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Antecipação da colheita de provas em processo penal

30/04/2013 às 10:52
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Por inexistir conhecimento prévio e mínimo da acusação pendente, o revel não poderia ser submetido ao julgamento perante o Conselho de Sentença, pois em nenhuma oportunidade processual tivera oportunidade de se manifestar e, direta ou indiretamente, influenciar a formação da verdade.

Realidade comum para aqueles que atuam na defesa técnica de acusados em processo penal é a necessidade de lidar com despachos que determinam a colheita judicial antecipada de provas, nos casos em que o réu, foragido, não é citado pessoalmente para responder à acusação.

A matéria é regida pela norma do artigo 366, CPP, com a redação que lhe conferiu a Lei n. 9271, de 17 de abril de 1996, a qual, segundo o entendimento de Antônio Scarance FERNANDES, inovou a legislação processual penal pátria de maneira a prestigiar o direito de defesa:

Na evolução em prol de maior garantia ao direito de defesa, houve importantíssima mudança na legislação, rompendo-se com a visão tradicional de que o acusado poderia ser condenado à revelia. (...) No aspecto constitucional, acentua que com o novo preceito busca-se efetiva e concreta do contraditório e da ampla defesa, pois fica prejudicado o contraditório efetivo na citação por edital e à ampla defesa repugna a condenação à revelia (FERNANDES, Antônio Scarance. Op. Cit. p. 315).

De fato, a salutar alteração legislativa aproximou a redação do Código de Processo Penal em vigor daquela esposada pela Constituição Federal desde sua promulgação. Ademais, conforma-se com as normas de Direitos Humanos inscritas em diplomas internacionais de direitos humanos os quais o Estado brasileiro se comprometeu a cumprir, como, por exemplo, o Pacto Americano de Direitos Humanos (Art. 8º).

Da constatação de revelia, com a citação por edital do acusado, da ausência de resposta e da não constituição de defensor, deverá o juiz natural suspender o curso do processo e da prescrição, para que se aguarde a localização do acusado, momento em que retornara o feito ao curso regular.

Todavia, reconhecida a possibilidade de a paralisação do feito comprometer pontualmente a busca da verdade processual, poderá o magistrado, ex officio ou a requerimento do Ministério Público, sempre fundamentada e excepcionalmente, proceder à produção da prova reputada como urgente, sob pena de seu perecimento.

Não é de se ignorar, ademais, que deverá o magistrado nomear defensor para acompanhar a realização do ato, o qual, inclusive, manifestar-se-á previamente sobre a higidez da via a ser adotada. Em tal momento, poderá o causídico opor-se à medida, com a demonstração de que os requisitos legais não foram colacionados no pleito ministerial ou no despacho judicial.

Conforme a doutrina de David MEDINA DA SILVA:

A despeito da suspensão processual operada, pode o juiz realizar atos instrutórios reputados urgentes. Cuida-se da produção de provas ad perpetuam rei memoriam, referindo-se, pois, a qualquer prova que se possa prejudicar pelo decurso do tempo inerente à suspensão do processo (periculum in mora), como (...) o abalo da saúde de uma testemunha etc. (...) Trata-se de medida que pode ser determinada de ofício ou a requerimento do Ministério Público. No caso de determinar a medida, deve o juiz nomear defensor dativo, sendo obrigatório o acompanhamento dos atos instrutórios pelo defensor e pelo órgão do ministério público (BOSCHI, Marcus Vinicius (org.): Código de Processo Penal Comentado. Porto Alegra. Livraria do Advogado; 2008. p. 286).

Como se trata de garantia do acusado participar efetivamente da produção probatória, colaborando com seu advogado para a realização de uma defesa idônea (mens legis do art. 366 do CPP), não possa ser tolhida a possibilidade de participar da colheita de provas, sem justificativa plausível (leia-se, ausentes os ditames legais), em nome da mera praticidade do procedimento, da economia processual e dos efeitos deletérios na memória das testemunhas.

De fato, o art. 366, caput, do diploma processual penal pátrio permite ao juiz, ao determinar a suspensão do processo e da prescrição, apenas produzir antecipadamente as provas consideradas urgentes.

Simples interpretação literal é suficiente para que se perceba a natureza nitidamente cautelar desta medida, caracterizada por sua excepcionalidade.

Sua adoção exige, portanto, a presença dos requisitos típicos das medidas cautelares, notadamente o fumus boni iuris e o periculum in mora. Como medida que assegura a colheita de elementos de prova, introduzindo-os no processo antecipadamente, a sua marca é a urgência aferida no caso concreto, ou seja, deve estar demonstrado o risco concreto de que a prova não possa ser produzida.

É vedado ao intérprete fixar situações abstratas, não descritas na lei, nas quais se presume a urgência ou o perigo sério de perecimento da prova. Caberia tão somente ao legislador definir estas situações abstratas, se assim entendesse conveniente e adequado. Ao Poder Judiciário incumbe a análise da urgência concretamente demonstrada, respaldando a sua decisão em informações específicas de um dado processo.

Urgente é a oitiva de dada testemunha que, por exemplo, ostenta grave enfermidade, cujos médicos indicam fundado receio de perecer antes que se possa iniciar a instrução processual penal em juízo, conforme determina o processo penal democrático. Viola o espírito da lei o reconhecimento pelos magistrados da urgência na oitiva de todas as testemunhas nos processos suspensos de acordo com o art. 366 do CPP.

É o meio de prova testemunhal o mais sensível ao exercício do contraditório, pois a ausência do acusado impossibilita a prática de reperguntas por parte da defesa.

Entendimento contrário faz com que a antecipação se descaracterize: de medida cautelar (excepcional) passa a expediente ordinário, independentemente da existência do concreto risco a justificar a asseguração da produção da prova.

Resta claro que o dispositivo em comento, ao restringir a possibilidade de produção antecipada de provas – na ausência do réu – aos casos urgentes, buscou compatibilizar o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa com o também fundamental direito à efetividade da jurisdição. Trata-se de nítido caso de entrechoque de princípios constitucionais, os quais devem ser cuidadosamente balanceados e ponderados, à luz do caso concreto.

Nesse diapasão, a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, exigida pelo art. 93, IX da Constituição, torna-se ainda mais premente nos casos em que a decisão busca resolver conflitos entre princípios constitucionais: deve o magistrado expor cuidadosamente porque, no caso em pauta, à luz de seus elementos concretos, optou por conferir maior amplitude a um ou outro princípio.

Recente decisão unânime da 1ª Turma do Pretório Excelso, cuja ementa ora se transcreve, também corrobora tal entendimento:

O citado artigo 366 do CPP prevê a possibilidade da produção antecipada de provas e o artigo 225, ao dispor especificamente sobre a prova testemunhal, fornece os parâmetros que autorizam a antecipação da oitiva. Depreende-se, da conjunção dos dois artigos, que o juiz não está vinculado a fórmulas genéricas, cabíveis a qualquer caso. A não ser assim, jamais poderá exercer o juízo próprio ao exame das cautelares, tendo, em conseqüência, de deferir qualquer espécie de pedido objetivando a produção antecipada de provas. Na espécie, o requerimento do Ministério Público funda-se tão-somente na possibilidade de a testemunha esquecer detalhes importantes dos fatos, em virtude do decurso do tempo, ou deixar seu domicílio, não mais sendo localizada. Ora, o esquecimento pelo decurso do tempo ou a possibilidade de mudança de domicílio são circunstâncias que respeitam a qualquer ser humano. No caso concreto, há meras conjecturas, desacompanhadas de quaisquer elementos que revelem a real necessidade da medida. (...) Ante o exposto, na linha do parecer da PGR e do precedente citado, dou provimento ao recurso para restabelecer a decisão de primeiro grau que indeferiu a antecipação probatória. (STF – 1ª Turma – RHC 85.311-1 – Rel. Min. Eros Grau, 1ª/3/2005, v.u.).

Tal posicionamento, pacífico entre os Tribunais Superiores, foi definitivamente cristalizada em súmula, emitida pelo Superior Tribunal de Justiça em setembro de 2010: “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no artigo 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. (Súmula 455)

Contemporaneamente um problema se apresenta, vinculado à revelia do defendido nos processos afeitos à competência do Tribunal do Júri: seu julgamento em plenário.

A questão, cujo esboço de resposta encontra-se na norma do artigo 457, CPP, a qual indica que não mais será adiada a sessão de julgamento perante o Conselho de Sentença se o defendido solto, regularmente intimado, não comparecer. A situação se revela crítica, pois o regime de intimações modificou-se substancialmente após a entrada em vigor da Lei n. 11.689/08.

O novo sistema determina que o réu não localizado para ser intimado da decisão de pronúncia será cientificado por edital e duas posições nasceram a partir da referida realidade: A) a intimação por edital da decisão de pronúncia é o quantum satis para a submissão do acusado não-localizado ao julgamento perante o Conselho de Sentença, pois, conforme se depreende do artigo 457, CPP, estaria regularmente intimado; B) a intimação editalícia não é suficiente para determinar o julgamento, pois a expressão devidamente intimado revela a necessidade de que o ato se realize pessoalmente, não fictamente.

A Corte da Cidadania já se debruçou sobre o assunto em tela, oportunidade em que sedimentou o entendimento segundo o qual a redação dedicada ao artigo 420, CPP, pela Lei n. 11.689/08 aplica-se aos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, ocorridos em período anterior a sua entrada em vigor. Tal assertiva possui lastro no princípio tempus regit actum[1], informador do Processo Penal, quer dizer, aplicar-se-á a modificação instrumentária desde o momento previsto para o início de seu vigor, com respeito aos atos até então praticados (constituídos).

Situação excepcional, todavia, não contemplada pelo pronunciamento da Corte da Cidadania, revela-se quando nos autos se observa que o acusado foi citado por edital em momento anterior ao vigor da Lei n. 9271/96, que modificou a redação do artigo 366. Nesse caso, conforme o posicionamento abaixo indicado oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo, pautado na doutrina de Luiz Flávio GOMES, de Ronaldo Baptista PINTO e de Rogério Saches CUNHA, por inexistir conhecimento prévio e mínimo da acusação pendente, o revel não poderia ser submetido ao julgamento perante o Conselho de Sentença, pois em nenhuma oportunidade processual tivera oportunidade de se manifestar e, direta ou indiretamente, influenciar a formação da verdade judiciária na qual se fiarão os tribunos. Tal entendimento encontra-se em consonância com o referido artigo 8º, da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Sobre o tema, Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Baptista Pinto, na obra Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, editora RT, 2008, p.91, lecionam: "Exceção: caso o acusado tenha sido citado por edital, antes de 1996 (época da reforma do art. 366 do CPP, viabilizada pela Lei 9271/96), e não tenha sido cientificado da peça acusatória, nesse caso, se o processo estava parado em razão de ele não ter sido encontrado, não pode o feito ter andamento, porque o réu não tomou ciência (lá no início) da acusação. Esse é o direito fundamental que deve ser respeitado: ciência do inteiro teor da acusação (nos termos do que está garantido pelo art. 8o, 2, b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sem isso nada pode andar. Nos crimes ocorridos depois de 1996 já tem incidência o art. 366 do CPP: o processo está suspenso. Nos crimes anteriores os processos tiveram andamento, mas muito deles encontraram o obstáculo da intimação pessoal da pronúncia que era obrigatório, Mandado de Segurança n° 990.09.204653-5 - São Paulo[2].

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O efetivo conhecimento das hipóteses acima colacionadas permite à defesa técnica clamar pela proteção de direitos garantidos aos seus representados, o qual, presente e ciente da acusação pendente, poderá auxiliar sobremaneira na formação do convencimento dos juízes de direito ou dos juízes leigos, quando do julgamento da causa perante o Conselho de Sentença.


Notas

[1] HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. CRIME PRATICANDO ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI N.º 11.689/08. RÉU FORAGIDO. INTIMAÇÃO POR EDITAL. JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. POSSIBILIDADE. ART. 420 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA DE NATUREZA PROCESSUAL. APLICAÇÃO IMEDIATA. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. 1. O art. 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal, na redação atribuída pela Lei n.º 11.689, de 09 de junho de 2008, estabelece que "será intimado por edital o acusado solto que não for encontrado." 2. As normas processuais penais têm aplicação imediata e devem ser aplicadas ainda que o crime tenha ocorrido em data anterior à sua vigência. 3. Ordem denegada (HC n. 160914/SP. Rel. Min. Laurita Vaz. Quinta turma. DJe 29.3.2012) e HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A VIDA. HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI N.º 11.689/08. INTIMAÇÃO POR EDITAL DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. POSSIBILIDADE. NORMAS DE NATUREZA PROCESSUAL. APLICAÇÃO IMEDIATA.  DESENVOLVIMENTO REGULAR DO FEITO. PRECEDENTES. 1. No âmbito do direito processual penal vige o princípio do efeito imediato da norma, tempus regit actum, conforme previsão contida no artigo 2º do Código de Processo Penal. 2. Dentre as alterações promovidas pela entrada em vigor da Lei nº 11.689/08, está a possibilidade de intimação, por edital, da decisão de pronúncia do acusado solto, em lugar incerto e não sabido. Tais dispositivos possuem natureza processual, motivo pelo qual devem ser aplicados, imediatamente, sobre os atos pendentes. Precedentes. 3.Ordem denegada (HC n. 198263/ES. Rel. Min. Adilson Vieira Macambu. Quinta Turma. DJe. 1.2.2012).

[2]TJSP. MANDADO DE SEGURANÇA n° 990.09.204653-5.  Rel. Desembargador Borges Pereira. 16ª Câmara de Direito Criminal. DJ 13.4.2010.

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Sobre o autor
Ricardo Cesar Franco

Defensor Público do Estado de São Paulo, nível IV, que atua perante o E. Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Coletivo. Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Professor de Filosofia do Direito Penal e de Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Ricardo Cesar. Antecipação da colheita de provas em processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3590, 30 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24315. Acesso em: 22 dez. 2024.

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