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A Súmula nº 198 do TFR em face do atual regramento da aposentadoria especial

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09/04/2013 às 09:36
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3 SÚMULA N.º 198 DO TFR: DAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS À SUPERAÇÃO

Depois da Constituição de 1988 e com mais clareza a partir da Lei n.º 9.032/95, a legislação previdenciária alterou de forma substancial o tratamento conferido à aposentadoria especial. Passou-se a permitir o enquadramento de uma atividade como especial somente em razão da efetiva submissão aos agentes arrolados como nocivos, abandonaram-se os conceitos trabalhistas de insalubridade, periculosidade e penosidade e, pela primeira vez, a própria lei de regência trouxe os meios de prova exigíveis para sua concessão.

Diante de tais alterações, era de se esperar releitura da súmula n.º 198 do TFR, na medida em que, por sua imprecisa redação, a interpretação literal tende a gerar conclusões distanciadas tanto do ordenamento jurídico ora vigente como do alcance pretendido com sua edição. Em sentido diverso, porém, o que se viu foi o surgimento de correntes interpretativas pouco críticas, desatentas à falta de contexto do enunciado diante do novo cenário legislativo e que, em verdade, passaram a dar a ele tratamento de norma autônoma, por si só suficiente para a não-observância do novel regramento.

Há necessidade, portanto, de progredir no enfrentamento da matéria, especificamente no que tange à viabilidade de aplicação, na atualidade, do enunciado sumular em questão. É que, por conta de mudanças legislativas, é possível que um precedente seja superado, por tornar-se obsoleto ou inadequado à nova ordem. Supõe-se, assim, que, com o advento da Lei n.º 9.032/95, que passou a exigir a efetiva comprovação da submissão habitual e permanente do trabalhador a agentes nocivos, o entendimento sumulado deixou de se coadunar com o regramento previdenciário atinente à comprovação da atividade especial.

3.1 Regramento do benefício após a Constituição de 1988

Com o advento da Constituição de 1988, a aposentadoria especial sofreu significativa alteração. O status constitucional conferido ao benefício veio acompanhado de mudança em seu conceito, e as noções de insalubridade, penosidade e periculosidade restaram substituídas pela menção a “atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física”, a teor do art. 201, §1º, da CF, em sua redação original.

A matéria foi regulamentada pela Lei n.º 8.213/91, que dispôs, na redação original de seu art. 57, que “a aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta lei, ao segurado que tiver trabalhado durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme a atividade profissional, sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física”. Por sua vez, o art. 58 previa que “a relação de atividades profissionais prejudiciais à saúde ou à integridade física será objeto de lei específica”. Essa lei específica, no entanto, jamais foi editada, e a matéria continuou sendo regulamentada por meio de Decretos do Poder Executivo.

De início, seguiram aplicáveis os róis dos Decretos n.º 53.831/64 e 83.080/79, já que, por força do art. 152 da Lei de Benefícios, a lista constante da legislação então em vigor prevaleceria até que elaborada nova relação de atividades profissionais prejudiciais à saúde ou à integridade física. Também os Decretos n.º 357/91 e 611/92 previram, com idêntica redação, que para efeito de concessão das aposentadorias especiais seriam considerados os Anexos I e II do Decreto n.º 83.080/79 e o Anexo do Decreto n.º 53.831/ 64, até que promulgada lei específica.

Em 28.04.1995, porém, a Lei n.º 9.032 deu nova redação ao art. 57 da Lei n.º 8.213/91, que passou a dispor que “a aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei.” Da legislação de regência, portanto, extirpou-se a referência ao enquadramento por atividade profissional, na medida em que tal locução foi substituída pela expressão “conforme dispuser a lei”. A partir daí, não mais se permitia o enquadramento de tempo de serviço como especial simplesmente por pertencer o segurado a determinada categoria profissional, à exceção daquele que implementou os requisitos necessários ao deferimento de aposentadoria especial em conformidade com a legislação anterior, ou seja, com base na atividade profissional, os quais, como bem advertem Rocha e Jr. (2007, p. 268), não foram nem poderiam ser prejudicados pela nova disciplina do benefício.

A intenção do legislador consistiu na restrição do benefício de aposentadoria especial a direito individual, e não mais de determinados grupos ou profissões. Abandonando a técnica de presunção absoluta, a lei passou a exigir que cada segurado comprovasse sua efetiva exposição a condições especiais prejudiciais à saúde ou à integridade física (DUARTE, 2007, p. 213). Por isso, a mesma Lei n.º 9.032/95, alterando os §§3º e 4º do art. 57 da Lei de Benefícios, atribuiu ao segurado, para a concessão do benefício, o ônus de demonstrar a real exposição aos agentes nocivos, químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes, perante o Instituto Nacional do Seguro Social.

Na seqüência, a Medida Provisória n.º 1.523, de 11.10.1996, trouxe duas outras inovações, ambas complementares à nova redação do caput do art. 57 da Lei de Benefícios. A primeira delas, explicitada nos quatro parágrafos inseridos no artigo 58, disse com a especificação da forma de comprovação da efetiva exposição do segurado aos agentes nocivos. No ponto, a Medida Provisória previu que tal prova se faria mediante formulário, na forma estabelecida pelo Instituto Nacional do Seguro Social, o qual, a seu turno, deveria ser emitido pela empresa ou seu preposto, com base em laudo técnico de condições ambientais de trabalho expedido por profissional habilitado. Como salientam Rocha e Baltazar Jr. (2007, p. 268), “o legislador não quis deixar qualquer dúvida quanto à necessidade de demonstração das condições especiais, impedindo que o simples exercício de uma determinada profissão - onde se presumia que determinada categoria estaria submetida a agentes insalutíferos - pudesse permitir o direito à prestação”. O diploma fixou, ainda, a obrigatoriedade de as empresas manterem laudo técnico atualizado, sob pena de multa, e de elaborarem e manterem perfil profissiográfico[6] abrangendo as atividades desenvolvidas por seus trabalhadores (CASTRO e LAZZARI, 2007, p. 641).

A segunda inovação consistiu na remissão da definição dos agentes nocivos ou prejudiciais à saúde ou integridade física ao Poder Executivo. Por meio de nova redação do caput do art. 58 da Lei de Benefícios, suprimiu-se a exigência de lei, delegando ao Poder Executivo a atribuição de fixar os agentes agressivos.

A transferência da competência à esfera do Poder Executivo via medida provisória teve sua constitucionalidade questionada por meio da ADI n.º 1885-DF, uma vez que o art. 202, II, da CF, em sua redação original, previa a aposentadoria em tempo inferior “se sujeitos a trabalho sob condições especiais, que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidas em lei”. O julgamento da medida cautelar, entretanto, não chegou a ser concluído, já que, com o advento da EC n.º 20/98, a matéria foi tratada de forma diversa no art. 201, §2º, da CF, que passou a exigir a edição de lei complementar, o que levou o Supremo Tribunal a acolher questão de ordem para o efeito de julgar prejudicada a ação direta.[7]

A MP n.º 1523/96 foi sucessivamente reeditada até ser convertida na Lei n.º 9.528/97, que revogou também o art. 152 da Lei n.º 8.213/91. Abria-se, assim, caminho para que as antigas listas que disciplinavam as atividades consideradas especiais, integrantes dos Decretos n.º 53.831/64 e 83.080/79, fossem modificadas.

Se a Lei n.º 9.032/95 redefiniu o art. 57 da Lei n.º 8.213/91 e a Lei n.º 9.528/97, desde a MP n.º 1.523/96, redesenhou o art. 58, as transformações havidas na disciplina legal da aposentadoria especial somente tiveram termo com a Lei n.º 9.732/98, que conferiu nova redação ao §6º do art. 57, acresceu-lhe os §§7º e 8º e alterou os §§1º e 2º do art. 58, sendo que, no tocante ao escopo deste trabalho, detalhou o laudo técnico de condições ambientais, determinando que sua feitura observasse os termos da legislação trabalhista. Ambos os dispositivos seguem em vigor a despeito de a EC 20/98 ter previsto, em seu artigo 15, a edição de lei complementar - da qual ainda não se tem notícia - para disciplinar a matéria.

O rol com a classificação dos agentes nocivos - físicos, químicos e biológicos-, além da associação de agentes, constou do Decreto n.º 2.172, de 05.03.1997 e, depois disso, do Decreto n.º 3.048, de 06.05.1999. O Anexo IV desse último, ainda em vigor, mas com as alterações trazidas pelos Decretos n.º 3.265/99 e 4.882/03, condiciona o direito ao benefício, relativamente aos agentes químicos, à presença do agente nocivo no processo produtivo e no meio ambiente de trabalho em nível de concentração superior aos limites de tolerância estabelecidos, com a ressalva de que o rol de agentes nocivos é exaustivo, enquanto as atividades listadas, nas quais pode haver a exposição, é exemplificativa. Para os agentes físicos, a previsão de enquadramento se dá em razão da exposição acima dos limites de tolerância especificados ou pelas atividades descritas. Para os biológicos, o enquadramento é restrito às hipóteses de exposição aos agentes citados unicamente nas tarefas relacionadas. Por sua vez, na associação de agentes se considera o enquadramento relativo ao agente que exigir menor tempo de exposição. Passou-se, pois, a um único determinante para a classificação da atividade como especial: a submissão a agentes nocivos, assim considerados aqueles com potencial de ocasionar danos à saúde ou à integridade física do trabalhador nos ambientes de trabalho, em razão da sua natureza, concentração ou intensidade (MARTINS, 2004, p. 374).

Desde então, a legislação de regência prevê que o enquadramento de atividade como especial somente se dá em razão de efetiva submissão aos agentes arrolados como nocivos para este fim por meio de Decreto do Poder Executivo e, mais que isso, que tal comprovação, a cargo do segurado, se faz mediante formulário (hoje perfil profissiográfico previdenciário) embasado em laudo técnico elaborado em consonância com a legislação trabalhista. Em síntese, as sucessivas alterações legislativas adotaram nova filosofia previdenciária relativamente à aposentadoria especial, na medida em que delinearam os contornos do maior rigor a ser empregado, doravante[8], na verificação e enquadramento de uma atividade como especial.

3.2 Equívocos na interpretação e aplicação da súmula

Como alerta Santos (2009, p. 1), as súmulas dos tribunais têm sido vítimas de dois graves vícios de interpretação. O primeiro deles consiste em sua alçada ao patamar de instrumentos normativos primários, de forma que as manifestações pretorianas passam a ser confundidas com entes normativos originariamente vinculantes, muito embora não se revistam de tal natureza. Daí decorre o segundo equívoco no seu tratamento: a interpretação em desarmonia com o restante do ordenamento jurídico.

Incorrendo nesses equívocos, parcela da doutrina especializada e da jurisprudência atual tem olvidado que, tendo sido editada ainda em 1985 e sob a égide do Decreto n.º 89.312/84, o entendimento consagrado na súmula n.º 198 do extinto TFR foi profundamente afetado pelo advento da Constituição de 1988 e pela legislação infraconstitucional que deu tratamento diverso à matéria. Mediante simples alusão à literalidade do seu enunciado, tem-lhe sido conferida interpretação absolutamente desconexa com seu real alcance.

3.2.1 Primeiro equívoco

Em primeiro lugar, e a despeito do item 01 do anexo IV do Decreto 3.048/99 mencionar, modo expresso, que “o rol de agentes nocivos é exaustivo, enquanto que as atividades listadas, nas quais pode haver a exposição, é exemplificativo”, passou-se a afirmar, com embasamento no enunciado da súmula, que a jurisprudência já havia sedimentado posição quanto à não-taxatividade também dos agentes nocivos elencados nos decretos.

Fortes (2005, p. 201), por exemplo, afirma, com fundamento no enunciado, que o atual rol de agentes não é taxativo, na medida em que “a jurisprudência já há muito tempo vinha considerando que o rol de agentes nocivos previsto pela legislação previdenciária não é taxativo, de sorte que, restando comprovada a exposição a algum agente efetivamente nocivo não previsto nos instrumentos normativos pertinentes, ainda assim o segurado teria direito a vê-lo considerado como tempo especial”. Duarte (2007, p. 213), conquanto não o diga expressamente, refere que o enquadramento deve ser feito de acordo com a legislação vigente à época do exercício da atividade, observados os decretos e agentes neles definidos, salientando, porém, que, além desses, haveria ainda a prescrição da súmula.

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Castro e Lazzari (2010, p. 639), também fazendo referência ao teor da súmula n.º 198, sustentam que a relação de agentes nocivos constante do Anexo IV do Decreto n.º 3.048/99 não é exaustiva, e sim enumerativa. Ribeiro (2011, p. 177), conquanto faça alusão a ambos os entendimentos, parece posicionar-se no mesmo sentido. Também Vianna (2011, p. 526) afirma que a lista dos agentes nocivos é meramente exemplificativa, ao argumento de que, não obstante o atual decreto diga o contrário, o entendimento jurisprudencial consolidou-se naquele sentido.

No entanto, o resgate do histórico jurisprudencial que deu ensejo à súmula n.º 198 do TFR permite a conclusão de que, até a extinção do direito de categoria pela Lei n.º 9.032/95, entendia-se que somente as atividades previstas nos decretos anteriores eram exemplificativas. Não se verifica dos julgados do extinto TFR, tampouco da jurisprudência dominante do STJ, qualquer precedente no sentido da não-exaustividade dos agentes nocivos elencados nos decretos.

No mais das vezes, a doutrina especializada, ao se posicionar num ou noutro sentido, faz referência a decisões do Superior Tribunal de Justiça. No julgado citado por Vianna[9], por exemplo, questionava-se a possibilidade de enquadramento de operador de cédula de cunhagem II, atividade não inscrita no Decreto 83.080/79, em razão da comprovação da submissão ao agente físico ruído, acima dos limites de tolerância. Do corpo do acórdão, a par da menção a outros julgados no mesmo sentido, colhe-se: “nesse contexto, é também assente na jurisprudência desta Corte ser devida a concessão de aposentadoria especial quando a perícia médica constata a insalubridade da atividade desenvolvida pela parte segurada, ainda que não inscrita no Regulamento da Previdência Social (verbete sumular nº 198 do extinto TFR), vez que as atividades ali relacionadas são meramente exemplificativas e não taxativas.” Em outra decisão, o STJ consignou, da mesma forma, que, conquanto o Decreto n.º 83.080/79 nada dispusesse acerca das profissões de encarregado geral e servente de carpinteiro, estando-se, portanto, diante de atividades profissionais que não se enquadravam no rol de atividades especiais, tal circunstância não seria óbice ao reconhecimento da especialidade porque, no caso concreto, laudo técnico atestava a submissão a agentes nocivos.[10]

Entretanto, a mera transferência do caráter exemplificativo das atividades profissionais consagrado na súmula para o atual rol de agentes nocivos parece despida de qualquer fundamento. Ainda que, na origem, a aposentadoria especial não tenha sido precedida de estudos técnicos que apontassem para a necessidade de redução do número de anos de trabalho sujeito a exposição aos agentes nocivos, o atual rol de agentes decorreu de análises propriamente médicas sobre seus efeitos deletérios, ao passo que os limites de tolerância foram fixados com base em pesquisas atinentes à degeneração do organismo humano a partir da efetiva submissão a níveis variáveis de determinados agentes nocivos (LOUZADA, 2011, p. 526).

Assim, correta a interpretação do teor da súmula aventada por Tavares e Rocha e Baltazar Jr. (2010, p. 154; 2007, p. 252), que limitam sua incidência às hipóteses em que a atividade, embora comprovadamente nociva, não se encontra prevista nos decretos vigentes até Lei n.º 9.032/95, e a incisiva manifestação de Martinez (2010, p. 133), para quem, “para todos os fins de direito previdenciário, se uma substância não consta do anexo IV do RPS, é como se ela não existisse”.

Não se está a defender, porém, a impossibilidade de fugir à lista alguma situação justificadora de proteção, e sim a afirmar que sua elaboração tem perspectiva técnica, não podendo ser ampliada de forma aleatória, à vista de um ou outro caso judicial específico. Veja-se que, embora oficial, o rol dos decretos não é definitivo, nada obstando seja encaminhado pedido fundamentado de inclusão de algum agente nocivo (MARTINEZ, 2010, p. 42), providência, aliás, que, além de ter sido sempre permitida, atualmente vem prevista no §1º do art. 68 do Decreto n.º 3.048/99.[11]

3.2.2 Segundo equívoco

Uma segunda interpretação, também distanciada do alcance da súmula n.º 198, consiste na afirmação de que, ao fazer menção a atividades insalubres, penosas e perigosas, ela autorizaria, por si só, a extensão dos agentes nocivos para outras situações, que, embora não mencionadas no Decreto, também submetessem o segurado a estas condições de risco. A controvérsia ganha relevo porque desde o Decreto n.º 2.172/97 não houve menção a condições ambientais que, até então, eram contempladas nos Decretos anteriores, tais como umidade, frio, eletricidade e radiação não-ionizante, ou, como lembra Ribeiro (2011, p. 91), agentes “cuja exposição anteriormente incluía a atividade como penosa ou perigosa, e que continua a ser apontada como fator de risco para o trabalhador”.

Favorável a essa possibilidade está Savaris (2008, p. 458), que, em estudo de caso, conclui pela persistência da orientação consolidada na súmula n.º 198, de forma que, mesmo após a revogação dos Decretos n.º 53.831/64 e 83.080/79, seria devido o reconhecimento da natureza especial da atividade se identificado por prova técnica que ela tem potencialidade de prejudicar a saúde ou a integridade física do trabalhador. Na mesma linha, Martins (2004, p. 375), que, depois de mencionar o correto teor da súmula, afirma que “provando o segurado que trabalha em condições perigosas, insalubres ou penosas, terá direito ao benefício”. Por sua vez, Saliba (2011, p. 19), também invocando o enunciado sumular, refere que, conquanto receber adicional de insalubridade ou periculosidade não garanta ao trabalhador, administrativamente, o direito à aposentadoria especial, pela via judicial haveria possibilidade de enquadramento como especial da atividade insalubre ou perigosa mesmo que não mencionada pelo regulamento da Previdência.

Na jurisprudência, encontram-se decisões reconhecendo a especialidade de atividades perigosas mesmo após o Decreto nº 2.172/97. No âmbito da Quarta Região, tanto o Tribunal Regional Federal como a Turma Regional de Uniformização têm julgados favoráveis à tese. Por vezes, o argumento é singelo, limitando-se à invocação do teor da súmula n.º 198 do TFR como permissivo para que atividades insalubres, perigosas ou penosas que não constem do regulamento sejam tidas como especiais por meio de perícia judicial. Noutros julgados, acrescenta-se o fundamento da proteção constitucional à integridade física do trabalhador, de forma que, como a Constituição e a lei previdenciária referem proteção do segurado contra agentes nocivos à integridade física, não estaria vedada a aposentadoria especial por periculosidade.[12] Além disso, há decisões monocráticas do STJ que incorrem em equívoco quanto à própria ratio decidendi da jurisprudência daquele Tribunal, aplicando à hipótese específica do enquadramento por periculosidade após 05.03.1997 o entendimento de que o rol das atividades profissionais é meramente exemplificativo, como se idênticas fossem as questões postas. Com isso, tais julgados incidem no primeiro equívoco interpretativo já mencionado neste trabalho.[13]

Ora, em que pese os conceitos de insalubridade, periculosidade e penosidade não sejam encontrados na legislação previdenciária e tenham servido de base para regulamentar no passado o tempo de serviço de algumas profissões ou atividades, a aposentadoria especial jamais se confundiu com a percepção dos adicionais de remuneração (VIANNA, 2011, p. 528; TSUTIYA, 2007, p. 341; MARTINS, 2004, p. 376). A diferenciação, em verdade, parece vir da própria autonomia do direito previdenciário em relação ao direito trabalhista. Por isso, como lembra Fortes (2005, p. 201), muitas vezes a insalubridade prevista no art. 189 da CLT coincide com o conceito de especialidade, mas, por vezes, tal não ocorre, como no caso do deficiente iluminamento, que nunca foi contemplado como agente nocivo gerador de aposentadoria especial. Note-se que já no Decreto n.º 53.831/64 se enquadrou ampla variedade de atividades previstas na Portaria Ministerial n.º 262/62, que regulava o adicional de insalubridade à época, mas esse mesmo decreto previu também o enquadramento de atividades que não eram contempladas com o adicional de periculosidade, como os bombeiros de socorro a incêndios. Caso não houvesse tal diferença, jamais poderiam ter constado do rol de enquadramento previdenciário atividades perigosas como vigias e trabalhadores em construções de edifícios e pontes, ou ocupações tidas por penosas, como a dos motoristas de ônibus de linha (LOUZADA, 2012, p. 520). Dessa maneira, entende-se que, embora bastante próximos, os conceitos de insalubridade, periculosidade e penosidade do Direito do Trabalho não são utilizados no âmbito previdenciário (FORTES, 2005, p. 201).[14]

Partindo de tais premissas, assiste razão à parcela considerável da doutrina e à jurisprudência que defende, na atual legislação, não haver mais espaço para que sejam consideradas como especiais atividades penosas ou perigosas, mas apenas atividades insalutíferas, e, mesmo nesse caso, apenas se o agente nocivo estiver elencado especificamente como tal para fins previdenciários. Assim, dentre outros, Tsutiya (2007, p. 343), para quem, desde a Lei n.º 9.032, de 28.04.1995, apenas atividades insalubres se enquadram como especiais; Tavares (2010, p. 152), entendendo que, resguardadas as situações de direito adquirido, não são mais consideradas especiais as atividades perigosas, mas somente as insalubres; Fortes (2005, p. 201), segundo a qual, como a legislação previdenciária exige submissão efetiva a agentes nocivos à saúde ou à integridade física do segurado, dificilmente uma atividade profissional que somente exponha o seu exercente a risco, sem contato direto com agente nocivo, poderia ter enquadramento como especial; e Martinez (2010, p. 114), que fixa o marco da desproteção da penosidade e da periculosidade em 05.03.1997. Com efeito, a aplicação da súmula como fundamento bastante para enquadramento de atividades perigosas ou penosas depois do advento do Decreto n.º 2.172/97, ao argumento de que sua redação assim autorizaria, implica interpretá-la de forma dissociada da lei vigente à época - que expressamente fazia menção a tais conceitos - e, mais do que isso, conferir-lhe peso maior que o atribuído à atual legislação de regência.

Ocorre que, a contar de 1988, a concessão da aposentadoria especial se ateve às hipóteses em que o segurado tenha laborado em condições que comprovadamente impliquem desgaste superior ao do trabalho comum. Daí a exclusão de atividades penosas ou perigosas do rol de agentes nocivos atualmente vigente, porque, diversamente dos agentes insalutíferos, que efetivamente ensejam erosão cumulativa da saúde ou integridade física por envolverem circunstâncias ambientais geradoras de distúrbios na higidez do trabalhador caso superados os níveis de tolerância, aquelas se fundam na noção de risco potencial, e não na de efeitos danosos ao organismo (MARTINEZ, 2010, p. 53).

Saliente-se, entretanto, que não se está a defender total dissociação entre a legislação previdenciária e a trabalhista. Na verdade, a partir da Lei n.º 9.032/95 o Ministério da Previdência Social interessou-se pela disciplina laboral, inserindo nas normas previdenciárias conceitos como laudo técnico das condições ambientais de trabalho e seus substitutivos. Sintomaticamente, a Lei n.º 9.732/98 reportou-se in fine ao LTCAT “nos termos da legislação trabalhista”, no que foi acompanhada pelo Decreto n.º 4.882/03. Além disso, o Decreto n.º 3.048/99 uniformizou o tratamento de agentes como ruído, calor e vibração, fazendo-o de acordo com a Norma Regulamentadora n.º 15 da Portaria n.º 3214/78 do MTE (SALIBA, 2011, p. 14).

A aproximação de ambos os ramos do direito é salutar e parece o caminho a ser trilhado. Todavia, a menção aos conceitos trabalhistas na súmula n.º 198 - justificada, como já afirmado, pela redação do conceito legal de aposentadoria especial à época - não pode ser tomada como fundamento para ignorar que a legislação previdenciária tem autonomia para definir os agentes tidos como nocivos para seus fins. Do contrário, estar-se-á contrariando a lógica do próprio direito trabalhista, cuja sistemática normativa vigente, como adverte Cairo Jr. (2006, p. 480), só considera insalubres as atividades expressamente discriminadas em rol produzido pelo órgão competente do Ministério do Trabalho, ainda que laudo pericial constate a presença de insalubridade no ambiente de trabalho, na esteira das Orientações Jurisprudenciais n.º 4 e 173 da SDI-1 do TST e também da súmula n.º 460 do STF[15].

3.2.3 Terceiro equívoco

Um terceiro equívoco consiste na utilização do enunciado como fundamento para o deferimento da realização de prova pericial em qualquer demanda judicial que verse sobre atividade especial. A despeito de a prova da exposição do segurado aos agentes nocivos à saúde ou integridade física ter de atentar para as normas vigentes na época da prestação do serviço (tempus regit actum), permanece o apego da jurisprudência ao entendimento sumular. Segue-se, então, certo descompasso entre a aplicação administrativa da legislação ora vigente e o tratamento jurídico conferido pelos Tribunais.

É verdade que, de modo geral, a doutrina especializada entende que “o direito previdenciário ainda se ressente enormemente de uma normatização em matéria probatória voltada especificamente para a dinâmica de constituição dessa relação jurídica”. Sem embargo, há reconhecimento praticamente unânime de que o processo previdenciário possui especificidades que lhe distinguem do processo civil tradicional, o que tem reflexo na temática específica dos meios de prova das diversas situações previdenciárias. No entanto, no âmbito da atividade especial, há uma tendência da mesma doutrina em afirmar que “nada obstante as exigências legais para o enquadramento de atividade especial, a comprovação da natureza especial da atividade pode se dar por qualquer meio de prova” (SAVARIS, 2010, p. 79). Essa, pois, a afirmação que deve ser contextualizada, porque, como já dito, a prova da atividade especial deve ser feita consoante as exigências da época do exercício da atividade profissional.

A despeito de não ter sido alterado o ônus do segurado de fazer prova de que pertencia a alguma das categorias profissionais ou de que se submetia, de forma habitual e permanente, a algum dos agentes nocivos para esse fim, fato é que, até o advento da Lei n.º 9.032/95, havia relativa flexibilidade quanto aos meios de prova aceitáveis. Ao tempo do advento da súmula n.º 198 do TFR, a par de constar dos quadros anexos, não se exigia qualquer formalidade para a comprovação do tempo de serviço especial. Em geral, o enquadramento por agente nocivo demandava preenchimento, pela empresa, dos formulários SB40, DISES SB 5235 ou DSS8030 (e hoje, ainda, DIRBEN 8030 ou PPP retroativos), indicando qual o agente nocivo a que estava submetido o segurado (MARTINEZ, 2010, p. 86). Nesse caso ou em se tratando de enquadramento por atividade profissional, era desnecessária a produção de prova pericial, exceto para ruído e calor ou na hipótese específica da súmula, ou seja, quando não militava em favor da categoria profissional a presunção de especialidade, por não estar arrolada no decreto. A perícia, portanto, não era regra, e sim exceção.

Depois da linha de corte da Lei n.º 9.032/95, a legislação previdenciária foi-se tornando cada vez mais restritiva quanto à comprovação da atividade especial, passando a exigir do segurado efetiva comprovação de que esteve exposto a agentes nocivos e, modo geral, priorizando a prova documental, com previsão taxativa dos documentos e informações necessários.

Conquanto aquele diploma tenha feito alusão à prova da exposição aos agentes nocivos, foi somente a Medida Provisória n.º 1.523/96, convertida na Lei n.º 9.528/97, que explicitou a exigibilidade de elaboração do formulário com informações advindas de laudo técnico de condições ambientais de trabalho expedido por profissional habilitado. Por isso, o Enunciado n.º 20 do Conselho de Recursos da Previdência Social firmou entendimento de que a apresentação de laudo técnico pericial para períodos de atividades anteriores a 11.10.1996 não é obrigatória, salvo em relação ao ruído.[16] Ainda assim, como a exigência somente veio a ser regulamentada pelo Decreto n.º 2.172/97, esse foi o marco temporal adotado pelo STJ.[17]

O laudo que passou a ser exigível para comprovação da especialidade de labor posterior a 11.10.1996 é aquele elaborado nos termos da legislação trabalhista, ou seja, o Laudo Técnico das Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT) ou seus substitutos, feito com observância do disposto no art. 195 da CLT. Trata-se, em síntese, da análise técnica das efetivas condições de trabalho da empresa empregadora, cuja elaboração e atualização é obrigação prevista na lei.

Ora, se ao tempo do advento da súmula n.º 198 do TFR a produção de prova pericial em juízo já era subsidiária - já que prioritária era a demonstração, por qualquer meio, do enquadramento pela atividade profissional - com mais razão após a Medida Provisória n.º 1.523/96, quando, em regra, já haverá prova pré-constituída das condições ambientais de trabalho da empresa por exigência legal. Dito de outro modo, a perícia judicial somente terá cabimento para suprir a ausência do LTCAT, ou seja, quando o segurado justificadamente e por responsabilidade alheia não tiver meios de obter a documentação exigida para comprovação da especialidade do labor.

Não se quer defender, portanto, que o segurado deva ter restringido seu direito à produção de prova; o que se afirma é que, na dinâmica do Processo judicial previdenciário atual, a prova pericial, por vezes, mostrar-se-á inadequada ou mesmo desnecessária para o deslinde do feito. É que a perícia, como prevista no art. 420 do Código de Processo Civil, destina-se a levar ao juiz elementos que dependam de conhecimentos técnicos, devendo, porém, ser indeferida quando a prova do fato deles não depender, quando for desnecessária em vista de outras provas produzidas, ou, ainda, quando a verificação for impraticável. Logo, em processos cuja prova documental permita a análise das condições de labor do segurado, incabível se fará a delegação da análise técnica ao perito, especialmente em se considerando o rito sumaríssimo dos juizados especiais federais.

Assim, forçoso é concluir que, de regra, a contar de 1996 não se fará necessária a feitura de qualquer perícia, porque bastará a análise do laudo da empresa. Na sua ausência, poderá ser determinada sua realização por profissional legalmente habilitado, dependendo, porém, de conhecimento prévio, somente obtido mediante prova documental, acerca das atividades, funções desempenhadas e setor de trabalho do segurado. De todo modo, a súmula não mais deve ser invocada, por si só, para substituir a documentação legalmente exigida pela simples realização de prova pericial determinada pelo juízo.

3.3 Superação da súmula

A despeito de sua tradição romano-germânica, é inegável o poder persuasivo de um enunciado sumular no direito brasileiro. Por meio dele, identifica-se a jurisprudência consolidada de um tribunal. Por isso, embora não obrigatório, tende, por vezes, a valer mais que a norma legislada.

A inexorável evolução do direito decorrente da dinâmica social, porém, traz constante necessidade de revisão da pertinência de um entendimento sumulado às novas circunstâncias culturais, sociais e jurídicas, seja para diferenciar as situações de fato que permitem sua aplicação, seja para, em casos extremos, abandonar sua aplicação. A depender de mudanças legislativas posteriores, é possível que o precedente seja superado, por tornar-se obsoleto ou inadequado à nova ordem. É que, em regra, um enunciado não deve sobreviver se alterado o texto legal da norma legislada a que está vinculado, de modo que se tornem incompatíveis um e outro. Como alerta Alvim (1990, p. 15):

[...] a súmula, pois, em essência e em rigor, tem a estabilidade do princípio subjacente à lei, para a qual foi feita; assim é que, se tem a estabilidade do princípio embutido na lei, e, mesmo que alterada a lei (o que tem ocorrido), desde que mantido rigorosamente o mesmo princípio, tal não implica a alteração da súmula, que continua a existir e haverá de ser aplicada.

 Nesse passo, um enunciado somente sobrevive se a modificação da legislação que o embasou em nada afetar o princípio subjacente em relação ao qual está em consonância, pois, como visto, sua validade está sempre condicionada ao amparo da norma legislada (SOUZA, 2008, p. 526).

De outra parte, a existência de um entendimento sumulado jamais supre a necessidade de o julgador atentar para a exata correspondência entre o caso concreto e a hipótese que justifica a ratio decidendi do enunciado. Se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não coincidirem com os fatos fundamentais do caso posterior em julgamento, o precedente não será seguido, o que, na teoria do stare decisis, é chamado de distinguishing, ou distinção entre os casos. Para tanto, deve o julgador valorar as circunstâncias tanto do caso anterior como daquele em julgamento a fim de concluir pela aplicação ou não do precedente.

No caso da aposentadoria especial, a Lei n.º 9.032/95 pode ser tida como marco temporal dos novos contornos do benefício previdenciário e, por conseguinte, da forma de analisar e enquadrar uma atividade como especial, na medida em que, a partir dela, passou-se a exigir efetiva comprovação da submissão habitual e permanente do trabalhador a agentes nocivos. Daí decorre, portanto, a necessidade de distinguir a aplicabilidade da súmula n.º 198 do TFR conforme o trabalho tenha sido exercido antes ou depois daquela linha de corte.

A distinção torna-se necessária porque o tempo de serviço é regido pela lei da época em que foi prestado, em observância ao princípio tempus regit actum. No caso específico do labor especial, além disso, é assente o entendimento de que também sua comprovação se regula pela legislação em vigor ao tempo em que exercido.[18] Por isso, a contagem do tempo de serviço especial pode submeter-se ao regramento de dada legislação, mesmo já revogada, mas vigente no momento da prestação do trabalho, ainda que o benefício postulado esteja em novo regramento.

Assim, forçoso é concluir que a súmula n.º 198 do extinto TFR somente tem aplicabilidade para períodos de labor havidos até a Lei n.º 9.032/95 e, ainda assim, apenas quando houver subsunção dos fatos à sua inteligência. Os motivos que ensejaram a ratio decidendi do enunciado, já detalhados na primeira parte deste trabalho, circunscrevem-se à possibilidade de ampliação do rol de categorias profissionais para as quais, à época, havia previsão de enquadramento expressa nos decretos regulamentadores. Além disso, a possibilidade se operacionalizava por meio de prova pericial que atestasse a submissão efetiva a agentes insalubres, penosos ou perigosos, porque esses eram os agentes tidos, até a Lei n.º 8.213/91, como ensejadores da especialidade do labor.

Por outro lado, a aplicação do enunciado depois da Lei n.º 9.032/95 perdeu o sentido, já que não mais vigentes os preceitos nos quais estava fundamentalmente embasado. Dito de outro modo, a alteração das circunstâncias que justificavam o enunciado implicou sua superação. Nessa seara, o fato de ter sido largamente utilizado - inclusive como única fundamentação - na construção de decisões judiciais, sem observância do referido marco legislativo, tem sido causa dos equívocos interpretativos já relatados. O âmago das distorções, em última análise, reside na interpretação da própria finalidade do benefício e, por conseguinte, na desconsideração de que a legislação exige, hoje, efetiva submissão do segurado a condições nocivas à saúde ou integridade física, ou seja, condições que comprovadamente importem em desgaste superior ao comum e que, por isso, justificam a diminuição do tempo de serviço exigido para a jubilação.

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Sobre a autora
Aline Machado Weber

Procuradora Federal. Especialista em Direito Público pela UnB. Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS. Especialista em Direito Previdenciário pela PUC-Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEBER, Aline Machado. A Súmula nº 198 do TFR em face do atual regramento da aposentadoria especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3569, 9 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24101. Acesso em: 29 mar. 2024.

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