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Aspectos jurídicos da decisão do TCU sobre o SICAF

01/11/2001 às 01:00
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O Tribunal de Contas da União é órgão auxiliar do Congresso Nacional incumbido constitucionalmente de aplicar sanções e determinar a correção de ilegalidades e irregularidades em atos e contratos, assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade, e ainda, sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal[1].

O Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – SICAF foi introduzido em nosso ordenamento jurídico pela Instrução Normativa MARE-GM Nº 5, de 21 de julho de 1995, posteriormente modificado pela Instrução Normativa n.º 9, publicada no DOU de 19.04.96, e veio com a intenção de simplificar a apresentação de documentos de habilitação nas licitações, inspirado em outros países, como a Argentina, que possui o Registro Nacional de Constructores de Obras Públicas (Lei n.º 13.064, de 29.9.1947).

A indigitada IN n.º 5 do ex-MARE determinava o seguinte:

"1.3. Fica vedada a licitação para aquisição de bens e contratações de obras e serviços junto. a fornecedores não cadastrados, qualquer que seja a modalidade de licitação, inclusive nos casos de dispensa ou de inexigibilidade."

(destaque nosso)

Pois bem, inicialmente o Tribunal de Contas defendia categoricamente o conhecido SICAF, e, assim, as suas decisões eram juridicamente equivocadas, levando erroneamente os licitantes à obrigatoriedade do registro cadastral unificado, em total afronta ao que dispunha a Constituição Federal e a Lei de Licitação (Lei n.º 8.666/93).

Contudo, todas as decisões da Corte de Contas se mostravam fiéis à Instrução Normativa do extinto MARE, valendo ressaltar excerto do voto do Ministro Iram Saraiva, no processo TC n.º 005.401/96-8, Ata n.º 39/96 - 2ª Câmara, Sessão de 31.10.96, in verbis:

"13. Finalmente, quanto à observação da equipe de auditoria de que é imposto aos participantes das licitações na modalidade convite a condição de cadastramento no SICAF, sob a alegação de amparo nos itens 1.3 e 9.6 da IN/MARE n.º 5/95, contrariando o § 3º do art. 22 da Lei n.º 8.666/93, penso de modo divergente.

14(.....)

15. Verifica-se,... ., que é facultada ao realizador do certame a escolha dos participantes, e que o administrador não é obrigado a convidar apenas interessados cadastrados. Porém, dentro de seu poder discricionário, o mesmo pode assim proceder, sem contrariar a legislação citada´."[2]

(destaque nosso)

Extrai-se desta decisão que até mesmo nas licitações na modalidade de convite (as mais simples), a Corte de Contas considerava absolutamente legal que a Administração convidasse tão-somente os licitantes previamente cadastrados no SICAF se assim o desejasse.

Observe-se que a Lei n.º 8.666/93 simplesmente veda aos agentes públicos incluir nos atos de convocação (editais) cláusulas que comprometam, restrinjam ou frustrem o caráter competitivo de qualquer circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato.

Esta vedação decorre do preceito constitucional do art. 37, XXI, que determina que toda e qualquer licitação deve assegurar a igualdade de condições a todos os concorrentes, permitindo somente exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Frise-se que o objetivo colimado pela Lei Maior, em se tratando de licitação, está na previsão[3] de que a regra geral é a da obrigatoriedade de realizar o procedimento licitatório para garantir o princípio da legalidade e o da igualdade de possibilidades de contratar com o Poder Público.

Além disso, nenhuma das modalidades de licitação da Lei n.º 8.666/93 exige o cadastramento prévio no SICAF, até mesmo a modalidade de tomada de preços, que exige o registro no cadastro, faculta a participação de não cadastrados que preencham os requisitos até três dias antes da data prevista para entrega dos envelopes.

A jurisprudência uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça, que trata das matérias infra-constitucionais é no sentido de que "o procedimento licitatório há de ser o mais abrangente possível, dando azo à participação do maior número de concorrentes. A escolha final há de recair sempre na proposta mais vantajosa para a Administração".[4]

Em consonância com o ordenamento jurídico vigente, o entendimento da Corte de Contas efetivamente começou a mudar, por meio de uma iniciativa da sua Segunda Câmara, proferida na Decisão n.º 245/2000, publicada no DOU de 21.07.2000, no sentido de determinar à 8ª Secretaria de Controle Externo – SECEX, a realização de estudos com a finalidade de verificar a aplicação e vigência da IN n.º 5/95 – MARE, tendo em vista que o subitem 1.3 da mencionada IN contrariava as normas legais de licitação, propondo, se o caso, a adoção, pelo Tribunal, das medidas cabíveis para a correção de eventuais ilegalidades.

Em 30.08.2000, foi publicado no DOU a Decisão n.º 654/2000 – Plenário, que tratava de uma representação de uma licitante inabilitada em uma licitação sob a alegação de não estar registrada no SICAF, em que o TCU determinou à Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério da Cultura que retirasse de seus editais de licitação a exigência cadastral do SICAF, antes mesmo da verificação exigida na Decisão n.º 245/2000 – Segunda Câmara.

Assim, o TCU passou a seguir esse entendimento que já vinha sendo doutrinado pelo professor Marçal Justen Filho, que era contrário à forma de criação do SICAF, mediante instrução normativa do Ministério da Administração e Reforma do Estado, que só teria competência para sua supervisão e coordenação, mas não para sua imposição a todos os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, e também afirmava ser ilegal a exigência cadastral para toda e qualquer licitação.

O Governo Federal efetivamente tentou legalizar o SICAF ao publicar o Decreto n.º 3.722, de 9 de janeiro de 2001, antes mesmo da conclusão dos estudos que haviam sido determinados à 8ª SECEX pela Segunda Câmara do Tribunal de Contas da União, em brilhante voto proferido pelo Ministro-Relator Benjamin Zymler.

A preocupação com o deslinde da celeuma fez com que o próprio Ministro Martus Tavares, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão passasse a acompanhar, como interessado direto, o estudo que estava sendo concluído pela equipe da 8ª SECEX, da Corte de Contas, nos autos do processo TC n.º 011.622/2000-9.

Finalmente, o desfecho desta batalha jurídica entre o TCU e o SICAF foi publicado no DOU de 20.03.2001, nos termos da Decisão n.º 80/2001 – Plenário, que "recomendou ao Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei tornando insubsistente o disposto no subitem 1.3 e, conseqüentemente, no subitem 1.3.1, da Instrução Normativa no 05, de 21 de julho de 1995, do extinto Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE -, por contrariar os artigos 3º, § 1º, inciso I; 22, §§ 1º, 2º e 3º; 27 e 115 da Lei n.º 8.666, de 21 de junho de 1993.

Além disso, a decisão também previu uma comunicação ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, para as providências que julgar cabíveis, que o art. 1º, § 1º, do Decreto n.º 3.722, de 9 de janeiro de 2001, contraria os artigos 3o, § 1o, inciso I; 22, §§ 1o, 2o e 3º; 27 e 115 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.

Observe-se, entretanto, que no relatório do estudo realizado pela 8ª SECEX, o qual culminou na Decisão n.º 80/2001 – Plenário, consta que deveria ser dado o prazo de quinze dias para que o Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão adotasse as providências supra transcritas, com o devido respaldo do Subprocurador-Geral do Tribunal de Contas da União, no entanto, não foi assinalado prazo algum.

Ademais, o próprio TCU não dimensionou, com a devida propriedade, a extensão de seu entendimento definitivo sobre o SICAF, uma vez que o mesmo também inviabiliza o processo licitatório na modalidade de pregão, introduzido em nosso ordenamento jurídico com muito sucesso pela Anatel (cerca de 22% de economia em suas compras), tendo sido implementada no ano passado para todo o Governo Federal, por meio da Medida Provisória 2.026, de 04 de julho de 2000, atualmente vigente sob o n.º 2.108-14, de 24.05.2001.

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Isto porque no Parágrafo único do art. 13 do Decreto n.º 3.555, de 8 de agosto de 2000[5], que regulamenta a MP n.º 2.108-14, consta a obrigatoriedade da substituição da documentação habilitatória jurídica, econômico-financeira e de regularidade fiscal pelo registro cadastral no SICAF.

As agências reguladoras e executivas que também adotaram esta modalidade de licitação não cometeram o mesmo equívoco, pois, a exemplo da pioneira Agência Nacional de TelecomunicaçõesAnatel, nas normas que disciplinam esta inovadora modalidade de licitação, não há qualquer obrigatoriedade de registro cadastral, sendo que nestes casos o SICAF serve apenas como instrumento auxiliar nas licitações.

Por fim, o último avanço do sistema de compras governamentais, o chamado "pregão eletrônico", instituído pelo Decreto n.º 3.697/2000, publicado no DOU de 22.12.2000, que já foi realizado em duas oportunidades pelo Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão, uma na aquisição de veículos, em que se economizou aproximadamente 16% (dezesseis por cento), e outra, realizada no dia 10.04.2001, que registrou uma queda de preços de 84,33% (oitenta e quatro vírgula trinta e três por cento), também obriga o registro cadastral no SICAF de todos os licitantes "virtuais", de acordo com o art. 13, Parágrafo único, em total descompasso com o entendimento final do Tribunal de Contas da União.

É importante frisar este aspecto particular relativo ao sistema de compras eletrônicas, tendo em vista que a expectativa do Governo é de movimentar cerca de 2 bilhões de reais nessa nova modalidade de compras eletrônicas, e que, apesar da eficiência efetivamente comprovada, tanto do pregão físico quanto do pregão eletrônico, não é possível sobrepor o princípio da eficiência sobre o princípio da legalidade, em consonância com a doutrina, de forma unânime.

Enfim, restou cabalmente demonstrado que a fase de habilitação deve afastar requisitos burocratizantes e que afrontem os princípios constitucionais da legalidade e da isonomia, bem como o princípio legal da competividade. Apenas requisitos essenciais e que estejam revestidos de legalidade devem persistir. A habilitação, de acordo com a Lei de Licitação deve concentrar-se exclusivamente nas exigências dos incisos do art. 27 do referido diploma legal.

Diante de tudo o que foi exposto, resta saber se o Tribunal de Contas da União, após ter finalmente firmado o correto entendimento jurídico acerca da superioridade dos princípios constitucionais da legalidade e da isonomia e do princípio legal da competitividade sobre a obrigatoriedade cadastral no sistema de registro unificado, efetivamente utilizar-se-á de sua prerrogativa constitucional para sustar os efeitos jurídicos de todas as disposições normativas diretamente relacionadas com a sua decisão definitiva sobre o SICAF.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal já foi provocado para decidir sobre a questão por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.478-7 (com pedido de liminar), ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio – CNC, na qual questiona a Medida Provisória n.º 2182-16, de 28 de junho de 2001 e os Decretos n.º 3555, de 08 de agosto de 2000 e n.º 3693, de 20 de dezembro de 2000.


NOTAS

1.Art. 71, incisos VIII a XI da Constituição Federal.

2.Trecho extraído da Decisão n.º 361/97 – Plenário – Ata n.º 23/97, publicada no DOU de 01.07.97, à página 13.825.

3.Art. 37, inciso XXI da Constituição Federal.

4.STJ – Pleno – MS n.º 5.602/DF – Rel. Min. Presidente Américo Luz, publicada no DJ de 04.02.98, Seção I, pág. 4.

5.Alguns dispositivos deste decreto foram alterados pelo Decreto n.º 3.693, de 20.12.2000, e o Anexo II teve a sua redação alterada pelo Decreto n.º 3.784, de 06.04.2001.

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Sobre o autor
Juliano Alberge Rolim

advogado em Brasília (DF), especializado em Direito e Processo Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROLIM, Juliano Alberge. Aspectos jurídicos da decisão do TCU sobre o SICAF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2414. Acesso em: 24 abr. 2024.

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