. No caso, a Lei n. 9.605/98, por si só, já seria suficiente para embasar o auto de infração. 6. Afigura-se irrelevante a alegação de que o Autor detinha os animais desde janeiro de 1997, uma vez que a partir da edição daquela lei a guarda dos animais se tornou irregular, por falta da necessária autorização. 7. O auto de infração é ato administrativo que goza de presunção de legalidade e veracidade, a qual somente pode ser afastada mediante prova robusta a cargo do administrado, o que não foi atendido na hipótese. 8. Apelação parcialmente provida, tão somente, para declarar que, tendo a assistência judiciária gratuita sido deferida ao Autor, fica sobrestado o pagamento das verbas sucumbenciais enquanto permanecer a situação de pobreza ou “se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita” (art. 12 da Lei nº 1.060/50). (TRF1, AC 200338000486841, Quinta Turma, Relator Juiz Federal Evaldo de Oliveira Fernandes Filho (conv.), e-DJF1 de 24/09/2010).
Assim, defende-se que, se não razoável o seu retorno do animal ao habitat, mais correto seria não a concessão da guarda doméstica, posto que provisória e excepcional, mas a aplicação de um dos destinos previstos na primeira parte do inciso I, do artigo 107 do Decreto nº 6.514, de 2008, quais sejam: a entrega a jardins zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas.
É possível encontrar decisões nesse sentido, reconhecendo que, mesmo em se tratando de animais em extinção, fica autorizada a sua manutenção em criadouros legalizados se restar comprovada a impossibilidade de reinserção na natureza.
EMENTA: ADMINISTRATIVO - PROCESSUAL CIVIL - APREENSÃO DE ANIMAIS SILVESTRES EM CATIVEIRO. MANDADO DE SEGURANÇA -TRÁFICO INTERNACIONAL DE ANIMAIS - CRIADOURO REGULAR. 1 - Busca e apreensão de animais em situação administrativa de guarda irregular. Indeferimento, pelo Juiz singular, de pedido de devolução dos animais ao criadouro. Mandado de Segurança contra ato do Juiz, para retorno dos animais ao criadouro do impetrante. 2 Duas araras azuis, chamadas Araras Lear, sem documentação porque foram doados ao criadouro conservacionista "Ernani''sJungle". Criadoiro perante o IBAMA e em situação regular. 3 Um criadouro regularmente inscrito no IBAMA não vai ser local de tráfico internacional de animais. 4 Aves raras, em extinção, que se encontram em cativeiro há mais de três ou quatro anos, não podem ser reintroduzidas na natureza, poque serão devoradas e mortas. Esses animais em extinção dependem de criadouros como o do impetrante. No Jardim Zoológico não cabe mais nada, tantas a apreensões que vão para lá. 5 Prejudicado o Agravo Regimental interposto contra a decisão concessiva da liminar. 6 Segurança concedida. (TRF2, MS 1999.02.01.051.173-0, Terceira Turma, Relator Desembargadora Federal Maria Helena Cisne, D.J.U. 28/06/2001)
Ademais, a guarda de animais silvestres em domicílio fomenta a funesta prática do tráfico internacional de animais, o qual já figura no 3º lugar na lista de tráfico, perdendo apenas para o tráfico de armas e de drogas e quer retira cerca de quase 38 milhões de espécimes por ano de nossas matas. Não há dúvidas de que a retirada de animais da natureza contribui sobremaneira para a perda da fauna brasileira e aliado a fatores como o desmatamento desenfreando das florestas e a exploração descontrolada de nossos recursos naturais, tem-se um quadro preocupante. Corroborando com tal argumento, decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
EMENTA: AMBIENTAL. APREENSÃO DE PÁSSAROS. IRREGULARIDADE DAS ANILHAS. . A previsão legal de constituir crime ambiental e infração administrativa ambiental (art. 29, § 1º, III, da Lei nº 9.605/98 e o art. 11, § 1º, III, do Decreto nº 3.179/99, respectivamente) a guarda de animal silvestre sem autorização do IBAMA visa, principalmente, a coibir o comércio ilegal das espécies oriundas da fauna silvestre, mais conhecido como tráfico de animais. Uma forma de conter o comércio ilegal de animais silvestres e, consequentemente, garantir a proteção da fauna, se dá por meio de aposição de anilhas que têm diâmetros diferentes que variam de acordo com a espécie em que será colocada, garantindo que só pássaros nascidos em cativeiro é que serão transacionados. Apresentando anilhas com diâmetro acima do tolerado para a espécie, conforme estabelece o Anexo I da Instrução Normativa nº 01/2003 do IBAMA, devem ser apreendidos os exemplares (TRF4, APELREEX 2007.71.10.006939-2, Terceira Turma, Relator Nicolau Konkel Júnior, D.E. 14/04/2010)[6].
Logo, não há dúvidas de que a destinação dos animais nos termos da alínea “a” (devolução ao habitat) e “b” (entrega à responsabilidade de técnicos habilitados) do inciso I do art. 107 do Decreto nº 6.514, de 2008, é a queimplementa a proteção disposta no parágrafo quarto, artigo 225 da Constituição Federal por ser mais favorável à proteção e preservação da biodiversidade. Garante-se também a observância e aplicação da legislação protetora da fauna, inibindo, por fim, a prática ilegal da retirada da natureza e guarda sem prévia licença das autoridades ambientais.