Em recente texto [1] publicado na revista Consultor Jurídico, o Professor Gustavo Brigagão fez interessantes comentários sobre a (não) incidência de ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. De fato, nessa questão tanto a doutrina, quase unânime, mormente a citada no referido texto, quanto a jurisprudência do STF e STJ, firmaram o entendimento uníssono de que o ICMS, nos termos da nossa Constituição, não pode incidir sobre o deslocamento de mercadorias de um estabelecimento para outro de uma mesma empresa. O entendimento parece claro. Mas não é exatamente em torno da questão da incidência ou não incidência que se situa a discussão a se propor.
Pois bem, vamos partir do texto da Lei Complementar 87/96 – Lei Kandir, a lei federal que dispõe sobre as normas gerais do ICMS, pois, afinal, devemos reconhecer, e compreender, que toda interpretação se dá a partir de um texto, como bem nos ensina Lenio Streck, “sem textos não há normas” [2], e citando Gadamer: “se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto lhe diga algo!” [3], enfim, em suas palavras: “levemos o texto jurídico a sério, pois!” [4].
O artigo 12, I da LC 87/96 prescreve:
“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular."
Evidentemente, não se pode ignorar a previsão legal de que ocorre o fato gerador do ICMS na saída de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular, isto é, da mesma pessoa jurídica. O texto nos diz algo, pois não?
Contudo, como já dito, o entendimento doutrinário e jurisprudencial é de que não ocorre o fato gerador nessas operações.
O STJ, v.g., ao julgar o REsp 729.658/PA, declarou:
“O deslocamento de mercadoria para um outro estabelecimento do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do ICMS. (Súmula n.º 166, do E. STJ)”.
A súmula nº 166 do STJ, como se sabe é anterior à vigência da LC 87/96, e, por óbvio, um verbete sumular, por si só, não tem o condão de afastar a incidência de uma lei posterior. Entretanto, o mesmo entendimento é exposto em muitos outros julgados, tanto do STJ quanto do STF, sejam anteriores ou posteriores à vigência da LC 87/96 (nesse ponto me reporto, novamente, ao artigo do Professor Brigagão, em que é citada vasta jurisprudência nesse sentido). Disso resta óbvio que permanece inalterado, consolidado, e corroborado pelo STF, o conteúdo da súmula nº 166, STJ.
Tanto a quase unânime doutrina quanto a jurisprudência do STF e STJ, ao afirmarem a não-incidência de ICMS nessas operações, o fazem num contexto de uma interpretação/aplicação da norma constitucional, ou seja, da definição do ICMS conforme previsto na Constituição, isto é, compreendendo-se a expressão “circulação de mercadorias” como a sua circulação jurídica, e não como a mera circulação física da mercadoria.
Se seguirmos esse entendimento, podemos afirmar que seria incompatível com a Constituição a incidência de ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. É nesse ponto que se concentra, portanto, a discussão ora proposta, vale dizer, quando uma norma (aplicada/interpretada) é contrária ao texto surge o dever de enfrentar o problema da (in)constitucionalidade desse texto, e isso não é uma mera faculdade do intérprete.
Ora, se o texto do art. 12, I da Lei Kandir nos diz um “sim”, enquanto o STJ e o STF nos dizem um “não”, isso tudo da forma mais explícita possível, será que esse “não” poderia prescindir de uma declaração de inconstitucionalidade do referido inciso I do art. 12?
Já é mais que sabido que texto e norma não são a mesma coisa, todavia também se sabe que norma e texto não se separam, o texto é texto na norma e a norma é norma a partir de um texto, como muito bem nos ensina Lenio Streck [5]. Ora, Se o texto diz “sim” e o Tribunal diz “não”, ou seja, se a norma aplicada pelo Tribunal é diametralmente oposta ao texto, isso parece indicar que o Tribunal está declarando a invalidade desse texto (legal).
Porém, como não estamos diante de um caso de antinomia, a declaração de invalidade do art. 12 da LC 87/96, ao que parece, deveria estar fundamentada na sua incompatibilidade com a Constituição. Mas, em vez de declarar a inconstitucionalidade desse dispositivo legal, o STJ optou por fundamentar suas decisões em seu próprio verbete sumular e em sua já “remansosa” jurisprudência, assim como também o faz o próprio STF, guardião da Constituição.
Por certo, é bem mais “cômodo” para o Tribunal seguir essa linha, pois uma declaração de inconstitucionalidade exige maioria em plenário, ou da Corte Especial, no caso do STJ. Deixar de suscitar o incidente de inconstitucionalidade e fundamentar a não aplicação de um dispositivo legal na sua própria jurisprudência permite ao Tribunal um julgamento mais célere. Mas, nesse caso fica claro que o dispositivo da Lei acaba por ser “derrogado” por verbetes jurisprudenciais, e isso, decerto, escancara a fragilidade da (e o desprezo pela) nossa Lei.
O próprio Professor Brigagão encerra seu artigo com a expressão: “Nessa hipótese, é dever de todo e qualquer julgador declará-la inconstitucional!”. Entretanto, se o dispositivo legal em comento é mesmo incompatível com a Constituição, porque não seria obrigação dos Ministros do STJ e do STF declará-lo inconstitucional? Será que o STJ e o STF não estão obrigados a enfrentar o problema da (in)constitucionalidade das Leis?
Por outro lado, se os Tribunais já estão decidindo “a favor dos contribuintes”, porque essa declaração de inconstitucionalidade seria tão importante? O que justificaria exigir-se dos Tribunais “tamanho esforço”? A resposta que aponto é a própria presunção de constitucionalidade das Leis.
Vejamos essa questão. Os agentes públicos fazendários são vinculados à Lei, interpretam a Lei, por óbvio, pois, afinal, não poderiam aplicá-la sem antes interpretá-la, contudo, partem sempre do pressuposto de que a Lei é constitucional.
Portanto, para o Fisco, o art. 12, I da Lei Kandir é válido, é constitucional, e assim, os agentes fazendários vão continuar aplicando penalidades aos contribuintes que deixarem de seguir a regra da incidência de ICMS nas operações de transferência de mercadorias.
Para que o Fisco deixe de aplicar a citada regra da LC87/96, é necessária uma declaração de inconstitucionalidade, pelo STF, com efeitos vinculantes para o Poder Executivo, seja pelo controle concentrado, seja pelo controle difuso, com a aplicação do art. 52, inc. X, CF/88, ou por meio de súmula vinculante. Ou ainda, por iniciativa do próprio chefe do Poder Executivo, a quem, não obstante alguma divergência doutrinária, atribui-se competência para decidir pela inexecução de Lei inconstitucional, como assevera Luis Roberto Barroso, citando vasta e renomada doutrina6.
Enfim, quem faz o lançamento tributário de ofício, quem aplica a penalidade tributária, continua(rá) aplicando o art. 12, I da LC 87/96. E os contribuintes também continuam (e continuarão) seguindo o disposto na Lei.
Aliás, esse é um ponto em que as aparências podem nos levar a um grave equívoco. Não se pense, pois, que as empresas realizam essas transferências de mercadorias sem atentar para a regra da incidência de ICMS. Na verdade, somente em excepcionalíssimos casos o contribuinte deixa de seguir a regra da Lei Kandir e das Leis estaduais do ICMS.
Explicando: como se sabe, o ICMS é não-cumulativo, isto é, compensa-se o imposto devido em cada operação com o imposto incidente na operação anterior (débito e crédito). Então, ao transferir mercadoria para outro de seus estabelecimentos a empresa debita um valor de ICMS que vai ser creditado pelo estabelecimento destinatário. E se não houvesse a incidência nessa operação o contribuinte (emitente da mercadoria) não debitaria o imposto, mas também não se creditaria (no destinatário), ou seja, em tese, não faz diferença para o contribuinte. Digo em tese porque existem algumas distorções na legislação do ICMS que contrariam essa lógica.
Mas, na verdade, a não-incidência só faria diferença, efetivamente, para as próprias Receitas Estaduais, pelo fato de o ICMS incidir na origem em operações interestaduais, havendo, inclusive, diferentes alíquotas (4%, 7% ou 12%), a depender da origem, do destino e da procedência da mercadoria, e ainda pela persistência da terrível e conflituosa questão da “guerra fiscal”, que afeta as operações interestaduais. São esses e outros aspectos que explicam porque a Lei 87/96 prescreve, em seu art. 11, § 3º, inc. II, que para os efeitos das normas do ICMS, considera-se autônomo cada estabelecimento do mesmo titular.
Em outros termos, o cumprimento do disposto no art. 12 da LC87/96, no que se refere às transferências de mercadorias (considerando que as transferências de ativo fixo e material de uso ou consumo incluem outros aspectos não discutidos aqui), por si só, não faz com que o contribuinte pague mais impostos.
O problema, para o contribuinte, está na insegurança jurídica gerada por tal situação, em que o Poder Executivo, por meio de sua administração fazendária, aplica a norma jurídica num determinado sentido, enquanto o Judiciário aplica a norma em sentido oposto. E, sem a declaração de inconstitucionalidade com efeitos vinculantes, vê-se que essa situação permanecerá.
Enfim, se o contribuinte aplica a regra da incidência, paga o imposto no estabelecimento de origem e se credita no estabelecimento destinatário, não há aumento real na tributação de suas operações. Mas se por qualquer motivo ele deixa de aplicar a incidência do ICMS nessa operação, além de não haver o crédito no destinatário, o contribuinte fica sujeito ao lançamento de ofício pelo agente do Fisco, e ainda sujeito à penalidade tributária. Decerto, se essa autuação for questionada no Judiciário, serão cancelados o lançamento do imposto e a penalidade, mas até ser proferida essa decisão, os prejuízos para o contribuinte já estarão extensamente configurados. E para o Fisco, que atua de forma plenamente vinculada, restará o prejuízo de todo um trabalho cujos efeitos serão, depois muito tempo, anulados pela decisão do Judiciário.
Francamente, nesse caso a declaração de inconstitucionalidade seria a decisão mais adequada. E, mais importante ainda, é preciso compreender-se que a adequação constitucional da aplicação da norma jurídica é um dever de todo intérprete do Direito.
Notas
1 BRIGAGÃO, Gustavo. Há incidência de ICMS sobre transferências físicas? Revista Consultor Jurídico. 16 jan. 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jan-16/consultor-tributario-incide-icms-transferencias-fisicas
2 STRECK, Lenio Luiz. Diferença (ontológica) entre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. XLVI, 2006. Disponível em: http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Streck.pdf
3 STRECK, Lenio Luiz. Diferença (ontológica) entre texto e norma.
4 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Revista Novos Estudo Jurídicos, jan-abr 2010. Disponível em: http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308
5 Sobre essa distinção e vinculação entre texto e norma confiram-se as magistrais lições do Professor Lenio Streck, como, p. ex., o texto “ Diferença (ontológica) entre texto e norma”, acima referenciado.
6 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, pág. 386.