A questão trazida no presente artigo é: qual o prazo da medida de segurança imposta em substituição à pena privativa de liberdade fixada na sentença condenatória.
A controvérsia permanece acesa, o que se pode depreender, exemplificativamente, da comparação entre duas recentíssimas decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, uma no sentido de que o prazo seria o da pena máxima abstratamente cominada para o delito e a outra entendendo que o parâmetro deveria ser o restante da pena concreta estabelecida na sentença penal condenatória[1].
Como quase toda questão atinente à medida de segurança, a solução exige do intérprete uma porção extra de acuidade jurídica para sopesar os diversos aspectos do tema, sem se render à cômoda escolha da solução fácil e monofacetada, que pode revelar-se injusta.
Antes, porém, de se ponderar sobre a questão proposta, impende fazer uma breve análise de alguns aspectos da temática. Vejamos.
Dispõe o art. 97, § 1º, do Código Penal (CP) que “a internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos.”
Leitura açodada no texto legal poderia levar à conclusão de que na hipótese de imposição de medida de segurança, a internação poderia ser aplicada sem qualquer limitação de prazo, à espera de um laudo que comprovasse a cessação da periculosidade. Na esteira dessa exegese, não cessada a periculosidade, o inimputável permaneceria internado ad eternum.
Para os que entendem que a medida de segurança não possui natureza de sanção penal à vista de seus “fins curativos” (art. 97, § 4º, do CP), poderia não haver, na espécie, problema jurídico a ser resolvido[2].
Há que se considerar, entretanto, que ainda que não se adentre a intrincada e não solucionada questão da natureza jurídica da medida de segurança, inexiste fundamento hábil a infirmar o fato de que esta constitui grave cerceamento da liberdade da pessoa. Sim, o inimputável continua a ser uma pessoa, titular de todos os direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República.
E havendo limitação da liberdade de ir e vir da pessoa por ato do Estado-Juiz, a ordem jurídica vigente sempre impõe limites.
Veja-se na doutrina:
“Por fim deve-se obedecer ao princípio da jurisdicionalidade, pois a medida de segurança é aplicada por meio e providência jurisdicional. Há na imposição dela restrição a bens jurídicos, inclusive a liberdade de locomoção, impossível de ser inserida em medida administrativa.” (MIRABETE, Julio Fabbrini. “Execução penal”. 9ºed. São Paulo: Atlas, 2006, p.611.)
Em relação à sobredita limitação do poder estatal, note-se, v.g., o que preconiza a Lei Maior, em seu art. 5º, XLVII, no sentido que de não haverá penas “de caráter perpétuo”, bem como o art. 75 do CP, dispondo que “o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos”.
A mens legis é clara: o cerceamento da liberdade da pessoa nunca será por tempo ilimitado, o que constitui pressuposto de índole constitucional que deve nortear todo o ordenamento, eis que decorrente do superprincípio da “dignidade da pessoa humana”, insculpido no art. 1º, III, da Lei Maior, e elevado à categoria de fundamento da República.
Assim, não é necessário mais do que um simples raciocínio lógico-jurídico para se chegar à conclusão de que a medida de segurança não deve ser perpétua.
E nem se argumente que isso seria contra legem à vista do teor do § 1º, do art. 97 do CP, acima transcrito, vez que indeterminação não implica perpetuidade, mas, antes, simples indefinição prévia. De modo que o melhor entendimento é o de que o prazo é abstratamente indeterminado dentro de certo limite, no qual o juiz da execução, avaliando as nuances do caso concreto, em especial, com base em laudo pericial que verifique a cessação da periculosidade, determinará o retorno da pessoa ao convívio social.
Chega-se então à questão levantada inicialmente: qual deve ser esse limite temporal? E o que fazer se, escoado o referido lapso, não for constatada a cessação da periculosidade?
Parte da doutrina e jurisprudência dos Tribunais pátrios se inclina pela fixação do limite máximo em trinta anos, a teor do estabelecido no art. 75 do CP, ou, se o caso, na quantidade da pena abstratamente cominada para o delito perpetrado.
Nesse sentido:
HABEAS CORPUS. PENAL. INIMPUTÁVEL. APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA. INTERNAÇÃO. LIMITAÇÃO DO TEMPO DE CUMPRIMENTO AO MÁXIMO DA PENA ABSTRATAMENTE COMINADA. PRECEDENTES. 1. Nos termos do atual posicionamento desta Corte, o art. 97, § 1.º, do Código Penal, deve ser interpretado em consonância com os princípios da isonomia e da proporcionalidade. Assim, o tempo de cumprimento da medida de segurança, na modalidade internação ou tratamento ambulatorial, deve ser limitado ao máximo da pena abstratamente cominada ao delito perpetrado, bem como ao máximo de 30 (trinta) anos. (...)” (STJ - HC 147.343/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/04/2011, DJe 25/04/2011)
“APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO QUALIFICADO - DECLARAÇÃO DE INSCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 97 DO CP - INVIABILIDADE - MEDIDA DE SEGURANÇA - INTERNAÇÃO - SUBSTITUIÇÃO - TRATAMENTO AMBULATORIAL - POSSIBILIDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDA. 1. A medida de segurança aplicada em virtude de sentença absolutória imprópria deve perdurar por tempo indeterminado, persistindo enquanto não se verificar a cessação de periculosidade do réu. No entanto, considerando o óbice constitucional à pena perpétua, o prazo de duração da medida de segurança não pode ser eterno, ficando jungido ao período máximo de trinta anos, conforme interpretação sistemática e teleológica dos artigos 75 e 97 do Código Penal. 2. Ainda que o crime seja punido com pena de reclusão, justifica-se a substituição da internação do inimputável por tratamento ambulatorial, pois além desse ser mais indicado, não há evidências de periculosidade, devendo ser estimulada a sua recuperação.” (TJMG - Apelação Criminal 1.0518.07.115704-5/001 - Relator(a): Des.(a) Paulo Cézar Dias - Julgamento 20/11/2012.)
Pensa-se, entretanto, que se deve ir mais além. Com fundamento nos inafastáveis princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, este último condicionante de validade do ato do agente estatal,[3] e, ainda, para maximizar a individualização da medida limitadora de liberdade imposta na seara penal, o melhor caminho parece ser o de limitar o tempo de imposição da medida de segurança, no caso de inimputabilidade superveniente à sentença condenatória transitada em julgado, ao montante da pena cominada in concreto para o crime, descontada, por óbvio, a pena anteriormente cumprida.
Primeiramente, há que se respeitar a coisa julgada, não somente em observância ao preceito constitucional de imutabilidade das decisões por ela cobertas, matizes da estabilidade e da segurança jurídica, mas também pelo fato de que entre basear-se em prazo estabelecido abstratamente pelo legislador ou em prazo fixado em concreto pelo julgador, que se debruçou sobre as múltiplas variáveis da questão submetida à jurisdição, inegavelmente melhor que este último prevaleça.
Segundo, a abordagem se mostra mais consentânea com a política do respeito aos direitos fundamentais, tendo em vista que impõe limitação ao tempo de cerceamento da liberdade individual da pessoa, o que é sempre preferível no Estado Democrático de Direito, sendo o óbice ao ir e vir uma exceção adotada somente em casos extremos[4].
Ademais, a solução proposta não está dissociada da finalidade precípua do instituto, qual seja a de prestar assistência curativa ao inimputável, consistindo tão somente na limitação do prazo em que a pessoa será tratada sob os auspícios da Justiça Criminal.
Superado o limite do tempo de cumprimento de pena, não resta dúvida de que o Estado continua a ser responsável por prover o adequado tratamento à pessoa, devendo fazê-lo, porém, sob a tutela do juízo cível, que adotará as medidas cabíveis, na estrita forma da lei, após provocação, se o caso, do Ministério Público.
É como pondera autorizada doutrina:
“Por respeito à coisa julgada, a duração da medida de segurança que substituirá a pena privativa de liberdade não poderá ser superior ao tempo desta. Diante disso, o condenado somente ficará recolhido em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou em outro estabelecimento adequado durante o período faltante para o cumprimento da pena corporal.” (MOSSIN, Heráclito Antonio. “Compêndio de processo penal”. São Paulo: Manole, 2010, p.292)
“Assim também, se no curso da execução da pena houver a substituição por medida de segurança, a duração desta está limitada a pena imposta da sentença condenatória transitada em julgado, em respeito à coisa julgada, descontando-se o período de resgate da pena. Nesse sentido, se lhe foi imposta uma pena de 06 (seis) anos, estando o sentenciado em cumprimento de pena, tendo já resgatado dois anos da referida sanção, somente poderá ser submetido a uma medida de segurança pelo prazo de 04 (quatro) anos.” (SOUZA, Lara Gomides de. “O caráter perpétuo das medidas de segurança”. Disponível em http://ww3.lfg.com.br /public_html/article.php?story=20060809115009620&mode=print. Acesso em 04.05.13.
Recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça trilharam esse caminho jurídico:
“A medida de segurança aplicada em substituição à pena privativa de liberdade, prevista no art. 183 da LEP, se limita ao término da pena estabelecida na sentença, sob pena de ofensa à coisa julgada e ao princípio da proporcionalidade. In casu, no curso da execução criminal, em razão da constatação de superveniente doença mental, a pena privativa de liberdade imposta ao paciente foi convertida em medida de segurança. Portanto, extrapolado o prazo de cumprimento da pena privativa de liberdade, deve cessar a intervenção do Estado na esfera penal, ainda que não cessada a periculosidade do paciente. Hipótese na qual o MP poderá buscar a interdição do paciente perante o juízo cível, se necessário à sua proteção ou da sociedade. Precedentes citados: HC 44.972-SP, DJ 8/10/2007, e HC 130.160-SP, DJe 14/12/2009. HC 130.162-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 2/8/2012.”
“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO. COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DESTE TRIBUNAL, EM CONSONÂNCIA COM A SUPREMA CORTE. EXECUÇÃO CRIMINAL. SUPERVENIÊNCIA DE DOENÇA MENTAL. MEDIDA DE SEGURANÇA SUBSTITUTIVA. CUMPRIMENTO INTEGRAL DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA, DE OFÍCIO. (...) Se no curso da execução da pena privativa de liberdade sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental do condenado, o Juiz das Execuções poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança, a teor do disposto no art. 183, da Lei de Execuções Penais. A duração dessa medida substitutiva não pode ser superior ao tempo restante para cumprimento da pena, sob pena de ofensa à coisa julgada. Precedentes do STJ. 4. Assim, ao término do referido prazo, se o sentenciado, por suas condições mentais, não puder ser restituído ao convívio social, o Juízo das Execuções Penais o colocará à disposição do Juízo cível competente para serem determinadas as medidas de proteção adequadas à sua enfermidade (art. 682. § 2.º, do Código de Processo Penal). 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem de habeas corpus concedida, de ofício, para restringir a duração da medida de segurança ao tempo que faltar para o cumprimento da pena imposta, recomendando-se, outrossim, ao Juízo da Execução Criminal de São Paulo, a providência prevista no art. 682, § 2.º, do Código de Processo Penal.” (HC 249790 / MG – REL. Ministra LAURITA VAZ – J. 25.09.12)
Em suma, em relação à pergunta originalmente formulada, a resposta que apresenta maior conformidade com a ordem jurídica garantidora dos direitos fundamentais é a de que o prazo da medida de segurança substitutiva deve ser o do restante da pena concretizada na sentença condenatória, sempre limitada a trinta anos.
REFERÊNCIAS
MESQUITA JUNIOR, Sidio Rosa de. “Execução criminal - teoria e prática”. São Paulo: Atlas, 2010
MIRABETE, Julio Fabbrini. “Execução penal”. 9º ed. São Paulo: Atlas, 2006.
MOSSIN, Heráclito Antonio. “Compêndio de processo penal”. São Paulo: Manole, 2010.
NOVELINO, Marcelo. “Direito constitucional”. São Paulo, Método, 2011, p.196-197
SOUZA, Lara Gomides de. “O caráter perpétuo das medidas de segurança”. Disponível em http://ww3.lfg.com.br /public_html/article.php?story= 20060809115009620&mode=print. Acesso em 04.05.13.
Notas
[1] Ag.Ex. 1.0672.08.289587-7/001 – Rel. Des. Catta Preta – Julg. 25.04.2013 e Emb.Infr. e de Nulidade 1.0713.07.069407-8/002 – Rel. Des. Júlio César Lorens – Julg. 30.04.13.
[2] MESQUITA JUNIOR ensina: “Existem vários posicionamentos acerca da natureza jurídica da medida de segurança, todavia, até o momento não existe um entendimento pacífico com relação ao tema. Discute-se se a medida de segurança teria um caráter de sanção penal, com fundamentação diversa ou igual a pena, ou somente um caráter administrativo” (MESQUITA JUNIOR, Sidio Rosa de. “Execução criminal - teoria e prática”. São Paulo: Atlas, 2010, p. 448.)
[3] A proporcionalidade atua como critério de aferição da legitimidade material dos atos praticados pelos poderes públicos, sendo que a extensão e a intensidade do controle exercido irão variar de acordo com o tipo de ato analisado. (NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. São Paulo, Método, 2011, p.196-197).
[4] “Se a sanctio legis importa em restrição ao ius libertatis individual, nada mais justo que o Estado, antes de tornar efetivo seu dever de punir, como manifestação do seu imperium, o confronte com o direito de liberdade daquele contra quem vai exercer o ius puniendi. (MOSSIN, idem, p.54)