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A (in)eficácia do dever de fidelidade conjugal

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3. DA PROJEÇÃO LEGAL DO DEVER DE FIDELIDADE CONJUGAL

Já vimos as nuances e os caminhos percorridos pelo controle normativo que se tomaram, na história, sobre o dever de fidelidade conjugal. A partir daí, é possível delinear o rumo que o instituto está a trilhar.

É propensão doutrinária, como já exposto ao longo do trabalho, o desprezo jurídico quanto aos deveres conjugais, principalmente quanto à fidelidade conjugal, conduta de intrínseca regulação familiar, não cabendo ao Estado promovê-la. Em 1980, o professor João Baptista Villela já sustentava entendimento nesse sentido, notadamente avançado para a época.

“A tendência hoje, no que concerne aos efeitos pessoais do casamento é abrir amplo espaço à autorregulação do casal. Não se justifica, portanto, sob este novo clima cultural, que se lhe imponham modelos de sexualidade, matéria de seu estritíssimo interesse. (VILLELA, 1980)”.

Assim como inúmeros outros dispositivos legais que ainda vigem em nosso ordenamento, o dever de fidelidade conjugal está entrando para o imenso rol de normas desprovidas de eficácia jurídica. Avolumam os textos normativos e confundem o operador de Direito. Confundem muito mais os jurisdicionados, que não enxergam, com razão, nexo entre a realidade social e a aplicação da norma jurídica. O fenômeno alimenta uma insegurança jurídica pouca enfrentada pelos juristas.

O rumo provável pode ser encontrado no projeto de lei nº 2285/2007, de autoria do deputado Sérgio Barradas Carneiro (2007) (apensado, entre outros, ao projeto de lei nº 674/2007, de autoria do deputado Cândido Vaccarezza (2007)), em trâmite no Congresso Nacional, que, sob grande influência doutrinaria e institucional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, visa criar o Estatuto das Famílias, condensando, num só diploma, toda a legislação sobre o Direito de Família. O projeto traz substanciais - e louváveis - alterações, além de revogar disposições constantes do Código Civil, Código de Processo Civil e legislação esparsa sobre a matéria.

As inovações trazidas pelo projeto são importantíssimas. A diretriz geral assume viés garantista, tal qual nossa Constituição, e tende à proteção dos interesses das minorias em matéria de família, a ampliação do conceito de entidade familiar e da união de fato, a garantia e proteção dos direitos inerentes à diversidade sexual, entre outros. Porém, quanto ao dever de fidelidade, o projeto peca. Ainda está previsto, inclusive em igual formatação, a fidelidade recíproca como dever conjugal, tal qual transposto do diploma civil de 1916, para o de 2002. A falha parecer passar desapercebida.

A não aplicação e observância de uma norma jurídica, por si só, não a torna inerte. Sob esse ponto de vista, contudo, entende-se pela sua ineficácia. Mas, ainda, deve ser analisado se o preceito normativo se alinha com os anseios da sociedade – a outra faceta da efetividade da norma.

Sob esse aspecto, algumas indagações nos perseguem. Seria, hoje, a infidelidade um costume contrário à lei - mas ainda assim costume - e assim sendo, conduta legitimada pelo Direito e pela sociedade? Estaria a fidelidade tornando-se um adendo nas relações afetivas, a quem só aos cônjuges cabe regulação? Com a supremacia jurídica dos direitos fundamentais e a Constituição garantista que nos alberga, questiona-se se seria juridicamente conveniente impor, ainda, preceitos monogâmicos – que de certo sustentam o dever de fidelidade – e deixar os que assim não entendem à míngua da Lei. A resposta para essas perguntas demanda um profundo estudo moral e sociojurídico de nossa sociedade, e enquanto não forem respondidas, continuaremos produzindo leis distantes do povo.


CONCLUSÃO

Dos ramos do Direito, o de Família é o que mais sofre com a incapacidade da lei de acompanhar os fatores sociais que se sucedem, e se revelam assiduamente mutantes. No Brasil, o positivismo jurídico engessa o operador do Direito, e força o Julgador a furtar-se da arcaica legislação posta, promovendo uma entrega jurisdicional por meio de interpretações extensivas e notadamente arbitrárias. As normas imediatas são suplantadas, sob uma exegese jurídica discutível.

Seja por critérios éticos, religiosos ou filosóficos, é fácil a constatação de que a imposição legal não mais gera os efeitos que uma norma jurídica deveria produzir na sociedade. Os reflexos partem da conduta generalizada, do costume, e repercutem em diversos institutos jurídicos: a reparação civil, a proteção penal de bem jurídico, a relevância jurídica da conduta, entre outros fatores, que indicam sua ineficácia social, e revelam sua despicienda previsão normativa.

Para esta conclusão, é fundamental a análise da evolução histórica do dispositivo. Desde a inicial positivação e proteção da fidelidade, até os dias de hoje, onde somos cobertos por uma Constituição garantista, com vistas à dignidade da pessoa humana. Não mais se sustenta a imposição legal da fidelidade conjugal, pois seus alicerces sucumbiram. E essa já é uma constatação de nossos Tribunais, consubstanciada em nossa jurisprudência. O primitivo caráter patrimonial que fundou o dever de fidelidade e, por consequência, a monogamia, há tempos já foi superado. O alicerce restante, introduzido pelos ditames religiosos ocidentais, mostra-se abatido. Tudo isso aliado à laicização do Estado.

O dever de fidelidade deve ser, como tantos outros dispositivos inertes, expurgado de nosso ordenamento jurídico. A insegurança jurídica irradiada ameaça o sistema como um todo, que, ao acomodar normas dessa qualidade, contribui para um cenário jurídico de decisionismo e ativismo judicial, que se revela única saída para uma entrega jurisdicional condizente com a realidade social.

Em outras palavras, a permanência de previsão legal de um dever que impõe aos cônjuges determinada conduta afetiva, de íntima gerência humana, nos leva ao caos na aplicação da norma jurídica. De um lado temos um sistema positivista que atrai a estrita observância da lei. De outro, tal legislação, sob diversos ângulos, se mostra ineficaz e inaplicável. O fenômeno é alarmante, principalmente quando vislumbramos a possibilidade de sua manutenção, com o projeto do Estatuto das Famílias, que conserva o dispositivo tal qual o atual Código Civil Brasileiro.

Questiona-se se é devido ao apelo social, talvez à vaidade parlamentar, ou até intuito autopromocional, que nosso legislador continua a editar leis desse calibre. É preciso uma movimentação doutrinária aguda para reprimir tal comportamento, e corrigir a falha que parece se consagrar em nosso país.

A família, entidade que habilita a pessoa humana ao convívio social e civilizado, deve, sim, ser objeto de normatização do Estado. É vantajoso a proteção pessoal e patrimonial da família, das relações parentais, critérios sucessórios, etc. Porém, não lhe cabe a ingerência de aspectos afetivos, de caráter personalíssimo e estrito interesse de seus entes. É fato livre de norma jurídica.


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VILLELA, João Baptista. Liberdade e Família. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, 1980.


Abstract: The work discusses the effectiveness of the legal rule contained in article 1.566, paragraph I, of the Brazilian Civil Code, the duty of mutual fidelity. Present a bibliographic review on the historical and legal evolution of family and marital fidelity, from early studies of human organization in society to the present, paying attention to the national scene. Conclude with a survey of factor that indicate a loss of effectiveness of the duty of fidelity, dispersed by the Brazilian legal system, its social consequences, as well as the internal effects suffered by a legal system that maintains, and designs, ineffective legal standards.

Keywords: Marital fidelity. Marital duties. Legal effectiveness. Efficacy. Loss of effectiveness.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Michel João Rodrigues. A (in)eficácia do dever de fidelidade conjugal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3570, 10 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24152. Acesso em: 28 mar. 2024.

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