A compaixão pelos animais está intimamente ligada a bondade de caráter, e quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.
Arthur Schopenhauer
Sumário: Introdução. 1. Casos notórios no Brasil 2. Legislação aplicável aos maus-tratos contra animais. 3. Os maus-tratos contra animais e sua repercussão na seara da família: a perda do poder familiar. 4. Considerações finais.
Introdução
Os movimentos em prol dos direitos dos animais foram historicamente baseados em ideais de bem-estar. Por volta de 1800, as organizações dedicadas à proteção dos animais começaram a se formar, e as legislações para protegê-los da crueldade passaram a ser amplamente disseminadas. As plataformas filosóficas dessas organizações, usualmente, não se estendiam à consideração do estatuto jurídico dos animais. Hodiernamente, grande parte da discussão sobre estas questões deslocou-se da abordagem tradicional – que se concentrava apenas nos animais de companhia – para uma consideração mais abrangente de animais, incluindo a análise dos usos de espécimes em experimentos científicos e agrícolas.[1]
A verdade é que, atualmente, quando nós juristas refletimos sobre os animais[2], o primeiro pensamento se coloca na velha celeuma sobre a natureza jurídica dos mesmos. Há quem os defenda ferrenhamente, a ponto de se opor a qualquer tipo de discriminação baseada na espécie animal e promover o veganismo, indo contra toda exploração e crueldade contra o reino animal. Há quem os vislumbre como propriedade e não como sujeitos de direito. Há ainda quem sustente que se deve outorgar aos animais em processo de extinção um estatuto básico e aqueles que enxergam a necessidade de que eles devem possuir um status jurídico próprio, que não seriam simples res, mas tampouco sujeitos, caracterizando, assim, um tertium genus.[3]
Apenas para se oferecer uma visão mais atualizada de como os animais passaram a ser enxergados, inclusive pelo Judiciário, se pode trazer à baila um recente caso ocorrido nos EUA. Um casal, que teve o seu cachorro erroneamente submetido à eutanásia, ingressou com um processo contra o abrigo responsável.[4] Em primeira instância a corte condenou o responsável pelo abate do cão à reparação do preço de mercado do animal, como se o mesmo se tratasse de um mero objeto que pudesse ser substituído por outro. Em segunda instância, a Corte de Apelação do Texas decidiu que os donos do “Avery” teriam direito a uma indenização por valor “sentimental” ou “intrínseco” pela perda do seu companheiro, o que no Brasil implicaria a uma indenização por danos patrimoniais (o valor do animal perdido) mais danos morais (a dor sofrida pela sua perda).[5]
A ideia do presente artigo não é solucionar o dissenso doutrinário acerca da natureza dos animais no mundo jurídico.[6] Tampouco possui como escopo criticar as correntes e dizer que lugar os animais deveriam ocupar no meio legal. Não. O objetivo deste escrito é analisar situações graves de maus-tratos que recorrentemente se repetem na sociedade e como a ocorrência desses fatos podem ter consequências no âmbito familiar e para o Direito das Famílias.
A cada dia o número de animais de estimação cresce em todo o Brasil. Vertiginosamente![7] Seja “adotado” na “carrocinha” ou nos canis públicos, seja encontrado em flagelos em uma rua, um presente de um ente querido ou comprado em um caro pet shop, os animais hoje fazem parte de grande parcela das famílias brasileiras. E mais: são considerados, em sua maioria, como verdadeiros membros da família. Se não possuem esse estatuto jurídico (no Brasil, por exemplo, não podemos deixar parte da nossa herança para um cachorro ou um gato como em outros países), é fato que possuem um estatuto fático de genuínos componentes da entidade familiar onde se encontram.
Há casais que se unem e simplesmente não desejam procriar, não desejam possuir descendência. Mas “adotam” cachorros, gatos e outros tipos de animais domésticos a quem carinhosamente chamam de “filhos” e tratam como se sua prole fosse.[8] Em seu íntimo, sentem-se exercitando a parentalidade em relação a seres que não são humanos. Estar-se-ia humanizando os animais, como afirmam alguns veterinários? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas a realidade é que os animais a cada dia se tornam elementos mais importantes dentro de um ambiente familiar saudável.[9]
Mas o que dizer quando existem animais em um lar e os mesmos são sujeitos a torturas, espancamentos e outros tipos de maus-tratos, muitas vezes em frente a crianças pequenas, em processo de formação das suas personalidades?
1. Casos notórios no Brasil
Recentemente, alguns casos de maus-tratos a animais domésticos chamaram a atenção da sociedade e da mídia brasileira. Não apenas pelas fortes imagens das torturas e agressões sofridas pelos bichos indefesos, mas pelo fato – agravante – de tal violência ter sido cometida na presença dos filhos das agressoras, menores de tenra idade.
Em um primeiro caso, ocorrido em Goiás no final de 2011, uma enfermeira chutou, arremessou de um lado para o outro, espancou até a morte um pequeno cão da raça yorkshire, em frente a uma criança de tenra idade, seu filho. Incessantemente, desferiu golpes no pequeno cão e não parou nem mesmo com o choro alto do infante. Ao final das agressões, tampou o cachorro, moribundo, em um balde. O animal não resistiu aos ferimentos e morreu.[10]
Em um outro caso, ocorrido na cidade de Porto Alegre em 2013, um filhote de poodle foi chutado, arremessado contra chão e paredes, violentamente agredido por uma mulher e por seu filho de 3 anos de idade. A certa altura do vídeo que circula na internet com as agressões, a mulher diz textualmente à criança que todos os bichos que forem vistos na rua devem ser maltratados, que devem ser agredidos.[11] Muito embora tenha sofrido um enorme abuso físico, o animal foi resgatado desacordado, mas com vida pelo subsíndico do prédio da agressora, depois que a mesma saiu de casa.[12]
Ao analisar esses dois casos, pensamos nos sofrimento dos pobres animais, indefesos e cruelmente massacrados. Mas há outra realidade subjacente que merece atenção. E as crianças?
No primeiro caso, uma criança foi à sua revelia espectadora das agressões. No segundo caso uma criança de 3 anos foi espectadora e participante, por incitação materna de um verdadeiro espetáculo de violência. Se – indubitavelmente – há a ocorrência de agressões e maus-tratos contra os animais, também há uma violenta afronta à dignidade, ao livre desenvolvimento da personalidade e ao melhor interesse dessas crianças!
São, definitivamente, casos que merecem punição na esfera criminal, em relação aos animais, e na esfera do direito das famílias, em relação às crianças. É certo pensar: pobres animais! Sobre isto, não resta dúvidas. Mas também devemos pensar: pobres crianças! Que tipo de mães/pais são estes que submetem seus filhos a esse tipo de coação moral e física, num verdadeiro ultraje ao conteúdo mais sublime do poder familiar?
2. Legislação aplicável aos maus-tratos contra animais
Os dois casos estão sujeitos à Lei 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penas e administrativas de condutas lesivas ao meio ambiente e dá outras providências. Incorrem, especificamente, no tipo descrito no art. 32 da lei: “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, cuja pena pode variar de três meses a um ano de detenção, e multa.
No primeiro caso, de acordo com a regra do § 2º do art. 32 a pena deverá ser aumentada de um sexto a um terço, tendo em vista a morte do animal. No segundo caso, onde a mãe explicitamente incita o filho menor, de três anos de idade a agredir o animal, também cairia sob a égide da alínea a), inciso II do art. 15 da lei, que agrava a pena quando o agente comete a infração coagindo outrem para a execução material da mesma.
São tais sanções suficientes? Não nos parece. Inclusivamente, no anteprojeto do novo Código Penal, a Comissão de juristas responsável propôs que a pena para tal crime seja aumentada para uma variante de um a quatro anos de prisão e multa. A comissão também aprovou que se o crime resultar na morte do animal, a pena máxima poderá alcançar os seis anos. Como foi afirmado por um dos membros do grupo, é preciso outorgar “aos crimes ambientais a dignidade penal que eles merecem”.[13]
Mas seriam só essas as sanções às quais essas mães estariam sujeitas?
3. Os maus-tratos contra animais e sua repercussão na seara da família: a perda do poder familiar
Estamos aqui a falar de crimes cometidos contra animais, por mães, dentro do ambiente doméstico, na presença de crianças de tenra idade e, em alguns casos, com incitação à participação dos pequenos nos atos de violência. O que isso nos diz sobre essas pessoas, como mães? E quais consequências tais atitudes podem representar frente ao conteúdo do poder familiar e quais reprimendas o direito das famílias poderia oferecer?
Os casos em tela representam uma verdadeira afronta a diversos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente. A olhos nus observa-se logo uma violação aos mandamentos dos artigos 17 e 18 do ECA que rezam sobre o direito ao respeito e a obrigação de velar pela dignidade da criança. “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais” (Art. 17, ECA). Como está assegurada a inviolabilidade psíquica e moral de uma criança eternamente maculada por ter sido espectadora ou participado em um espetáculo de agressões, cuja imagem nunca poderá ser apagada da mente da mesma e da sociedade?
O art. 18 do Estatuto ainda nos indica que é dever de todos “velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Aqui, temos um dever solidário, de toda a sociedade. Não se trata sequer de um dever tão-somente dos pais, mas um dever comum. Quem assistir a qualquer um daqueles vídeos verá que trata-se de uma situação violenta, vexatória e constrangedora, que acompanhará as crianças no decorrer de suas vidas.
O art. 22 do ECA estabelece ainda que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores” e, analogamente, o art. 1.634, I do CC dispõe que “compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e educação”. Questiona-se: que tipo de pessoa se tornará aquele infante que, constantemente, foi espectador e partícipe de rituais de agressões contra animais? Que tipo de criação e educação embute em uma mente ainda em desenvolvimento que violência – contra qualquer ser vivo – mais do que um ato normal, deve ser uma obrigação?
Parece que, em nome da dignidade humana, do livre desenvolvimento da personalidade e do princípio absoluto do melhor interesse da criança, nos casos em tela só há um caminho a seguir e este é amparado, em ultima ratio, pelo nosso ordenamento. A extinção do poder familiar. Note-se que, se as previsões do novo Código Penal se concretizarem, o poder familiar das agressoras já seria suspenso depois do trânsito em julgado da sentença.[14]
Porém, parece-nos um caso ainda mais grave, em que apenas a perda do poder familiar poderia salvaguardar os interesses das crianças envolvidas e evitar maiores danos psíquicos e nas personalidade dos infantes, ainda em construção. De acordo com o art. 1.638, III e IV do Código Civil, “perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo”.
A prática de violência, seja contra animais, seja contra outras pessoas é patentemente contrária à moral e aos bons costumes. O que dizer quando tais atos nefastos são praticados por pessoas, em frente a infantes, cuja criação, educação, garantia da dignidade e do desenvolvimento da personalidade estão a seu encargo?
As consequências de deixar crianças a cargo de seres cujas vidas são dedicadas à disseminação da violência podem ser funestas, para as crianças e para a sociedade como um todo.
4. Considerações finais
Os dados estão aí para quem quiser ver. O Brasil é um país de dimensões continentais, com uma população imensa e enorme também é a população dos denominados animais de companhia. Ao mesmo tempo que acompanhamos no último século uma mudança nas relações familiares e na crescente consideração do afeto, alçado a valor jurídico, acompanhamos, da mesma forma, uma transmudação em como os animais passaram a ser vislumbrados.
Se no meio jurídico o estatuto dos pets ainda é discutido e estamos longe de alcançar um consenso ou uma homogeneidade doutrinaria em sua classificação (bens, sujeitos de direitos ou uma terceira categoria, ainda inominada), uma coisa é fato: quem convive e genuinamente ama o seu animalzinho de estimação, o considera um verdadeiro membro da família, um elemento – com função definida – na entidade familiar, digno de consideração e respeito por parte de todos os componentes do grupo e, na maior parte das vezes, doador e receptor de muito amor.
Entretanto, todas as regras possuem a sua exceção. E a exceção ao afeto que deveria ser oferecido àqueles seres que – voluntariamente – escolhemos colocar dentro do nosso lar é extremamente cruel e, muitas vezes, fatal.
A violência contra os animais domésticos tem se tornado uma manchete recorrente em jornais, na televisão e nas redes sociais. E o mais grave de toda a situação: as agressões, frequentemente, são cometidas na frente de crianças de tenra idade. Em ocorrências ainda mais impensáveis, a violência é cometida com auxílio das crianças – que não possuem a menor capacidade de discernimento – por incitamento dos pais. São casos extremamente preocupantes e que devem chamar a atenção do Ministério Público.
Não apenas em tipos penais incorrem aqueles que cometem tais crimes, sob essas circunstâncias. Também violam máximas constitucionais e dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, além do Código Civil. Casos graves como estes, cuja violência ultrapassa a vida do animal e pousa no seio familiar, podem levar – em nome da dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável, do livre desenvolvimento da personalidade e do melhor interesse da criança – à perda do poder familiar por parte dos agressores.
Notas
[1] Cfr. HUSS, Rebecca J. “Valuing Man's and Woman's Best Friend: The Moral and Legal Status of Companion Animals”. Disponível em: http://www.animallaw.info/articles/arus86marqlr47.htm Acesso em 13/05/2013.
[2] O presente escrito se cingirá à questão do pet ou animal doméstico.
[3] Consultar VARSI, Enrique. “Mi hirro ... Mi perro: la naturaleza jurídica de las mascotas”, disponível em: http://www.enriquevarsi.com/2009_10_01_archive.html Acesso em: 13/05/2013.
[4] O cachorro Avery fugiu de casa e foi recolhido pela “carrocinha” e levado para um abrigo. Os donos o encontraram, mas não tinham à época dinheiro para pagar as taxas referentes ao animal e fizeram um acordo para buscá-lo quando tivessem o montante para saldar a dívida. Todavia, antes do prazo avençado, o cachorro foi abatido.
[5] Essa mudança de uma instância para a outra mostra que, no mínimo, o animal deixou de ser considerado um objeto qualquer para, pelo menos, ser considerado um objeto de “valor inestimável”. Para uma análise completa do caso, veja-se “Groundbreaking Court Ruling Takes Dogs Beyond "Property" Status; Major Pet Industry Groups Not Happy”. Disponível em: http://www.dogster.com/the-scoop/groundbreaking-court-ruling-takes-dogs-beyond-property-status-major-pet-industry-groups-not-happy Acesso em: 13/05/2013.
[6] Por todos, veja-se EPSTEIN, Richard A. “Animals as Objects, or Subjects, of Rights”. Disponível em: http://www.law.uchicago.edu/files/files/171.rae_.animals.pdf Acesso em: 13/05/2013.
[7] Estima-se que no Brasil haja mais de 35 milhões de cachorros, 25 milhões de peixes e quase 20 milhões de gatos. Os dados são da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet). Cfr. “Cachorro é o animal de estimação em maior número no país”. Disponível em: www.rankbrasil.com.br Acesso em: 13/05/2013.
[8] Neste sentido, assevera Dimitre Braga Soares que “paralelamente à mudança na arquitetura dos ambientes familiares, um outro elemento passou a fazer parte cada vez mais forte da família moderna: os animais de estimação. Mas não simplesmente os animais de estimação nos seus papéis tradicionais, mas agora como legítimos membros da família. É cada vez mais comum encontramos pessoas que tratam os seus cães e gatos como parentes. O caráter afetivo das relações que eram totalmente preenchidas com filhos tem sido trespassado para cães e gatos”. SOARES, Dimitre Braga. “Animais de estimação e Direito de Família”. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/531 Acesso em: 13/05/2013.
[9] O que não quer dizer que um ambiente familiar que não tenha animais não seja saudável. A ideia é entender como um bom ambiente aquele que, onde exista um animal, ele seja bem tratado.
[10] Cfr. “Enfermeira espanca, tortura e mata cão yorkshire em GO”. Disponível em: http://mais.uol.com.br/view/b5j8jjgel6it/enfermeira-espanca-tortura-e-mata-cao-yorkshire-em-go-0402CC993868D8992326?types=A& Acesso em: 13/05/2013.
[11] Nas suas palavras: “Todos os cachorros, todos os bichos que tu vê na rua, a gente não trata bem. A gente ´dá-lhe´pau”.
[12] Cfr. “Polícia investiga agressão a filhote de cão em condomínio de Porto Alegre”. Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/05/policia-investiga-agressao-filhote-de-cao-em-condominio-de-porto-alegre.html Acesso em: 13/05/2013.
[13] “Novo Código Penal pode aumentar pena de maus-tratos a animais”. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/05/novo-codigo-penal-pode-aumentar-penas-para-maus-tratos-animais.html Acesso em: 13/05/2013.
[14] Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.