3. A instrumentalidade qualificada do Processo cautelar
3.1. A instrumentalidade como caráter típico dos procedimentos cautelares
Importante característica do processo cautelar apontada por Piero Calamandrei, em sua obra “Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares”, reside na instrumentalidade qualificada ou hipotética.
Para citado autor, a nota peculiar a esta espécie de processo traduz-se na consideração de que o processo cautelar não é um fim em si mesmo, mas sim predisposição para emanação de um ulterior procedimento definitivo, do qual este, preventivamente, assegura o proveito prático.
O processo cautelar nasceria, em verdade, a serviço de um procedimento definitivo, tendo por fito “predispor o terreno e preparar os meios mais adequados para o seu êxito.”[22]
Sendo assim, referida relação de instrumentalidade, que liga cada procedimento cautelar ao procedimento definitivo em função do qual este é emanado, seria o caráter que mais claramente distingue o procedimento cautelar da denominada declaração com dominante função executiva.
Até porque o processo cautelar nasce na espera de que um sucessivo procedimento definitivo, na falta do qual estará fadado a desaparecer, ante a ausência de uma finalidade.
Por tal razão, possível se faz dizer que há nos processos cautelares mais do que o objetivo de mera aplicação do direito, já que sua finalidade imediata consiste em assegurar a eficácia do procedimento definitivo que servirá, por seu turno, para exercer o direito.
Neste sentido é a lição de Piero Calamandrei[23]:
Se todos os procedimentos jurisdicionais são um instrumento de direito substancial que, através destes, se cumpre, nos procedimentos cautelares verifica-se uma instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada, por assim dizer, ao quadrado: estes são de fato, infalivelmente, um meio predisposto para o melhor resultado do procedimento definitivo, que por sua vez é um meio para a aplicação do direito; são portanto, em relação à finalidade última da função jurisdicional, instrumentos do instrumento.
Não é por outra razão que se diz que a atividade ínsita ao processo cautelar é puramente instrumental do escopo geral da jurisdição, apresentando-se como remédio destinado apenas a assegurar ou garantir o eficaz e vantajoso resultado do desígnio último da jurisdição, a realizar por intermédio dos processos de conhecimento ou de execução.
Assim, tanto o processo principal quanto o processo cautelar existem para atuar sobre a mesma lide, porém diferem quanto ao seu escopo, já que o “processo acautelatório serve para garantir o bom resultado do processo definitivo, ao passo que este serve imediatamente à composição da lide.”[24]
Enquanto o processo principal serve à tutela do direito, o processo cautelar serve à tutela do processo. Justo por não fazer atuar o direito, contenta-se este último em proteger o simples interesse da parte. Parafraseando Calamandrei, contribui o processo cautelar mais do que fazer justiça, para garantir o eficaz funcionamento da justiça.[25]
Não são, destarte, medidas satisfativas, já que seu fim direto e imediato não se traduz na satisfação do direito substancial da parte, mas apenas tem por escopo servir de forma imediata ao processo principal, garantido, assim, seu resultado prático. Ante tal afirmativa, a função cautelar tem por finalidade servir ao interesse público na defesa do instrumento criado pelo Estado para compor lides, uma vez que objetiva a tutela do processo.
Theodoro Júnior, manifestando-se acerca deste caráter instrumental do processo cautelar assevera que a relação instrumental existente entre o processo cautelar e o processo principal é a mesma que existe entre o processo em geral e o direito material, ou entre o processo de cognição e o processo de execução. Um serviria, então, à realização do outro, mas inexistiria dependência entre ambos.[26]
O processo cautelar seria, assim, “instrumento do instrumento”, já que se apresenta como instrumento de realização de outro processo, sendo este, por sua vez, instrumento de atuação do direito substancial. Ao revés do que ocorre com os dois outros tipos de processo (o cognitivo e o de execução), o processo cautelar não satisfaz o direito material afirmado pela parte, tão somente garante que possa ele ser realizado em momento posterior, permitindo, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional mediata.[27]
Como já analisado anteriormente, o processo cautelar se une a outro processo, chamado principal, cuja efetividade tem por fim assegurar. O processo cautelar, então, tem um caráter instrumental em relação ao processo principal.
É certo dizer que todo processo é instrumental, eis que se trata de instrumento de que se vale o Estado para atingir os escopos jurídico, sociais e políticos do processo, bem como por ser instrumento da realização da vontade concreta do direito objetivo.[28]
Alexandre Câmara em poucas palavras resume esta importante característica, ora analisada, afirmando[29]:
É preciso ter claro o seguinte: enquanto o processo principal é instrumento de realização do direito material, o processo cautelar é instrumento de realização do processo principal. Por isto, aliás, já se disse que o processo cautelar é instrumento do instrumento.
Cabe ao juiz apreciar a pretensão de concessão da medida, verificando se é provável a existência do direito material afirmado pelo autor. Assim, o magistrado só concederá a medida para a hipótese de, no processo principal, ser deferida a medida satisfativa do direito objetivo. Justamente ante o fato de ser concedida na hipótese de o autor sagrar-se vencedor no processo principal é que se afirma que o processo cautelar caracteriza-se por sua instrumentalidade hipotética ou mesmo qualificada.
Neste sentido, informa Barbosa Moreira[30]:
Por que hipotética? Porque a medida cautelar é concedida para a hipótese de que aquele que a pleiteia eventualmente tenha razão; isto é, o juiz diante de um requerimento de providência cautelar, admite a premissa de que o desfecho do pleito principal possa revelar a existência efetiva do direito afirmado pelo requerente.
Adroaldo Furtado Fabrício, por seu turno, anota que muito embora se costume dizer que o processo cautelar é duplamente instrumental, ou “instrumental ao quadrado”, por ser instrumento de outro instrumento (processo principal), essa realidade não é suficiente, por si, para identificar a função cautelar.[31]
Por fim, revela a instrumentalidade hipotética relevante característica para definição do processo, ao lado das outras anteriormente mencionadas.
CONCLUSÃO
O presente trabalho pretendeu abordar a Instrumentalidade qualificada ou hipotética do processo cautelar, assim como suas demais características e conceituação.
De tudo o que se escreveu pôde-se concluir que através do processo cautelar é possível deduzir, no direito brasileiro, uma pretensão à segurança e que, embora reversível, já que não satisfativa e temporária, assegura mediante cognição sumária, por meio da verificação da verossimilhança do direito afirmado e da existência de uma situação de perigo, uma tutela de proteção, que perdura enquanto persistir o estado perigoso de coisas que a condiciona.
Com referência à aludida instrumentalidade qualificada ou hipotética do processo cautelar, refere-se ela ao fato de ser o processo cautelar “instrumento do instrumento”, que tem por intento a proteção do processo principal, que poderá ser de cognição ou de execução.
Conclui-se afirmando que o processo cautelar é respeitável meio para assegurar posições jurídicas de vantagem que dificilmente seriam obtidas através das formas clássicas de tutela, donde se infere a importância de seu estudo na atualidade.
BIBLIOGRAFIA
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002.
Notas
[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 34.
[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. V. I. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 145.
[3] Idem.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel apud CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 220.
[5] MOREIRA, José Carlos Barbosa apud CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 221.
[6] HOFF, Luiz Alberto. Reflexões em torno do Processo Cautelar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 7.
[7] Por todos, ver Luiz Alberto Hoff, em sua obra citada ao longo do texto.
[8] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil. v. 3. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 118.
[9] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 50.
[10] Ibidem. p. 51.
[11] Idem.
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 49/50.
[13] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil. v. 3. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 17.
[14] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 75.
[15] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 103.
[16] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil. v. 3. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 65.
[17] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. III. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris , 2003. p. 29.
[18] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. III. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 27.
[19] LACERDA, Galeno apud CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. III. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 28.
[20] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 50.
[21] CARNELUTTI, Francesco apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 68.
[22] CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Campinas: Servanda, 2000. p. 41.
[23] CALAMANDREI, Piero. Op. cit. p. 42.
[24] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 71.
[25] CALAMANDREI apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 72
[26] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 20. ed. São Paulo: Leud, 2002. p. 102.
[27] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. III. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 4.
[28] Ibidem. p. 22.
[29] Idem.
[30] MOREIRA, José Carlos Barbosa apud CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. III. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 22.
[31] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ensaios de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 197.