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A prática jurídica e os núcleos de prática dos cursos de Direito.

Uma visão menos dicotômica das atividades de estágio

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  4   O PAPEL DA prática jurídicA PROFISSIONAL E A NOVA LEI DE ESTÁGIO

Como visto, a legislação nacional admite dois tipos de prática jurídica: a acadêmica e a profissional.[57] A primeira, conforme demonstrado no tópico anterior, é pertinente àquela praticada obrigatoriamente nos cursos de direito, sob a supervisão acadêmica da instituição educacional, como atividade curricular e sob a denominação de Estágio Supervisionado. A segunda é a exercitada pelo interessado, mesmo depois de já formado, como elemento de capacitação técnica, ou para iniciar sua inserção no mercado de trabalho, conforme definido no artigo 9º §§ 1º e 4º da Lei 8.906/94, Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, in verbis:

Art. 9º Para inscrição como estagiário é necessário:

§ 1º O estágio profissional de advocacia, com duração de dois anos, realizado nos últimos anos do curso jurídico, pode ser mantido pelas respectivas instituições de ensino superior pelos Conselhos da OAB, ou por setores, órgãos jurídicos e escritórios de advocacia credenciados pela OAB, sendo obrigatório o estudo deste Estatuto e do Código de Ética e Disciplina.

(...)

§ 4º O estágio profissional poderá ser cumprido por bacharel em Direito que queira se inscrever na Ordem.

No mesmo sentido, em 2008 o legislador fez publicar a denominada “Nova Lei de Estágios”, lei nº 11.788, cujo teor se revela, in verbis:

Art. 1º  Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. 

§ 1º  O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando. 

§ 2º  O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.                                                         

- grifamos -

No cotejo das partes grifadas, tem-se que o legislador educacional enxerga na prática do estágio um processo precipuamente educativo. Quer dizer, não é apenas uma forma racional pragmática, como defendia Peirce, nem uma forma modulada de experimentação científica, como pensava Bacon; é, na realidade, um processo cognitivo que se dá pela compreensão das teorias no ambiente real da percepção. Daí a nova lei enfatizar: “é ato educativo (...) desenvolvido no ambiente de trabalho.

Por tal razão, a nova lei segue atribuindo à instituição educacional a responsabilidade pelo referido “ambiente de trabalho”, atribuindo-lhe como missões, o previsto nos artigos 3º e 7º, in verbis:

Art. 3º

(...)

§ 1º  O estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino

 Art. 7º  São obrigações das instituições de ensino, em relação aos estágios de seus educandos: 

I – celebrar termo de compromisso com o educando ou com seu representante ou assistente legal, quando ele for absoluta ou relativamente incapaz, e com a parte concedente, indicando as condições de adequação do estágio à proposta pedagógica do curso, à etapa e modalidade da formação escolar do estudante e ao horário e calendário escolar; 

II – avaliar as instalações da parte concedente do estágio e sua adequação à formação cultural e profissional do educando; 

III – indicar professor orientador, da área a ser desenvolvida no estágio, como responsável pelo acompanhamento e avaliação das atividades do estagiário; 

IV – exigir do educando a apresentação periódica, em prazo não superior a 6 (seis) meses, de relatório das atividades; 

V – zelar pelo cumprimento do termo de compromisso, reorientando o estagiário para outro local em caso de descumprimento de suas normas; 

VI – elaborar normas complementares e instrumentos de avaliação dos estágios de seus educandos; 

VII – comunicar à parte concedente do estágio, no início do período letivo, as datas de realização de avaliações escolares ou acadêmicas.” 

Inequívoca a visão do legislador. Se o estágio faz parte do projeto pedagógico de desenvolvimento do profissional do direito, nada mais natural que esta obrigação se transfira para as instituições de ensino, órgãos dotados de educadores e pedagogos.

Porque, ressalvada opinião em contrário, somente assim a instituição de ensino poderá julgar se os conteúdos teóricos por ela ministrados foram convertidos em prática efetiva.

E, noutro sentido, também caminhou bem o legislador ao diferenciar a prática real da acadêmica, por duas lógicas razões: uma porque os objetivos das atividades se distinguem, entre aprendizado educacional e capacitação profissional, outra porque não deposita nos ombros de quem não pretende enveredar pela vida forense, o dever de exercitar atividades técnicas. Há sempre quem queira se dedicar só ao magistério, ser um teórico ou doutrinador, por exemplo, que não exige vivência com a prática forense, embora também constitua necessário elemento de experiência.

É que a forma como o aprendizado é ministrado ao interessado é diferente nas duas práticas. Apesar de o estágio acadêmico primar pela preparação dos discentes com a utilização de métodos práticos, na essência, são atividades cadenciadas realizadas dentro da universidade, ao longo de semestres, sob a supervisão de um professor orientador que guiará o estagiário pelas veredas da disciplina, avaliando-o com provas que constarão de seu currículo e condicionarão sua diplomação. Por sua vez, a prática profissional reside na experiência direta do estagiário com o dia-a-dia da atividade forense, quase sempre, extramuros da universidade. Não há prova, é verdade, mas também não haverá professor-orientador para reparar suas falhas, nem alentá-lo em suas expectativas; outro professor não haverá, senão a própria vida.     


5.A EC Nº45/2004 E A EXIGÊNCIA DA prática jurídicA COMO CONDIÇÃO DE INGRESSO NA CARREIRA PÚBLICA

A partir de 2004, a experiência profissional foi posta em cheque, porquanto se tornou objeto de discussão nas Cortes superiores. É que a Emenda Constitucional nº 45/2004, que alterou os artigos 93 e 129 da Constituição Federal de 88, passou a determinar que o exercício da Magistratura e dos cargos do Ministério Público deveria preceder de três (3) anos de prática de atividade jurídica. O grande nó foi definir o que é “atividade jurídica”.  

Diz o texto alterado, in verbis:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação;

Art. 129. (...)

(...)

§ 3º O ingresso na carreira do Ministério Público far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.

 - grifo nosso -

A nova exigência, como era de se esperar, causou surpresa em muitos setores da sociedade civil, mas principalmente na classe jurídica, pois pela primeira vez há reconhecimento do Estado de que a observância à experiência de vida e à prática profissional anterior deveria ser, desde sempre, um critério indispensável para se almejar o ingresso na carreira.

São atividades de alta relevância que sugam do concursado não só o conhecimento teórico ou científico, mas também muita maturidade. Juízes e promotores são peças-chaves no tabuleiro de xadrez judiciário. Estão intimamente ligados com a aplicação e fiscalização da lei. Têm a missão de “paladinos da justiça”. Precisam usar de conhecimento adquirido com laboratório experimental, que só a prática pode fornecer. A própria legislação processual pátria faz ressalva de quando o juiz se deparar com a obscuridade da lei, deve se utilizar de sua experiência para decidir questões controversas, in verbis:

Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.

Além do mais, tais profissionais são sujeitos vulneráveis às intempéries do processo, por vezes pressionados pelas partes e seus advogados, por vezes aviltados pela imprensa, em casos rumorosos, ou ainda, ameaçados e coagidos.[58] Mas o que deve ser entendido como atividade jurídica? Nossas Cortes superiores (STF e STJ) criaram dissídio jurisprudencial sobre o assunto.

Em 08 de agosto de 2005, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, que foi tombada sob o nº 3.460/0, visando atacar a redação do artigo 7º da Resolução nº 35/2002, com redação dada pelo artigo 1º da Resolução nº 55/2004, ambas do Conselho Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, cujo teor encerrava, in literis:

Art. 7º - Poderão inscrever-se, no concurso público, bacharéis em Direito com, no mínimo, três anos de atividade jurídica (art. 129 § 3º da CF) e comprovada idoneidade moral.

Parágrafo único. A atividade jurídica verificada no momento da inscrição definitiva deverá ser demonstrada, juntamente com os demais documentos, indicados no art. 11 (...)

O objetivo era obter a declaração de inconstitucionalidade de dois dispositivos: “três anos de atividade jurídica” e “verificada no momento da inscrição”, que segundo a autora da ação feria de morte o artigo 37 da Constituição Federal, que prevê o “livre acesso aos cargos públicos”, além de considerar que o texto restringia de forma diversa o que disciplina o parágrafo terceiro, do artigo 123, da Carta Magna.

A celeuma ganhou volume no meio jurídico, nos bancos acadêmicos e na mídia. Os termos eram de fato obtusos. Aparentemente não havia dúvida quanto à redação, mas sim quanto ao conceito dos termos que empregava. Hugo Nigro Mazilli,[59] por exemplo, chegou a publicar artigo propondo a seguinte discussão: três anos de prática são contados da data da formatura, ou podem incluir as atividades de estágio já realizadas anteriormente? E num brilhante jogo de palavras o doutrinador suscitou:

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Quando a emenda passa a exigir do ‘bacharel em Direito’ os três anos de atividade jurídica, não está dizendo que ele há de ter três anos de atividade jurídica enquanto bacharel em Direito, e, sim, que ele precisa ser um bacharel em Direito com três anos de experiência jurídica.

A ideia do professor, dessume-se, é a de que o bacharel que pretender concorrer, logo que se formar, ao cargo de juiz ou promotor, deve comprovar ter três anos de prática jurídica, e, não, ter que se diplomar e exercer três anos de atividade jurídica para, aí sim, poder concorrer ao cargo público.

A dúvida reside, exatamente, no fato de a terminologia “atividade jurídica” não ter sido esclarecida pelo legislador constituinte derivado. Se observarmos o que dissemos alhures, sobre prática profissional, veremos que tanto o Estatuto da OAB, quanto a Resolução nº 9/2004 do MEC, definem a existência de uma prática profissional antes do acadêmico de Direito se formar, permitindo que pratique atos próprios da atividade jurídica, tais como, firmar petições, realizar audiências e participar de júris.

Mazilli, ainda no mesmo texto[60], diz que o Superior Tribunal de Justiça - STJ, em diversas ocasiões, enfrentou a questão dando uma interpretação mais ampla ao que denominava de “atividade forense” e citou os julgados RMS nº 450.936/RS, REsp nº 399.345/RS e MS nº 6.867/DF como exemplos desse entendimento. Na oportunidade, destacamos mais um, in verbis:

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PRÁTICA FORENSE. CONCEITO. INTERPRETAÇÃO ABRANGENTE. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que, para provimento de cargos públicos mediante concurso, o conceito de "prática forense" deve ser compreendido em um sentido mais amplo, não comportando apenas as atividades privativas de bacharel em direito, mas todas aquelas de natureza eminentemente jurídica, a compreender as atividades desenvolvidas perante os Tribunais, os Juízos de primeira instância e até estágios nas faculdades de Direito, doadoras de experiência jurídica 2. Recurso especial conhecido e improvido. (RESP 545286/AL, DJ 21.06.2004, Rel. Min. Felix Fischer)    

- grifo nosso -

Entretanto, a visão externada pelos eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, ao apreciarem o teor da ADin em tela, caminhou em sentido totalmente oposto. O julgamento se deu em 31 de agosto de 2006 e foi publicado no D.J.U. em 01 de setembro daquele ano, com o seguinte teor, in verbis:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 7º, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA RESOLUÇÃO Nº 35/2002, COM A REDAÇÃO DADA PELO ART. 1º DA RESOLUÇÃO Nº 55/2004, DO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 1. A norma impugnada veio atender ao objetivo da Emenda Constitucional 45/2004 de recrutar, com mais rígidos critérios de seletividade técnico-profissional, os pretendentes à carreira ministerial pública. 2. Os três anos de atividade jurídica contam-se da data da conclusão do curso de Direito e o fraseado “atividade jurídica” é significante de atividade para cujo desempenho se faz imprescindível a conclusão de curso de bacharelado em Direito. 3. O momento da comprovação desses requisitos deve ocorrer na data da inscrição no concurso, de molde a promover maior segurança jurídica tanto da sociedade quanto dos candidatos.               4. Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação, vencidos os Senhores Ministros Eros Grau, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence, que a julgavam procedente, e o Senhor Ministro Carlos Britto (Relator), que a julgava procedente em parte. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Plenário, 31.08.2006.

- grifamos -  

A decisão arrefeceu os ânimos dos que defendiam a prática acadêmica ou profissional, como suficientes para validar o ingresso na carreira pública. Mas, pode-se facilmente perceber que não foi decisão unânime, ao contrário, quase dividiu o pleno daquela egrégia Corte, tendo sido vencidos alguns nomes de peso, como os de Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio de Mello. Mas, importa-nos destacar, por demais destacado pela mídia, o voto do relator do processo, Ministro Carlos Ayres de Brito, pela curiosa forma de interpretar o tempo de prática, ipsis literis:

“Atividade jurídica” (...) é fraseado significante de atividade para cujo desempenho se faz imprescindível a conclusão de bacharelado em Direito. A formal obtenção de conhecimentos que são o próprio núcleo ou a própria grade curricular do curso superior de ciência jurídica. (...) mas averbo que a exigência dos três anos de atividade essencialmente jurídica, após a obtenção do título de bacharel, não quer dizer, necessariamente, o matemático perfazimento de 365 dias ‘vezes’ 3, segundo o calendário que é próprio do ano civil. Bem pode ser interpretado à luz de um peculiar “calendário forense” (...) Quero dizer: o profissional do Direito que fizer a prova de regular atuação em três autonomizados ‘exercícios forenses’ , no mínimo, ficará habilitado a prestar concurso para o cargo (...)  

Vê-se, pois, que para o ministro, o interessado pode ter um processo por ano, num total de três, para que satisfaça a prática exigida na norma constitucional e na resolução atacada. O entendimento do ministro gerou polêmica, porque o calendário forense é semestral, intercalado que é pelos recessos forenses. Assim, por essa perspectiva, se o advogado ajuizasse uma ação no mês de janeiro, outra no mês de setembro e uma última no mês de janeiro do ano seguinte, como corolário, já teria atingido o objetivo da EC nº 45/2004.

Mas, polêmica à parte, a pergunta que precisa ser respondida e que tem sido a mais reiterada nos bancos universitários dos cursos de Direito é: os estágios acadêmico e profissional perderam o sentido? Definitivamente, não!

O estágio acadêmico, conforme exaustivamente defendido, introduz o mundo prático na vida dos discentes, de modo a que vivenciem experiências sensoriais da profissão antes de concluído o curso. Além de uma necessidade é uma imposição da Lei. O estágio profissional, por sua vez, pode ser exercido antes do término do curso, mas também, depois da diplomação de bacharel, independentemente do exame de ordem, o que significa dizer, que o estágio profissional exercido após a formatura satisfaz a exigência do artigo 129 da CF/88. Ademais, é sempre válido lembrar que a exigência é para os que se interessarem por enveredar na carreira pública e, tão somente, por enquanto, para os cargos da Magistratura e do Ministério Público.

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Sobre os autores
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Mirla Mara Bastos Mangueira de Menezes

Bacharelada em Direito, Pedagoga e Advogada especializada em Direito Educacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale ; MENEZES, Mirla Mara Bastos Mangueira. A prática jurídica e os núcleos de prática dos cursos de Direito.: Uma visão menos dicotômica das atividades de estágio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3563, 3 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24083. Acesso em: 19 abr. 2024.

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