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Delimitação do objeto da ciência do direito, de John Austin - tradução

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10/08/2013 às 07:50
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Distinção entre leis ou regras e comandos que são ocasionais ou particulares.

Os comandos são de duas espécies. Alguns são leis ou regras. Os outros não adquiriram um nome apropriado, nem a língua proporciona uma expressão que possa designá-los brevemente e com precisão. Devo, portanto, denotá-los, tanto como posso, pelo ambíguo e inexpressivo nome “comandos ocasionais[12] ou particulares.”

Como o termo leis ou regras é frequentemente aplicado a comandos ocasionais ou particulares, torna-se dificilmente possível traçar uma linha de separação que corresponderá, em todos os aspectos, às formas estabelecidas da linguagem. Mas a distinção entre leis e comandos específicos, pode, penso eu, ser indicada da maneira que se segue.

Por todo comando, a parte a quem ele é dirigido é obrigada a fazer algo ou a se abster de algo.

Quando obriga genericamente a atos ou abstenções de uma classe, um comando é uma lei ou regra. Mas quando obriga a um ato ou uma abstenção específica, ou a atos ou abstenções que ele determina especificamente ou individualmente, um comando é ocasional ou particular. Em outras palavras, uma classe ou um tipo de atos é estabelecido por uma lei ou regra, e atos dessa classe ou tipo são prescritos ou proibidos genericamente. Mas quando um comando é ocasional ou particular, o ato ou atos, que o comando impõe ou proíbe, são fixados ou determinados por sua natureza específica ou individual, bem como pela classe ou tipo ao qual pertencem.

A afirmação que tenho agora dada em expressões abstratas, me empenharei a ilustrar com exemplos apropriados.

Se você ordena seu criado a cumprir uma dada missão, ou a não sair de sua casa em uma dada noite, ou a levantar a uma certa hora em uma manhã, ou a levantar a essa hora durante a próxima semana ou mês, o comando é ocasional ou particular. Porque o ato ou atos impostos ou proibidos, são especificamente determinados ou fixados.

Mas se você comandá-lo simplesmente levantar àquela hora, ou levantar àquela hora sempre, ou levantar àquela até novas ordens, pode-se dizer, com propriedade, que você estabeleceu uma regra para a orientação da conduta de seu criado. Porque nenhum ato específico é fixado pelo comando, mas o comando o obriga genericamente a praticar atos de uma determinada classe.

Se um regimento é ordenado a atacar ou defender um lugar, ou a reprimir um motim, ou a marchar de seus atuais quartéis para outro ponto, o comando é ocasional ou particular. Mas uma ordem para exercitar-se diariamente até que novas ordens sejam dadas, seria chamada de uma ordem genérica, e poderia ser chamada de uma regra.

Se o Parlamento proibiu simplesmente a exportação de milho, seja por um dado período ou indefinidamente, isso estabeleceria uma lei ou regra: uma espécie ou tipo de atos são delimitados pelo comando, e atos dessa espécie ou tipo são genericamente proibidos. Mas uma ordem emitida pelo Parlamento para fazer frente a uma escassez iminente, e embargando a exportação do milho então embarcado e em porto, não seria uma lei ou regra, embora emitida pela legislatura soberana. A ordem relativa exclusivamente a uma quantidade especificada de milho, os atos negativos ou abstenções, impostos pelo comando, seriam especificamente ou individualmente determinados pela natureza determinada de seu objeto.

Devido a ser emitida por uma legislatura soberana, e devido a usar a forma de uma lei, a ordem que agora imaginei provavelmente seria chamada de lei. E daí a dificuldade de se traçar uma fronteira nítida entre leis e comandos ocasionais.

Novamente: um ato que não é um delito, de acordo com a legislação em vigor, leva o soberano ao desagrado e, embora os autores do ato sejam legalmente inocentes ou não delituosos, o soberano determina que eles devem ser punidos. Por impor uma punição específica, nesse caso específico, e por não impor genericamente atos ou abstenções de uma classe, a ordem proferida pelo soberano não é uma lei ou regra.

Se tal ordem seria chamada de lei, parece depender de circunstâncias que são puramente irrelevantes: irrelevantes, quero dizer, no que diz respeito ao presente propósito, embora relevantes no que diz respeito a outros. Se for feita por uma assembléia soberana, deliberadamente, e com as formas de legislação, ela provavelmente seria chamada de lei. Se proferida por um monarca absoluto, sem deliberação ou cerimônia, ela dificilmente seria confundida com atos de legislação, e seria qualificada como um comando de arbítrio. No entanto, em nenhum dessas hipóteses, a sua natureza seria a mesma. Ela não seria uma lei ou regra, mas um comando ocasional ou particular do Soberano ou do Grupo Soberano.[13]

Para concluir com um exemplo que melhor ilustra a distinção, e que mostra a importância da distinção mais conspicuamente, as ordens judiciais são comumente ocasionais ou especiais, embora os comandos, os quais elas tencionam impor, sejam comumente leis ou regras.

Por exemplo, o legislador comanda que os ladrões devem ser enforcados. Sendo dados um roubo específico e um ladrão especificado, o juiz ordena que o ladrão deve ser enforcado, de acordo com o comando do legislador.

Ocorre que o legislador determina uma classe ou tipo de atos; proíbe atos dessa classe, genérica e indefinidamente; e comanda, com semelhante generalidade, que a punição deve se seguir à transgressão. O comando do legislador é, portanto, uma lei ou regra. Mas a ordem do juiz é ocasional ou particular. Porque ele ordena uma punição específica, como consequência de um delito específico.

De acordo com a linha de separação que tentei traçar, uma lei e um comando particular são distintos desse modo: atos ou abstenções de uma classe, são impostos genericamente pela primeira; atos determinados especificamente, são impostos ou proibidos pelo segundo.

Uma diferente linha de separação foi desenhada por Blackstone e outros. Segundo eles, uma lei e um comando especial são distinguidos da seguinte maneira: a lei obriga genericamente os membros da determinada comunidade, ou uma lei obriga genericamente os indivíduos de uma determinada classe, enquanto um comando especial obriga a uma única pessoa, ou pessoas a quem ele determinar individualmente.

Um momento de reflexão basta para mostrar que leis e comandos particulares não devem ser distinguidos assim.

Primeiro, comandos que obrigam geralmente os membros de dada comunidade, ou comandos que obrigam geralmente pessoas de determinadas classes, nem sempre são leis ou regras.

Por exemplo, uma ordem de luto geral, ou uma ordem de jejum geral, é proferida por um soberano, ou por uma assembleia soberana, na ocasião de uma calamidade pública. Embora dirigida à comunidade em geral, a ordem dificilmente poderia ser uma regra, na acepção comum do termo. Pois, embora obrigue genericamente os membros de toda a comunidade, obriga a atos que  determina especificamente, ao invés de obrigar genericamente a atos ou abstenções de uma classe. Se o soberano ordena que a roupa de seus súditos deve ser preta, seu comando equivale a uma lei. Mas se ele lhes ordena que usem roupa preta em uma ocasião específica, o seu comando é meramente particular.

E, segundo, um comando que obriga exclusivamente pessoas individualmente determinadas, pode equivaler, não obstante, a uma lei ou regra. Por exemplo, um pai pode definir uma regra para o seu filho ou filhos; um tutor, para o seu tutelado: um senhor, para seu escravo ou servo. E algumas das leis de Deus eram obrigatórias para o primeiro homem, como são obrigatórias atualmente para os milhões por ele gerados.

A maioria, na verdade, das leis que são estabelecidas por superiores políticos, ou a maioria das leis que são simples e estritamente assim chamadas, obrigam genericamente os membros da comunidade política, ou obrigam genericamente as pessoas de uma classe. Criar um sistema de direitos para cada indivíduo da comunidade seria simplesmente impossível, e, se fosse possível, seria inteiramente inútil. A maioria das leis estabelecidas por superiores políticos, são, portanto, dotadas de generalidade de duas maneiras: ao impor ou proibir genericamente atos de determinada espécies ou tipo; e ao obrigar toda a comunidade, ou, pelo menos, classes inteiras de seus membros.

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Mas se supusermos que o Parlamento crie e conceda um mandato, obrigando o mandatário a prestar serviços especificamente discriminados, imaginaremos uma lei estabelecida por superiores políticos, mas obrigando exclusivamente uma pessoa específica ou determinada.

Leis estabelecidas por superiores políticos, e obrigando exclusivamente pessoas específicas ou determinadas, são denominadas, na linguagem dos juristas romanos, privilegia. Esse é, na verdade, um nome que dificilmente as designaria com clareza, porque, como a maioria dos principais termos nos atuais sistemas jurídicos, não é o nome de uma determinada classe de objetos, mas de um amontoado de objetos heterogêneos.[14]


A definição de uma lei ou regra, propriamente dita.

Depreende-se das premissas anteriores que uma lei, propriamente dita, pode ser definida da seguinte que se segue.

Uma lei é um comando que obriga uma pessoa ou pessoas.

Mas, contraposta ou em oposição a um comando determinado ou ocasional, a lei é um comando que obriga pessoa ou pessoas, e obriga com generalidade a atos ou abstenções de uma dada classe.

Em linguagem mais popular, mas menos distinta e precisa, a lei é um comando que obriga uma pessoa ou pessoas a um determinado curso de conduta.


REFERÊNCIAS

AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. 2. ed.  Londres: John Murray, 1906. Disponível em: <http://www.archive.org/stream/austinianthe oryo00austuoft#page/n5/mode/2u>. Acesso em: 30 jan. 2013.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. 1. ed. São Paulo: Ícone, 1995.

HART, Herbert L. A. Introdução a The province of jurisprudence determined, de John Austin. 1. ed. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1954, p. VII-XXI, apud ENCICLOPÉDIA Stanford de filosofia. Palo Alto: Universidade de Stanford, 2010, tradução nossa. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/austin-john/>. Acesso em: 29 jan. 2013.

PALEY, William. The Works of William Paley. 1. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1828.

TACITUS, C. Cornelius. History. 1. ed. Hartford: O. D. Cook & Co., 1826.


Notas

[1] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. 1. ed. São Paulo: Ícone, 1995, p. 47.

[2] HART, Herbert L. A. Introdução a The province of jurisprudence determined, de John Austin. 1. ed. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1954, p. VII-XXI, apud ENCICLOPÉDIA Stanford de filosofia. Palo Alto: Universidade de Stanford, 2010, tradução nossa. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/austin-john/>. Acesso em: 29 jan. 2013.

[3] No original, Jurisprudence (N. do T.).

[4] Originalmente, law, termo que significa, ao mesmo tempo, “direito” e “lei” (N. do T.).

[5] Intitulado “Palestras de Ciência do Direito”, ou “Filosofia do Direito Positivo”, do qual “Delimitação do Objeto da Ciência do Direito” (The Province of Jurisprudence Determined) constitui a primeira parte (N. do T.).

[6] Na fonte, law (N. do T.).

[7] Daí a expressão “direito positivo”, alheia ao positivismo de Comte (N. do T.).

[8] “Pedidos eram, mas tais que contradizê-los não era possível”. O trecho está em Histórias, Livro IV, XLVI (N. do T.).

[9] Domiciano (N. do T.).

[10] Originalmente, “enforcement of obedience” (N. do T.).

[11] William Paley (1743-1805), célebre filósofo e teólogo britânico, acreditava que “Para uma obrigação ser perfeita ou imperfeita, o que determina é apenas se a violência pode ou não pode ser empregada para impô-la, e nada mais o determina” (Filosofia Moral e Política, Livro II, Capítulo X, N. do T.).

[12] Ou seja, que dizem respeito a uma ocasião específica (N. do T.).

[13] No original, “sovereign One or Number” (N. do T.).

[14] Quando um privilegium meramente impõe um dever, exclusivamente obriga uma determinada pessoa ou pessoas. Mas quando um privilegium confere um direito, e o direito conferido vale contra todos, a lei é um privilegium vista de um certo aspecto, mas também é uma lei geral, vista de outro aspecto. Em relação ao direito conferido, a lei exclusivamente considera uma pessoa determinada e, portanto, é privilegium. Em relação ao dever imposto, correspondente ao direito conferido, a lei considera genericamente os membros de toda a comunidade. Isto explicarei particularmente, num ponto subsequente do meu Curso, ao abordar a natureza peculiar do assim chamado privilegia, ou das assim chamadas leis privadas.


Abstract: This work consists of the translation of a part of the main work of John Austin, “The Province of Jurisprudence Determined” in which were laid the foundations of modern legal positivism.

Keywords: John Austin. Legal Positivism. General Theory of Law. Philosophy of Law.

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Sobre o autor
Carlos Romeu Salles Corrêa

Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2008), tendo iniciado o curso na Universidade Federal de Alagoas e passado também pela Universidade Federal da Bahia, por meio do Programa de Mobilidade Acadêmica. Especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Mestrando em Direito do Trabalho na Universidade Federal da Bahia. Atua na assessoria de Gabinete de Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Tem experiência na área de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Carlos Romeu Salles. Delimitação do objeto da ciência do direito, de John Austin - tradução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3692, 10 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23953. Acesso em: 26 abr. 2024.

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