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Homicídios decorrentes de embriaguez ao volante de direção de veículo automotor

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04/04/2013 às 08:07

Resumo:


  • Este trabalho analisa a legislação penal sobre crimes de trânsito praticados em estado de embriaguez, considerando entendimentos de tribunais e estudiosos.

  • A penalização de condutores embriagados foi alterada pela Lei nº 12.760/2012, tornando mais rígida a comprovação da embriaguez e as consequências legais.

  • O correto enquadramento penal de motoristas embriagados em acidentes de trânsito é discutido, destacando a importância de responsabilizar adequadamente os infratores.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Há duas incongruências na lei: 1) Se um motorista for pego bêbado numa fiscalização, é mais conveniente que esconda sua condição, evitando que sejam colhidas provas; 2) Se o condutor causar acidente de trânsito com morte, convém que seja provada sua embriaguez, para que evite uma condenação por homicídio doloso.

Resumo: Este trabalho analisa a questão referente ao tratamento da legislação penal dada aos denominados crimes de trânsito, praticados em estado de embriaguez. Examinando o entendimento dos tribunais, assim como o dos autores estudiosos do tema.

Palavras-chave: Embriaguez. Direção. Veículo automotor. Crimes. Trânsito

Sumário: 1 Introdução; 2 A legislação penal; 3 O correto enquadramento penal; 4 Considerações Finais; 5 Referência Bibliográfica; 6 Referência legislativa.


1 INTRODUÇÃO

O Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é composto majoritariamente de uma população urbana (84% da população vive em áreas urbanas)[1]. Já sem vão décadas desde que se iniciou um verdadeiro êxodo das áreas rurais para as concentrações urbanas.

Independentemente de quais foram as causas que levaram a esta aglomeração de pessoas nos centros urbanos, o fato incontestável é que, passou haver a necessidade cada vez maior, de viabilizar a vida dessas pessoas diante deste desordenado crescimento das cidades.

Além de moradia, emprego, diversão e outras necessidades básicas, estas pessoas também precisam se locomover. Diante da insatisfatória infraestrutura de transporte oferecida pelo poder público, ou mesmo por comodismo, os veículos automotores (preponderantemente carros e motocicletas), passaram a ser o meio mais utilizado para o deslocamento por parte daqueles que dispõem recursos financeiros para o custeio destes meios de transporte particulares.

De olho nesta necessidade a ser suprida, as instituições financeiras vêm disponibilizando linhas especiais de crédito para a aquisição destes veículos. E a indústria automotiva (vitaminada com incentivos fiscais estatais para a geração de empregos em época de crise econômica internacional[2]) não mede esforços para desovar seus estoques para este sequioso seguimento de consumo.

Junte-se a isto um contexto no qual a vida cotidiana moderna está cada vez mais complexa e mais acelerada. O que leva inúmeras pessoas a circularem com seus veículos em velocidades elevadas (acima das permitidas) para darem conta de suas inúmeras tarefas, e não raro em estado de completa alienação ao que acontece no seu entorno. Muitas vezes gerado por este estresse de ritmo frenético existencial. Sem contar o mau hábito de muitos brasileiros, de ignorar as normas legais regulamentadoras da prática de certas atividades. Tal qual a de dirigir veículo automotor em via pública falando ao telefone celular, ou em estado de embriaguez.

Para finalizar (e complicar ainda mais), some-se uma legislação deficiente, e tribunais caprichosos, que parecem estar mais focados em filigranas jurídicas, que à realidade cruel gerada por decisões descoladas da realidade.

Pronto. Está montado o palco para a carnificina no trânsito, que passou a ser considerada pelo Ministério da Saúde em novembro de 2011, como uma verdadeira epidemia.[3]

O que se procurará a seguir, é tentar alinhavar quais são alguns dos equívocos legais e judiciais, que vem contribuindo para este estado de guerra não declarado no trânsito.


2 A LEGISLAÇÃO PENAL

Dando sequência a esta análise, passe-se a seguir ao exame da legislação que tipifica como crime a conduta de dirigir veículo automotor em via pública, após a ingestão de bebida alcóolica.

Esta conduta delituosa específica vinha descrita, até dezembro de 2012, no Código Brasileiro de Trânsito (Lei n° 9.503/97), nos seguintes termos:

Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Para a caracterização deste crime, portanto, bastava que o agente/motorista dirigisse em via pública um veículo automotor, e fosse flagrado com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas.

Trata-se, portanto, de um crime de “perigo abstrato”, em relação ao qual a lei presume a existência de uma situação de perigo. Sendo desnecessário (e até defeso) a realização de prova acerca dos eventuais perigos que foram gerados, pelo fato do agente estar conduzindo em via pública um veículo, com a concentração de  álcool por litro de sangue indicada pela lei como proibida. Pois a lei presume a existência de perito, e não admite prova em contrário, tendente a demonstrar uma eventual não caracterização de perigo[4].

E, por mais que existam críticas contra a criação dos denominados crimes de perigo abstrato, o fato é que eles existem para o especial fim de conferir uma proteção maior a certos bem jurídicos de interesse coletivo, que, de outra forma, ficaram expostos e sem uma adequada proteção do sistema jurídico.

Todavia, mesmo diante da clareza do texto legal incriminador dessa conduta, sua aplicação estava seriamente comprometida. Isto porque, na seara penal, prevalece o primado não apenas da legalidade. Mas sim da reserva absoluta da lei, pelo qual somente a lei em sentido estrito pode delinear as condutas delituosas. E, portanto, tudo aquilo que não estiver expressamente consignado no tipo incriminador (ou nele não se encaixar) não poderá ser “inferido” para fins de se realizar um enquadramento penal forçado.[5]

Ainda é absolutamente indispensável que haja a perfeita correlação entre a conduta praticada e a descrição elaborada pelo tipo incriminador. Noutras palavras, é necessário verificar se há “tipicidade” da conduta[6], fazendo-se uma comparação entre a ação concreta que foi realizada pelo acusado, e os dizeres descritivos da norma.

Ocorre que, sabendo desta nuance jurídica (seja por meio da mídia, ou aconselhados por profissionais da área jurídica), muitos motoristas flagrados em completo estado de entorpecimento, recusavam-se a fazer o teste de alcoolemia. Pois estavam cientes de que, se não fosse comprovado mediante exame de sangue ou pelo uso do popular bafômetro (regulamentado pelo Decreto nº 6.488/2008), que estavam com a dosagem de álcool no sangue superior à permitida, não poderiam ser alcançados pela legislação penal.

Escudados, inclusive, na premissa milenar de que “ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo” (nemo tenetur se detegere). Que conta, inclusive, com assento constitucional e sub-constitucional no sistema jurídico brasileiro.

Constituição Federal

Art. 5°. ...

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Código de Processo Penal

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Tal preceito jurídico também é previsto em documentos internacionais, em relação aos quais o Brasil se vinculou, incorporando estas disposições protetivas dos intitulados direitos humanos ao ordenamento jurídico nacional.

No caso, o tratado Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, confeccionado perante a Organização das Nações Unidas (ONU), trazido para o direito interno por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Cujo art. 14, 3, “g” deste tratado, assevera que: “...3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias: ... g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.”

Da mesma forma tem-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), redigido pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Promulgado no Brasil pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Que estabelece semelhante garantia no seu art. 8°, “g”.[7]

Esse entendimento, ademais, encontra ecos de ressonância favorável nas Cortes de Justiça da Nação. Pode ser citado, à guisa de exemplo, o aresto abaixo reproduzido, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:

ROMS 200400378581ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 18017

EMENTA:

RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - EMBRIAGUEZ HABITUAL NO SERVIÇO - COAÇÃO DO SERVIDOR DE PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO, MEDIANTE A COLETA DE SANGUE, NA COMPANHIA DE POLICIAIS MILITARES - PRINCÍPIO DO "NEMO TENETUR SE DETEGERE" - VÍCIO FORMAL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO - CERCEAMENTO DE DEFESA - DIREITO DO SERVIDOR À LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE E, INCLUSIVE, À APOSENTADORIA POR INVALIDEZ - RECURSO PROVIDO. 1. É inconstitucional qualquer decisão contrária ao princípio nemo tenetur se detegere, o que decorre da inteligência do art. 5º,LXIII, da Constituição da República e art. 8º, § 2º, g, do Pacto de São José da Costa Rica. Precedentes. 2. Ocorre vício formal no processo administrativo disciplinar, por cerceamento de defesa, quando o servidor é obrigado a fazer prova contra si mesmo, implicando a possibilidade de invalidação da penalidade aplicada pelo Poder Judiciário, por meio de mandado de segurança. 3. A embriaguez habitual no serviço, ao contrário da embriaguez eventual, trata-se de patologia, associada a distúrbios psicológicos e mentais de que sofre o servidor. 4. O servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vitima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado. 5. Recurso provido. (DJ DATA:02/05/2006 PG:00390)

Tais garantias, não se discute, são indispensáveis num estado democrático de direito. O que se questiona, aqui, é a forma ardilosa e desonesta como são utilizadas por alguns motoristas flagrados em estado de embriaguez pelo álcool.

Não por outra razão o Código de Trânsito Brasileiro veio a ser alterado em 20 de dezembro de 2012, por meio da Lei n° 12.760/2012. Passando o art. 306 a constar com a seguinte redação:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por:

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.

§ 2º A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

§ 3º O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

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Tais mecanismos foram regulamentados pela RESOLUÇÃO n° 432, de 23 de janeiro de 2013, expedida pelo Conselho Nacional de Trânsito (DOU – Seção 1, p. 30, 29/01/2013).

Tornou-se mais severa a repressão penal e administrativa, contra aqueles que ingerem bebidas alcóolicas e conduzem veículos automotores em vias públicas, seja porque flexibilizou os meios probatórios para caracterizar a embriaguez pelo álcool, seja porque proibiu a ingestão de qualquer quantidade de álcool pelo motorista.

Bem assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiência pública no dia 07 de maio de 2012, visando arejar a discussão com diferentes setores da sociedade sobre esta questão. Posto que, o STF foi incumbido de julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4103, manejada pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel). Na qual se pretende ver invalidados comandos insertos na Lei 11.705/2008 (denominada Lei Seca), que trouxe modificações ao Código de Trânsito, e maiores restrições ao consumo de bebidas alcoólicas por motoristas de veículos automotores. Mas que foi objeto de nova modificação, agora por meio da Lei n° 12.760/2012. Que, provavelmente, ainda que por “arrastamento”, também será examinada pelo STF.

Mas, mesmo com este aprimoramento do sistema repressivo, ainda existem algumas situações permissivas, que impedem um maior rigorismo na aplicação dos comandos legais, como a seguir será melhor esclarecido.


3 O CORRETO ENQUADRAMENTO PENAL

Feitas estas considerações, cabe, agora, verificar como deve ser efetivado o enquadramento penal daqueles que são flagrados embriagados na direção de veículo automotor.

A questão é aparentemente simples, mas envolve nuances que podem acarretar tratamentos diferenciados para situações assemelhadas. E mesmo gerar injustiças, ao permitir que homicidas do trânsito escapem praticamente ilesos da jurisdição penal.

Num primeiro cenário, tem-se o agente que é flagrado dirigindo alcoolizado e, voluntariamente, aceita submeter-se aos testes de alcoolemia (bafômetro ou exame de sangue). Se constatado estar com concentração acima da permitida, automaticamente seria enquadrado no art. 306, da Lei n° 9.503/97.

E, se porventura se recusar a fazer os referidos testes, poderá, agora, da mesma forma, ser enquadrado, diante de sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora. De acordo com a nova redação do CTB, art. 306, § 1º, II, combinado com o art. 277.[8]

As contradições e heresias jurídicas, entrementes, estão reservadas para outras situações, dentre as quais se destaca a morte de pessoas vítimas de atropelamentos ou batidas de carros, acarretadas por motoristas embriagados. Neste ponto, o tema se torna nebuloso e, lamentavelmente, vem-se inclinando para uma vertente desfavorável à proteção dos bens jurídicos dos inocentes, que são vitimados por tais motoristas embriagados inconsequentes.

Em tais hipóteses, de homicídio gerado por motorista embriagado, a tipificação penal da conduta poderia ser realizada de duas formas. Ou seja, em tese, tanto seria possível enquadrar o agente como incurso no art. 302 da Lei n° 9.503/97 (homicídio culposo na direção de veículo), que prevê pena privativa de liberdade de dois a quatro anos. Como também no art. 121, combinado com o art. 18, I, segunda parte, do Código Penal (homicídio com dolo eventual – no qual o agente, apesar de não querer efetivamente, assume o risco da ocorrência do resultado, não refreando seu comportamento ante a possibilidade de concretização do evento fatídico)[9], com pena de reclusão de seis a vinte anos, mas podendo chegar até trinta anos, se o homicídio for considerado qualificado (art. 121, §2°).

À toda evidência, a diferença de tratamento é abissal, acarretando consequências mais ou menos severas, dependendo do modo como se opere o enquadramento criminal do agente causador do acidente.

Mas, então, vem a questão: qual seria o enquadramento penal mais correto? Deixar o agente responder por simples crime culposo (art. 302 da Lei n° 9.503/97), ou tratá-lo como um homicida doloso (art. 121, c/c art. 18, I, segunda parte, do Código Penal)?

A linha de raciocínio mais acertada (respeitando entendimentos em contrário), propugna em favor do enquadramento penal do agente na figura do homicídio com dolo eventual. Deveras, prescreve o Código Penal, no seu art. 28, que a embriaguez não exclui a imputação penal. Abrindo, apenas, pequenas brechas nos §§ 1° e 2º, para se eximir da responsabilidade o agente que tenha cometido o fato em estado de embriaguez.[10] Mas que, pelo menos na maioria esmagadora dos casos, não se aplicam ao grande número de delinquentes do trânsito.

Explica-se. O Código Penal adotou, no seu art. 28, II, a intitulada teoria da actio libera in causa (ação livre quando da conduta).[11] Por esta concepção, em casos de embriaguez (por álcool ou substâncias de efeitos análogos), para fins de aferição da responsabilização penal, deve-se levar em consideração não o momento no qual o agente praticou a conduta incriminada (em estado de embriaguez), mas sim o instante precursor ao ingresso do agente neste estado de embriaguez.

Noutros dizeres, é preciso que se verifique se o agente,  quando estava sóbrio, tinha noção de que estava se colocando num estado de embriaguez (ou de provável embriaguez). Se, voluntariamente se colocou nesta condição, ao ter ingerido a substância entorpecedora (tal qual o álcool), deverá responder pelos atos que, posteriormente, vier a praticar. Mesmo que, no ato da conduta, esteja com a consciência turvada, como decorrência dos efeitos da substância inebriante que voluntariamente sorveu.

Logo, aquele que, ilustrativamente, senta-se à mesa de um bar, faz o consumo elevado de bebida alcóolica, depois pega seu carro para ir embora e, no trajeto, vem a atropelar e matar um pedestre que andava pela calçada (devido a ter perdido o controle da direção do seu veículo), deverá ser responsabilizado pela prática de homicídio com dolo eventual.

Ao ter voluntariamente ingerido bebida alcóolica, sabendo que, depois, voltaria para sua casa dirigindo seu veículo neste estado de entorpecimento, assumiu, inequivocamente, o risco de vir a se envolver em algum acidente. Como corolário da sua reduzida capacidade de controlar o veículo, em razão do uso  imoderado de uma droga lícita (pois o álcool é considerado uma droga lícita, de consumo permitido para maiores de dezoito anos de idade).

Ora, aquele que, mesmo sabendo que irá conduzir um veículo automotor em via pública, faz uso de substância alcóolica está, irretorquivelmente, assumindo o risco de produzir um resultado antijurídico. Não se preocupando com os danosos reveses que sua conduta desajustada pode acarretar a bens jurídicos alheios. Revelando, assim, desprezo à salvaguarda de terceiros. O que o torna merecedor de severas reprimendas penais.

Todavia, infelizmente, este não o posicionamento que vem sendo adotado por boa parte das Cortes de Justiça. Do que é elucidativo o aresto recente, abaixo reproduzido, proveniente do Supremo Tribunal Federal (STF). No qual foi sedimentado pela Primeira Turma do STF (por maioria de votos) que, na hipótese do agente bêbado, causar um acidente com seu veículo automotor, ele somente será responsabilizado por dolo eventual, se comprovado que sua embriaguez foi preordenada. Ou seja, que o agente se colocou, adredemente, em estado de embriaguez, para cometer o delito (no caso, de atropelamento de vítimas inocentes, que andavam pela calçada), in verbis:

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.

2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.

3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.

4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.

...

8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP. (DJE 13.10.2011)

Nesta ótica, estampada na decisão acima transcrita, somente seria possível responsabilizar o motorista que atropelou e matou pedestres que estavam andando na calçada, se for comprovado que o motorista, ao ter bebido (embriaguez preordenada) desejava atropelar e matar estes pedestres (mesmo que os desconhecesse e nada tivesse contra eles – sendo o atropelamento destes transeuntes, e não de outros, mero capricho do acaso). Significa que, a menos que haja testemunhas, imagens e sinais acústicos gravados e outras provas congêneres, revelando que o motorista, ao se embriagar, estava tramando a morte de pedestres (qualquer pedestre, que tivesse a desdita de estar na calçada errada no instante em que este motorista bêbado inescrupuloso perdesse o controle do seu carro) por atropelamento tão-logo saísse da mesa do bar, a ele somente se poderá imputar a prática de um crime culposo (sem intenção), por imprudência na condução de seu veículo automotor.

With all due respect (com todo o respeito devido), trata-se de linha de raciocínio defeituosa, e que expõe a perigo, sobremaneira, os bens jurídicos e interesses de terceiros inocentes.

A ironia (às avessas) deste raciocínio é tanta que, chegamos ao auge da incongruência jurídica (unindo o disparate ao absurdo – se fora possível) de termos os seguintes cenários jurídicos:

a)     se o agente for pego bêbado, por uma fiscalização, dirigindo veículo automotor, é mais conveniente (do ponto de vista de sua situação jurídica), que se recuse a fazer o teste de alcoolemia e comporte-se de uma maneira tal que não venha a revelar que está embriagado. Por exemplo, ficando sentado sem conversar com ninguém. Pois, como ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo, e como a lei exige a presença de uma concentração mínima de álcool no sangue para caracterizar o ilícito penal, ou outros meios de aferição como imagens da pessoa visível e irretorquivelmente embriagada, sem estas provas técnicas, o agente não poderá ser responsabilizado penalmente por conduzir veículo em estado de embriaguez.

b)    Do contrário, se agente, bêbado, dirigindo veículo automotor, envolve-se num acidente de trânsito, ceifando a vida de pedestres inocentes, deverá implorar aos policiais que atenderem a ocorrência, para que o deixem realizar o teste de alcoolemia, ou a que registrem (filmando) seu suposto completo estado de embriaguez. Pois, ao se constatar sua embriaguez, de acordo com entendimento (equivocado) acima mencionado, o máximo que receberá será uma imputação pelo homicídio culposo. Posto que, para que pudesse ser enquadrado como incurso no homicídio com dolo eventual, seria imprescindível comprovar que o agente (motorista embriagado), ao ter ingerido bebida alcóolica, desejava ter atropelado e matado algum pedestre (repita-se, qualquer pedestre que estivesse na sua rota errante).

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Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. Homicídios decorrentes de embriaguez ao volante de direção de veículo automotor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3564, 4 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24096. Acesso em: 22 dez. 2024.

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