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A inaplicabilidade do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro

01/11/2001 às 01:00
Leia nesta página:

"A história do Direito Penal é a história do Estado, um largo caminho de democratização, que só estamos iniciando e que por isso requer uma constante revisão crítica e ao mesmo tempo, implica remover permanentemente mitos, ficções e alienação que impeçam esta revisão"

Juan Bustos Ramirez


Dentre as diversas modificações legislativas em matéria de Direito Penal, cumpre destacar as inovações trazidas pela Lei 9503/97, o Novo Código de Trânsito, em especial o artigo 302 que trata dos homicídios culposos.

Referido artigo prevê a prática de homicídio culposo na direção de veículo automotor.

Tal conduta sempre foi julgada, antes da promulgação da nova lei, pelo artigo 121, §3°, do Código Penal, como crime de homicídio culposo.

A nova lei, no entanto, especializou o crime de homicídio do Código Penal valorando a conduta quando cometida na direção de um veículo automotor.

Não fosse o aumento da pena base nos homicídios de trânsito, poder-se-ia dizer que o novo tipo penal, ainda que impreciso e em desacordo com a hermenêutica penal, nada mudaria no sentido prático, sendo mais uma norma que tipificaria o que já é tipificado.

No entanto, houve uma inapropriada e incorreta qualificação no homicídio culposo.

Com propriedade, Walter Antonio Dias Duarte neste sentido salienta que "no homicídio culposo, a lei efetua apenas uma única valoração, mesmo porque não se mostra possível outra valoração que pudesse especializar esse homicídio, por uma razão muito singela: o agente, nesse caso, não quer, tampouco prevê o resultado, não obstante previsível".

E complementa ressaltando: "Ora, se não há a vontade dirigida para o resultado, que nem mesmo é previsto, como valorar o meio utilizado, desdobrando esse tipo de homicídio, criando-se um homicídio qualificado? Como dizer que este meio utilizado é mais ou menos danoso que um outro, se não há uma vontade dirigida ao evento?

A nova norma do Código de Trânsito criou um tipo ímpar de delito culposo, o homicídio culposo qualificado.

Esta qualificação nos homicídios culposos fere a teoria geral do delito, bem como a lógica jurídica, pois valora o que jamais poderia sofrer valorações, uma vez que, consoante DUARTE, "somente em função de um resultado querido, com vontade atuante nessa direção, é que pode observar o meio empregado, valorando-o".

Todavia há de ressaltar que este novo dispositivo penal veio, talvez, para acabar com um "modismo" ainda vigente que considera a existência da modalidade dolo eventual em alguns homicídios de trânsito, e que por conseqüência deve ser julgado pelo Tribunal do Júri.

Esse absurdo jurídico – penal foi rechaçado pelo ilustre professor Alexandre Wunderlich em louvável artigo intitulado de "Dolo Eventual nos Homicídios de Trânsito: Uma Tentativa Frustrada" publicado na Revista dos Tribunais que dirime todas as dúvidas referentes a este tema concluindo:

Diga-se, então, que o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídica utilizada fantasiosamente para compensar uma legislação inadequada e, assim, atender aos reclamos da mídia. Diga-se, ainda, que serve para acabar com aquilo que a mídia (odiosa imprensa leiga) e os profetas dos "movimentos", mais das vezes emulados pela mesquinhez de ideologias "baratas", classificam de impunidade. Mas, não se diga que, com base na teoria do delito existe fundamento jurídico plausível e consolidado sobre a demarcação do conceito de dolo eventual, mormente, no sentido amplo, chegando a cogitar-se que o agente consinta com seu possível suicídio.

A bem da verdade, o legislador, acolhendo os anseios da mídia sensacionalista e a dados estatísticos, adota com o Novo Código de Trânsito uma política criminal repressora inócua que foge dos ideais de um direito penal mínimo e garantidor.

As críticas têm sido constantes pelos penalistas às normas contidas no CNT. O renomado jurista Dr. Rui Stoco, em artigo publicado no Boletim IBCCrim, refere que "este tratamento distinto e exacerbado não parece possível, pois o que impende considerar é a maior ou menor gravidade da conduta erigida à condição de crime e não nas circunstâncias em que este foi praticado ou os meios utilizados."

Seguindo o raciocino, STOCO vai além e conclui manifestando-se sabiamente que "nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal ofende o princípio constitucional da isonomia, e o direito subjetivo do réu a um tratamento igualitário."

Há de se referir que numa análise acurada do dispositivo em tela percebe-se que referida norma agride igualmente o princípio da proporcionalidade.

As razões que ensejam a inconstitucionalidade do art.302 do CNT são semelhantes as trazidas pelo acórdão da Apelação-Crime n° 70000284455 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que trata sobre o crime de furto:

Furto Qualificado Pelo Concurso – Agride aos Princípios da Proporcionalidade e da Isonomia o Aumento Maior da Pena ao Furto em Concurso do que ao Roubo em Igual Condição – Aplica-se o Percentual de Aumento deste a aquele – Atenuante pode deixar a pena aquém do mínimo abstrato – Deram parcial provimento aos apelos (Apelação Criminal n° 70000284455 – 5ª. Câmara Criminal TJ/RS. Rel. Dês. Amilton Bueno de Carvalho. 09 de fevereiro de 2000).

O referido acórdão foi motivado pelo parecer do eminente Procurador de Justiça, Dr. Lenio Streck que ao manifestar-se sobre o princípio da proporcionalidade fez as seguintes considerações:

Tenho, pois, que fere a Constituição – entendida em sua principiologia (materialidade) – a previsão legal do Código Penal que determinada a DUPLICAÇÃO da pena toda vez que o furto for cometido por duas ou mais pessoas, o que, aliás acarreta um paradoxo em nosso sistema penal. Entre tantas distorções que existem no Código Penal (e nas leis esparsas), este é um ponto que tem sido deixado de lado nas discussões daquilo que hoje denominados de ‘necessária constitucionalização do direito’. Vale frisar, nesse sentido, que no recente Congresso de Direito Penal e Processual Penal ocorrido em Curitiba nos dias 1,2 e 3 de setembro de 1999, a questão atinente à discrepância entre as diversas qualificadoras do Código Penal veio à baila, em debate promovido entre Amilton Bueno de Carvalho, Salo de Carvalho, Afrânio Jardim, James Tubenschlack e Procurador de Justiça signatário. A conclusão apontou para urgente – e necessária – releitura das majorações de pena decorrentes das qualificadoras e das causas de aumento de pena, tendo por base o princípio da proporcionalidade.

Com efeito, esse paradoxo no furto decorre do fato de que, enquanto no furto a qualificadora do concurso de pessoas tem o condão de duplicar a pena, no roubo a majorante (causa de aumento de pena), neste caso de concurso de agente, é de (apenas – sic) 1/3, podendo ir ao máximo até a metade. Atentemo-nos para a discrepância: tanto no furto como no roubo, o concurso de agentes qualifica; no primeiro, a pena dobra; no segundo, a pena fica acrescida de 1/3. Ora, no furto a presença de mais de uma pessoa não coloca em risco a integridade física da vítima, e, sim facilita o agir subtraente; já no roubo, a presença de mais pessoas colocam em risco sobremodo a integridade física da vítima.

Por isto, é necessário fazer uma (re)leitura do constitucional do furto qualificado (por concurso de pessoas) à luz do princípio da proporcionalidade, que é incito e imanente à Constituição Federal.

Analogamente, no caso do art. 302 do CTB, não se deve reler o artigo, mas simplesmente desconsidera-lo em face de sua inconstitucionalidade ante o princípio da proporcionalidade.

Mesmo que se desconsidere o que foi dito anteriormente em relação a inapropriada qualificação dos crimes culposos, devemos nos atentar para o fato de que o cidadão que violando o dever de cuidado (ou seja, culposamente) mata uma criança com uma arma de fogo responde pelo art. 121, § 3°, do Código Penal e estará sujeito a uma pena de um a três anos, enquanto que o motorista que atropela culposamente um transeunte estará sujeito a um pena de dois a quatro anos.

Nesta ótica, uma arma de fogo é um instrumento utilizado para matar, ferir, caçar, etc, já os automóveis, motocicletas, ônibus e caminhões, ao contrário, são utilizados como meios de transporte necessários, que contribuem diretamente na economia e no desenvolvimento de qualquer país.

Assim, um crime culposo cometido na direção de um veículo qualquer é, se atentarmos erroneamente para o objeto do crime, por natureza menos grave, ante a natureza do ofendículo utilizado, que um crime negligente cometido com arma de fogo.

Muller apud BONAVIDES (1996) explica que o princípio da proporcionalidade "é a regra fundamental a que devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem o poder."

Logo, há violação do princípio da proporcionalidade, quando há ocorrência de arbítrio, ou seja, toda a vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados e ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente, isto é, manifesta.

Este princípio limita o poder legítimo fornecendo o critério das limitações à liberdade individual. É, nas palavras de Penalva apud BONAVIDES (1996) "’cânone de grau constitucional’ com que os juízes corrigem o defeito da verdade de lei, bem como, em determinadas ocasiões, ‘as insuficiências legislativas provocadas pelo próprio Estado com lesão de espaços jurídicos-fundamentais’".

As Regras de Tóquio, advindas do 8° Congresso da ONU que tem por fim promover o emprego de medidas não privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas de prisão, não apresentam de modo simplificado e sintetizado o princípio da proporcionalidade, "mas sua inferência é indiscutível", como bem elucida Luiz Flávio Gomes.

A regra 2.3 determina que "A quantidade e as espécies das medidas não-privativas de liberdade disponíveis devem ser determinadas de modo que seja possível a fixação coerente das penas."

Por fixação coerente das penas deve-se entender aplicação adequada, consoante Luiz Flávio Gomes, e no caso dos homicídios culposos no trânsito previstos pelos CTB, a aplicação da pena base longe está de ser a adequada se comparado ao que dispõe o Código Penal sobre os homicídios negligentes.

Logo, pelo princípio constitucional da proporcionalidade, a nova norma trazida pelo CTB agride frontalmente a Magna Carta.

Deve-se também atentar ao princípio constitucional da isonomia.

Este princípio nas sábias palavras do Procurador de Justiça Dr. Lenio Streck, determina que cabe ao Poder Judiciário, "em sua função transformadora e integradora, típica do estado Democrático de Direito, efetuar as correções das leis, utilizando-se para tal dos modernos mecanismos hermenêuticos, como a interpretação conforme à Constituição, a nulidade sem redução de texto e a declaração da inconstitucionalidade das leis incompatíveis com a Constituição."

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Trata-se da constitucionalização do Direito Penal, defendida pelos garantistas, onde, conforme ressalta o emérito Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, "não se está violando leis mas sim colocando-a no quadro maior: o do direito".

Na verdade, o princípio da isonomia está inserto na Constituição, na medida em que se adota o discurso de Hans Kelsen de obediência hierárquica ao sistema de normas.

O conteúdo deste princípio fundamental é, como bem ilustra Bandeira de Mello apud BUENO DE CARVALHO (2000), "impedir discriminações, favoritismos ou perseguições. Obstar agravos injustificados". E na esteira deste entendimento o nobre jurista concluí que a norma atende a igualdade quando "se o tratamento diverso outorgado a uns for justificável, por existir uma correlação lógica entre o fator de discrímen... e o regramento que se lhe deu, se inexistir, ao contrário, a congruência lógica ou se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável" há agressão ao princípio.

Ante essas questões, indaga-se: Qual o fundamento lógico, racional e convincente para a aplicação da pena nova do Código de Trânsito Brasileiro ao invés da pena do Código Penal?

A única diferença entre o tipo previsto no parágrafo 3° do art.121 do CP e o art. 302 do CTB é que no último há um elemento novo, a direção de veículo automotor.

Ferrajoli apud BUENO DE CARVALHO (2000) refere que "muito pior do que conceder penas (=causa de aumento) iguais a delitos de gravidade diferente é fixar mais elevadas ao delito menos grave."

Na verdade não há diferença entre um homicídio culposo em circunstâncias normais a um homicídio negligente na direção de veículo automotor.

Portanto, é no mínimo ilógico criar um tipo que inova apenas ao aumentar a pena para delitos cometidos na direção de veículo automotor.

Desta forma, ao declarar-se inconstitucional o dispositivo previsto no CTB, estar-se-á obedecendo ao princípio da isonomia, o princípio da proporcionalidade, o respeito aos direitos fundamentais e a aplicação correta da pena.

Cabe salientar que dificilmente o julgador aceitará inconstitucionalidade deste dispositivo, pois o que se vê hoje no judiciário são movimentos baseados no "law and order" ou julgadores que procuram apenas aplicar a lei como maquinas de etiquetamento e que se baseiam num dogmatismo cego e infundado.

O penalista latino-americano Eugenio Raul Zaffaroni, ao tratar da deslegitimação do direito penal, na imortal obra "Em Busca da Penas Perdidas" pág. 83, esclarece o problema pelo qual nossos julgadores passam, in verbis:

"Uma fuga ao desafio da deslegitimação, que não pode qualificar-se como teórica mas como simples atitude – às vezes brutalmente grosseira e outras extremamente ingênua, em algumas ocasiões sustentada com pedaços de argumentos neokantianos ou de positivismo jurídico mais furioso e, em outras, sem maior sustentação do que componentes autoritários que impedem o curso discursivo -, traduz-se pela reação do órgão judiciário, fundamentada no fato de que a legitimidade geral do sistema penal não é problema de sua incumbência, reduzida unicamente à solução dos casos concretos conforme pautas legais que regem o fato particular a resolver.

Esta Atitude comporta uma notória degradação da atividade do órgão judiciário, que se esvazia de qualquer ética, reduzindo-se a uma função totalmente burocrática como parte de um mecanismo deslegitimado por sua arbitrariedade seletiva. O discurso jurídico-penal torna-se a –ético, no pior sentido da expressão, pois o jurista renuncia a qualquer conteúdo ético em sua conduta e o órgão judicial do sistema penal passa a atuar sem atender a qualquer apelo ético".

Espera-se que um dia o legislador e o julgador conscientizem-se de que o sistema penal da forma que se apresenta está deslegitimado e que o aumento irracional das penas e dos tipos nada contribui para a diminuição da criminalidade.


BIBLIOGRAFIA

BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional Brasileiro. Ed. Malheiros

DUARTE, Walter Antonio Dias. Ainda a Nova Leis de trânsito e o Homicídio Culposo. Boletim IBCCRIM, n° 101. São Paulo: IBCCRIM, 2001.

GOMES, Luiz Flavio. Penas e Medidas Alternativas à Prisão. 2ª ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

WUNDERLICH, Alexandre. "Dolo Eventual nos Homicídios de Trânsito: Uma Tentativa Frustrada" In: Revista do Tribunais n° 576, outubro de 1998.

SEPARATA, Jurisprudência. Porto Alegre: Itec,

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas.4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

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Sobre o autor
Eduardo Schmidt Jobim

advogado, bacharel pela Universidade Federal de Santa Maria (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JOBIM, Eduardo Schmidt. A inaplicabilidade do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2444. Acesso em: 28 mar. 2024.

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