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O fenômeno da interceptação ambiental

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28/05/2013 às 14:39
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Autorização judicial

É pacífico o entendimento doutrinário no sentido de que a legislação brasileira exige, para que haja a interceptação ambiental (stricto sensu e escuta ambiental), a devida autorização judicial. Observe-se, a propósito, que o próprio inciso IV do art. 2º da Lei 9.034/95 condiciona a utilização do ato investigatório da interceptação ambiental à “circunstanciada autorização judicial”.

Tais foram as preocupações do legislador com o direito fundamental à intimidade que, malgrado possam ser admitidas, em algumas hipóteses restritas, a relativização desse direito fundamental, quando estiver em colisão com outro direito fundamental, de mesmo valor – tendo em vista que nenhum direito fundamental é absoluto -, impôs ele o requisito formal da autorização judicial como o antecedente necessário à  realização da interceptação ambiental (como ato invasivo que é ao direito à intimidade).

Nesse prumo, a inobservância do requisito da autorização judicial macula o ato investigatório de ilicitude, não devendo ser aproveitada eventual prova decorrente deste ato em sede processual penal, salvo em algumas hipóteses, conforme se verá.

Deve-se frisar também que, embora tenha a lei deixado ao amplo critério judicial (“circunstanciada autorização judicial”) a concessão da medida, tal disposição legal, “evidentemente, não autoriza a dicção de que as medidas invasivas do domicílio possam ser realizadas em descompasso com a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio” (AVOLIO, 2003, p.209).

DISPENSAbilidade De Autorização judicial

Será dispensável a autorização judicial quando a interceptação ambiental ocorrer em local aberto ou público. E essa prescindibilidade de chancela judicial tem sua razão de ser, considerando-se que a finalidade da norma inserta no art. 2º, IV, da Lei 9.034/95 é, justamente, proteger o direito fundamental à intimidade, erigido a nível constitucional no art. 5º, X, da Cartha Magna. Assim, não há que se falar em violação à intimidade em local aberto ao público, pois a própria natureza do lugar retira o caráter de privacidade. Não há como se vislumbrar que uma conduta de uma pessoa praticada numa avenida movimentada ou numa praça pública revista-se de caráter sigiloso. Não há, pois, segredo (segretezza) a se proteger, e muito menos a proteção legal contra a divulgação indevida do segredo (riservatezza ou direito à reserva)6.

Assim é que, conforme observa César Dario Mariano da Silva,

O Supremo Tribunal Federal tem entendido que, quando alguém, utilizando-se de meios técnicos de gravação de sons ou imagens, procede à captação ou interceptação ambiental em lugar público ou aberto, não teremos uma prova ilícita, pois não haverá violação ao direito de intimidade de outrem, justamente pela natureza do local. Atualmente, a polícia e outros órgãos estatais ou particulares vêm-se valendo de filmagens de crimes, tais como os ocorridos no metrô, em lojas, etc. esse meio técnico de gravação está sendo utilizado para a salvaguarda de interesses legítimos, em evidente exercício regular de direito. Assim, o criminoso nunca poderá argüir ilicitude dessa prova. (SILVA, 2007, p.65-66).

Dessa forma, se, v.g., alguém consegue filmar ou gravar a cena de um crime ocorrido em local público (bar, metrô, praça etc), o documento resultante será considerado como uma prova lícita (prova documental), sendo, pois, admissível em processo penal. Assim, nada impede, neste caso, que essa pessoa leve à autoridade aquilo que conseguiu captar (fita magnética, v.g.). Isso porque, num local público, repita-se, não se estabelece um segredo, não havendo que se falar, portanto, em direito de reserva.

Figure-se, assim, a situação em que um crime está sendo cometido em via pública e um transeunte qualquer filma a cena. Inexiste direito ao segredo, pois quem se expõe em público não tem expectativa de privacidade, nem direito à reserva, pois qualquer pessoa pode relatar o que ocorreu na via pública. Resulta claro que nessa hipótese a   prova   consistente  na interceptação ambiental (registro de sons e imagens por um terceiro), conquanto atípica, não tem restrições à sua admissibilidade no processo, já que não viola a intimidade, em qualquer dos seus aspectos acima abordados, nem outro direito ou garantia. Constitui, pois, prova lícita (grifo nosso). (AVOLIO, 2003, p.205).

Ademais, “sob o ponto de vista da sua autenticidade, a tecnologia já possibilita condições para a sua aferição” (AVOLIO, 2003, p.206). 

ADIMISSIBILIDADE DA prova AMBIENTAL ilícita NO PROCESSO PENAL

Prima facie, cumpre esclarecer que o tema das provas ilícitas não constitui objeto deste trabalho. Entretanto, como o mesmo está intimamente relacionado com o objeto ora em estudo (in casu, a interceptação ambiental), é necessário que, ao menos, sejam apontadas as posições doutrinárias e jurisprudenciais mais relevantes e as principais implicações jurídicas quanto à admissibilidade ou não das provas ilícitas no processo penal (uma vez descabida, neste trabalho, uma análise que envolva discussões aprofundadas sobre as provas ilícitas).

Como já explicado, faz-se imprescindível a autorização judicial nos casos em que a interceptação ambiental se realizará em ambiente privado ou fechado. É que justamente nesses locais é que se estabelecem a privacidade e intimidade alheias a serem preservadas.

Assim sendo, eventual elemento probatório colhido em decorrência de uma interceptação ambiental desacompanhada da devida autorização judicial se caracterizará como prova ilícita, não podendo ser admitida no processo, salvo se em favor do réu.

A vedação à utilização da prova ilícita, no processo penal, encontra seu fundamento legal no art. 5º, LVI, que estabelece, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:                                                           LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

Como fundamento jurídico, aponta Avolio:

1. Encontra-se superada, no atual estágio das liberdades públicas, a visão do processo penal como instrumento voltado à busca da verdade real ou material. 2. A verdade a ser alcançada é a verdade judiciária, que pressupõe a observância do contraditório, baseado em critérios de admissibilidade de provas, com exclusão daquelas que atentem contra a dignidade humana. (AVOLIO, 2003, p.147).

Com efeito, a doutrina moderna tem entendido que a busca pela verdade real no processo penal não deve se dar de forma desmedida, a ponto de se transmudar “num valor mais precioso do que do que a proteção da liberdade individual”, “em que a dignidade do homem é aviltada” em prol da “defesa social”. (GRINOVER, et al; 2006, p.148).


Prova ilícita pro reo

É pacífico, na doutrina pátria, o entendimento de que a prova ilícita, se destinada demonstrar a inocência do réu injustamente acusado, pode ser admitida em processo penal, devendo ser aplicado, in casu, o princípio da proporcionalidade.

Também a doutrina e jurisprudência alienígenas têm-se mostrado favorável à admissibilidade da prova ilícita em favor do réu, conforme atentam Grinover, Scarance e Gomes Filho: “assim, na jurisprudência e na doutrina estrangeiras, tem sido vista a conduta da pessoa que grava sub-repticiamente sua conversa com terceiro para demonstrar a própria inocência” (GRINOVER, et. al; 2006, p.153).

Dessa forma, por força do princípio da proporcionalidade (já delineado retro, em nota de rodapé), é óbvio que, na ponderação de interesses entre a proteção do direito fundamental à intimidade e o direito fundamental à liberdade, deve este último prevalecer.

Conforme explica Thiago Pierobom de Ávila, 

Na ordem de valores para estabelecer a preferência condicionada, sem dúvidas a dignidade da pessoa humana desponta como o epicentro da ordem jurídica, revelando-se o Estado e o ordenamento jurídico como meios para a ponderação desse valor humano mais elevado. No caso da utilização da prova pro reo, o valor em ponderação é diretamente a dignidade da pessoa do réu, injustamente acusado de um delito, com o risco de pagar com sua liberdade, perdendo-se alguns anos de sua vida, pela má apreciação dos fatos na atividade jurisdicional (2007, p.203).

Indubitavelmente, uma sentença que imprima uma condenação a uma pessoa que não cometera delito algum é um ato (judicial) atentatório à dignidade da pessoa humana, sendo absolutamente vedado pelo ordenamento jurídico. Tanto é assim que, como manifestação do princípio do in dubio pro reo, é cediço o entendimento de que, em havendo qualquer dúvida em relação ao fato de estar o réu incurso ou não em um determinado tipo penal, deve ser ele imediatamente absolvido! 

Para alguns autores (como, v.g., Daniel Sarmento), a prova ilícita utilizada em favor do réu se justifica pela excludente da ilicitude da legítima defesa7.

Não entendemos desta forma.

Primeiro porque não se trata de legítima defesa, mas de estado de necessidade: a função de investigação e persecução penal realizada de ofício pelo Estado é um ato de soberania ao qual se sujeitam todos os cidadãos. Ainda que o acusado seja inocente e a acusação seja fruto de um conjunto de elementos de informação falsos e de uma má interpretação deles, não se pode afirmar que a ação do acusado seja uma agressão injusta a ponto de qualificar a ação do acusado como legítima defesa (ÁVILA, 2007, p.203-204).

Assim, perfilhamos na doutrina de Ávila, no sentido de que a admissibilidade da prova ilícita no processo penal encontra a sua justificação na excludente de antijuridicidade do estado de necessidade. E o estado de necessidade - assim como a legítima defesa – nada mais é do que uma expressão do princípio da proporcionalidade. Dessa forma,  

A prova obtida com violação de direitos fundamentais, se destinada a provar a inocência do acusado (adequação), sendo a única forma de que este dispõe (necessidade), respeitando a proporcionalidade do bem lesado com o bem a ser protegido (proporcionalidade estrita), deve ser aceita pelo juízo por aplicação do princípio da proporcionalidade (ÁVILA, 2007, 205).

É claro que, se a prova foi produzida pelo réu mediante tortura, a mesma não será admitida no processo penal, por ferir frontalmente a dignidade humana, não sendo aprovada pelo juízo de proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2007).

 


Prova ilícita pro societate

A questão da admissibilidade da prova ilícita pro societate, isto é, em desfavor do réu e em favor da sociedade, é tema extramente delicado e tormentoso, apresentando as discussões mais acaloradas, tanto no âmbito doutrinário, quanto no jurisprudencial.

Em razão de ser dispensado à interceptação (strico sensu e escuta) tratamento distinto do dispensado à gravação clandestina, entendemos ser mais didático subdividirmos o tema.

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Interceptação (stricto sensu e escuta) ilícita

Como bem frisado por Ada Pellegrini Grinover, a Lei 9.296/96 perdeu “uma boa oportunidade para, além de regulamentar as interceptações telefônicas, ditar a disciplina própria das ambientais” (GRINOVER; et. al, 2006, p.221).

Somente com a Lei 10.217/2001 – que acrescentou o inciso IV do art. 2º da Lei 9.034/95 – foi que as interceptações ambientais passaram a ser possíveis de serem utilizadas na busca de provas, desde que haja, previamente, circunstanciada autorização judicial.

Assim, até o advento da Lei 10.217/2001, manifestava-se Luiz Flávio Gomes pela inadmissibilidade da prova decorrente de interceptação ambiental em razão de não haver, à época, uma lei que a autorizasse e disciplinasse a medida. É que, para esse autor, tão-somente a prova disciplinada por lei pode ser admissível num processo penal (AVOLIO, 2003).

Já para Francisco Torquato Avolio, a prova decorrente da interceptação ambiental era inadmissível antes do avento da lei 10.271/2001, mas não porque tão-somente devem admitidas em processo penal as provas típicas – pois também as provas atípicas podem ser admitidas no processo penal, desde que não haja colisão com o ordenamento  jurídico –,  e   sim  porque,  no  caso  específico da interceptação ambiental, “se o princípio da proporcionalidade não se mostra válido para legitimar a prova ilícita pro societate, somente à lei seria dado limitar o valor intimidade em face do direito à prova de acusação” (AVOLIO, 2003, p.207).

Sendo assim, independente do fundamento adotado, o que se verifica é que somente a lei pode permitir a interceptação ambiental.

Dessa forma, nos moldes da Lei 10.217/01, somente se afigura lícita a prova decorrente de interceptação ambiental nas hipóteses em que esta for utilizada para se apurar de ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou associações de qualquer tipo – podendo as organizações criminosas serem enquadradas como quadrilha ou bando ou associações, como já explicado –, desde que haja circunstanciada autorização judicial.

Fora essas hipóteses, a interceptação ambiental será ilícita, não sendo admissível em processo penal, “por vulnerar o art. 5º, X, da CF, pelo menos enquanto não houver lei que, razoavelmente, discipline a matéria” (GINOVER; et. e al; 2006, p.221). E isso porque, como argumenta Avolio,

Sob o ponto de vista da acusação, jamais poderia o direito à prova ou o interesse social na punição dos delitos preponderar sobre a intimidade, de modo a admitir-se, pelo cânone da proporcionalidade, uma prova ilícita pro societate. Defendemos que o direito à prova pela acusação não é oponível às liberdades individuais (intimidade, sigilo telefônico, exames invasivos, lie detectors, tortura, coação psicológica etc.). A razão é de ordem jurídica, moral e lógica: ao admitir-se a oponibilidade do direto à prova às liberdades públicas indiscrimidamente, estar-se-ia criando um perigoso precedente para a liberdade e a dignidade da pessoa humana: não poderia mais estabelecer qualquer vedação probatória – todas as provas, ainda que ilícitas, ou seja, as que atentam contra princípios e garantias constitucionais e violam normas de direito material. Seria a derrocada do estado de Direito. (2003, p.202).

Nesse prumo, observe-se, a propósito, o contra senso do legislador em admitir a interceptação ambiental tão-somente para os casos de apuração de ações ligadas a quadrilha ou bando ou associações de qualquer tipo. 

Dessa forma, atente-se que uma pessoa pode, individualmente, praticar crimes mais bem mais graves do que certas quadrilhas ou associações e, nem por isso, permite a lei que a ela seja aplicada a medida investigatória da interceptação ambiental, o que caracteriza crassa lesão ao princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, fere-se o princípio da proporcionalidade quando a interceptação ambiental é aplicada para se apurar ilícitos de pequeno potencial ofensivo relacionados a bando ou quadrilha, se a Polícia dispuser de outros meios de prova, por exemplo. Assim, mas do que urgente, é imprescindível um aprimoramento na disciplina legal das interceptações ambientais.

Vale dizer que, caso seja necessária, para a aplicação da interceptação ambiental, a violação de domicílio, a Polícia não poderá se valer da autorização judicial (circunstanciada) para realizar a medida durante a noite, salvo em se tratando de flagrante delito (AVOLIO, 2003, p.209).

Questão interessante e muito em voga é a que diz respeito às interceptações ambientais realizadas em escritórios de advogados em sede de algumas operações efetuadas pela Polícia Federal, neste ano, que resultaram em prisões de advogados.

Neste ponto, várias são as situações possíveis de serem analisadas.

Se a interceptação ambiental foi realizada pela Polícia Judiciária em escritório de advogados, sem autorização judicial, com o objetivo de obter confissões de seus respectivos clientes, eventual colheita de prova não será aproveitada no processo em razão da contaminação pela ilicitude.

A uma porque a interceptação foi efetuada sem autorização judicial. A duas porque a lei (9.034/95) tão-somente possibilita a interceptação ambiental nos casos de apuração de ações ligadas à quadrilha ou bando ou associação. A três porque a conversa entre o advogado e o seu cliente é sigilosa, e a atuação policial no sentido de devassar esse sigilo representa uma forma de burlar o direito constitucional ao silêncio, além de violar prerrogativa do advogado.

Sendo o silêncio um direito constitucional de qualquer investigado, inclusive do preso – art. 5º, LXIII, constitui-se numa aberração colher diálogos reservados deste com seu defensor. Trata-se de uma burla à regra mencionada, colhendo-se depoimento por intermédio de invasão à intimidade, quando, até mesmo em audiência formal, o investigado possui o direito de permanecer calado. É forma de obter a auto-incriminação, em atitude vedada ao Estado. Nemo tenetur se detegere é o brocardo que sinaliza que ninguém é obrigado a a acusar a si próprio e, o que equivale, as conversas havidas entre advogado e cliente não podem resultar em acusação do réu contra si (COELHO, 2007, p.02).

Se houver a autorização judicial, não se tratará, a rigor, de ato ilegal, mas sim de autorização judicial sem fundamento jurídico, sendo, pois, um error in judicando, devendo a medida judicial ser anulada ou tornada sem efeito.

Situação diversa é aquela em que o advogado é suspeito de agir em concurso com seu cliente. Neste caso, a interceptação ambiental poderá ser admitida, se preenchido os requisitos legais, isto é, se houver circunstanciada a autorização judicial e se se tratar de apuração de ilícito relacionado à ação de bando ou quadrilha ou de associação. Por óbvio, é cediço que o advogado tem apenas imunidade profissional, nos termos conferidos pelo art. 7º, §2º, da Lei 8.906/94 (injúria e difamação). 

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Sobre o autor
Luig Almeida Mota

Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. Ex-Procurador do Estado do Paraná. Ex-Advogado da Petrobras Distribuidora S/A. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal da Bahia. Extensão em Direito Constitucional Avançado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOTA, Luig Almeida. O fenômeno da interceptação ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3618, 28 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24546. Acesso em: 18 nov. 2024.

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