Resumo: Aponta que a Constituição Brasileira adota um modelo dirigente – Demonstra que esse modelo exige ação estatal na concretização de seus objetivos transformadores da sociedade sem prejuízo da livre iniciativa quando esta atender os fins constitucionais – Aponta que a ação estatal deve priorizar o setor difusor de novas tecnologias, o controle do capital estrangeiro e o combate às desigualdades – Evidencia que a ação estatal deve ser planejada democraticamente e o planejamento deve ter garantidos recursos financeiros para sua execução – Levanta sugestões para debate.
Palavras-chave: Desenvolvimento – Constituição Dirigente – Ação estatal e livre-iniciativa - Prioridades.
Sumário: 1. Introdução. 2. Constituição dirigente. 3. A Controvérsia sobre a ação ou inação do estado. 4. Caminhos para a ação. 5. Propostas para debate. 5.1. Tributação 5.1.1. Procedimento para tributar 5.2. Relações de trabalho 5.3. Corrupção 5.4. Integração entre universidade e estado. 6. Considerações finais.
1 Introdução
Muito se discute acerca do papel do Estado no desenvolvimento.
Nessa discussão, encontram-se aqueles que pregam seu afastamento, sob o argumento de que o mercado, por si só, trará o desenvolvimento esperado.
No sentido contrário, há a defesa do controle estatal sobre a economia.
Encontra-se, entre esses dois polos, a posição de que a ação estatal deve ocorrer na medida do necessário à garantia do desenvolvimento.
No presente artigo, com base na Constituição, será feita uma tentativa de extrair os contornos da ação estatal a esse respeito, bem como dos caminhos a serem trilhados.
Ao final, serão levantadas sugestões para debate, relativas aos problemas ligados à tributação, relações de trabalho, corrupção e controle do Estado.
2 Constituição Dirigente
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, segundo GILBERTO BERCOVICI, conquanto ainda seja democrática e social (ou programática) inova em termos de modelo, passando a ser dirigente (2011, p. 208; 2009, p.732).
Com efeito, há nela um plano de desenvolvimento, um projeto de transformação do país para superar o subdesenvolvimento (BERCOVICI, 2009, p. 733; BERCOVICI, 2003, p.295).
Vale salientar que o subdesenvolvimento não é uma etapa evolutiva que desemboca no desenvolvimento. Trata-se de fenômeno paralelo e concomitante, segundo CELSO FURTADO (apud BERCOVICI, 2003, p. 37). A propósito, segundo suas palavras (FURTADO, 1965, p. 184):
O subdesenvolvimento não constitui uma etapa necessária do processo de formação das economias capitalistas modernas. É, em si, um processo particular, resultante da penetração de empresas capitalistas modernas em estruturas arcaicas.
É a execução desse projeto indispensável para romper com a situação econômica do Brasil de mero consumidor de tecnologia externa (GRAU, 2010, p. 231), sendo “necessária uma política deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento econômico como o desenvolvimento social, dada sua interdependência” (BERCOVICI, 2003, p. 37).
Não se trata de buscar o isolamento do país em relação ao mercado internacional (GRAU, 2010, p.232; 234), mas apenas de lhe conferir condições de participação em posição de equilíbrio, aumentando seu poder de barganha e suas chances na concorrência.
3 A controvérsia sobre ação ou inação do Estado
As tentativas de buscar o desenvolvimento ou o uso de tecnologia local, segundo EROS GRAU (2010, p.231), são criticadas pela visão ideológica da “modernização” sob o argumento da irracionalidade dessa postura. A atuação do Estado, por sua vez, é vista como “retrógrada” e como um obstáculo ao desenvolvimento (GRAU, 2010, p.232).
Prega-se a maximização de liberdade e minimização do Estado, com base em teóricos como ADAM SMITH (2005, p. 103), para quem “the policy of Europe, by not leaving things at perfect liberty, occasions other inequalities of much greater importance” (“a política da Europa, por não deixar as coisas em perfeita liberdade, ocasiona outras desigualdades de importância muito maior” [tradução livre]).
Em tradução recente de sua obra para o português, esse pensamento ainda pode ser visto em afirmações como: “a intervenção governamental na economia tende a resultar em mais ineficiência, injustiça e, até mesmo, mais predação do que iríamos encontrar em um mercado completamente livre” (2010, p.119).
Ainda segundo ADAM SMITH (2005, p.19):
“It is not from the benevolence of the butcher the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own interest. We address ourselves, not to their humanity, but to their self-love, and never talk to them of our own necessities, but of their advantages.” [Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses. Apelamos, não para sua humanidade, mas pelo seu amor-próprio, e nunca falamos nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter] [tradução livre]
Quisesse ou não, seu pensamento teve influência na implantação do livre comércio (CERQUEIRA, 2003, p.4):
“No círculo mais amplo dos homens públicos, a doutrina liberal de Smith também encontrou seus admiradores. Seus princípios foram gradualmente difundidos e implementados, de tal modo que, na segunda metade do século XIX, o livre comércio foi aclamado como a mais importante conseqüência prática de sua obra. Entre estes admiradores, a adoção do laissez-faire era entendida como o resultado de um consenso sobre os princípios básicos da economia política. Julgava-se que os temas que ainda suscitavam alguma controvérsia teórica estariam limitados a aspectos secundários da doutrina e que haveria pouco a ser acrescentado aos princípios enunciados por Smith e ampliados e desenvolvidos por Ricardo e seus seguidores.”
Mas o laissez-faire encontra sérios óbices, como ressalta JOHN MAYNARD KEYNES (1984, p.117):
“a conclusão de que os indivíduos que agem de maneira independente para seu próprio bem produzem maior volume de riqueza depende de uma série de pressupostos irreais, com relação à inorganicidade dos processos de produção e consumo, à existência de conhecimento prévio suficiente das suas condições e requisitos e à existência de oportunidades adequadas para obtenção desse conhecimento.”
A mesma conclusão é apontada por CELSO FURTADO (1965, pp.24-26):
O aumento da produtividade econômica no plano da empresa significa, algumas vezes, apenas aumento de lucros para o empresário, sem qualquer repercussão na renda global.
[...]
Na obra de Adam Smith o estudo da produção, se bem tratado de forma desigual, ocupa um grande espaço. Preocupou-se ele com este problema, que depois desaparecerá, praticamente, das cogitações dos clássicos ingleses: por que cresce o produto social? Atribui a causa desse fenômeno à divisão do trabalho, à qual empresta três virtudes: aumento de destreza no trabalho, economia de tempo e possibilidade do uso de máquinas. Depois dessa saída tão feliz, a análise de Smith baixa bruscamente de nível: afirma que a divisão do trabalho é resultado da “propensão do homem para comerciar” e que o tamanho do mercado limita a divisão do trabalho. Caímos, assim, num círculo vicioso, pois o tamanho do mercado depende do nível de produtividade, este último da divisão do trabalho, a qual por seu lado depende do tamanho do mercado.
Segundo CERQUEIRA (2003, p. 14), a própria interpretação que se faz de que ADAM SMITH defendia interesses puramente egoísticos como instrumento de alcance dos interesses coletivos não se mostra sólida:
Sen afirma existirem poucos indícios de que ele realmente pensasse assim e julga que um retorno a sua obra se justifica diante do desafio de repensar a teoria econômica “porque Smith foi figura de máxima importância na origem da economia e também porque o tratamento que ele deu ao tema é verdadeiramente esclarecedor e útil” (Sen, 1999: 37-8).
Essa visão de ADAM SMITH (apud KLABIN, 2011, pp. 304-305) é corroborada pelo seguinte trecho de sua obra “Teoria dos Sentimentos Morais”:
O homem justo e virtuoso está sempre disposto a sacrificar o seu interesse privado pelo interesse público da sociedade da qual ele participa. Ele está sempre disposto, igualmente, que o interesse de sua sociedade seja sacrificado em prol do interesse maior do Estado do qual é apenas parte subordinada. Ele deve considerar todos os infortúnios que ele mesmo possa sofrer, ou seus amigos, ou sua sociedade, ou seu país, como necessários para a prosperidade do Universo. Ele deve submeter-se como se soubesse de todas as conexões e interdependência entre as coisas; deve, com resignação, submeter-se sincera e devotadamente às situações de infortúnio que ele desejaria se soubesse da importância que têm para o todo.
O debate, no Brasil, acerca do cabimento da ação estatal também se instala no meio jurídico na era Vargas. Waldemar Ferreira defendia o liberalismo e Oliveira Viana pregava a intervenção estatal (LOPES, 2002, p. 384).
Enfim, conquanto a base da corrente que afasta o Estado seja questionável na origem, após a 2ª Guerra há uma volta da defesa do laissez-faire (VON MISES, 2010, p. 830):
Laissez-faire não significa: deixem funcionar as forças mecânicas e desalmadas. Significa: deixem os indivíduos escolherem de que maneira desejam cooperar na divisão social do trabalho; deixem que os consumidores determinem o que os empresários devem produzir. Planejamento significa: deixem ao governo a tarefa de escolher e a capacidade de impor suas decisões por meio do aparato de coerção e compulsão.
Em 1947, com Friedrich August Hayek e outros intelectuais, instituiram a Mont Pelerin Society, de onde surgiu o movimento conhecido como neoliberalismo, consistente na defesa das posições de economistas como Adam Smith e John Stuart Mill, isto é, Estado mínimo (MARTINS, 2011, p.154).
Milton Friedman, que foi um dos intelectuais do referido grupo, era professor da Universidade de Chicago e nela difundiu as ideias do neoliberalismo, dando origem à Escola de Chicago, o maior polo acadêmico desse movimento (MARTINS, 2011, p. 154).
A Escola de Chicago possuía pretensão e implantar seus ideais universalmente e isso foi facilitado pelo fim da Guerra Fria. Em 1989 foram reunidos em Washington, por convocação do Institute for International Economics, representantes do Fundo Monetário Nacional, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Governo Norte Americano para discutir as reformas necessárias para a América Latina. O diretor desse Instituto, John Williamson, apresentou dez pontos de consenso entre os participantes, sendo essa conclusão conhecida como Consenso de Washington (MARTINS, 2011, p. 160).
GILBERTO BERCOVICI (2011, pp. 237-238) traz essa relação de propostas neoliberalistas:
A aplicação das teses neoliberais na América Latina foi imposta pelo chamado “Consenso de Washington”, um programa de dez instrumentos de política econômica e fiscal sintetizado pelo economista John Williamson: disciplina fiscal, reordenação e controle rígido dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização das taxas de juros, liberalização das taxas de câmbio, liberalização do comércio, liberalização dos investimentos estrangeiros, privatização de empresas estatais, desregulação econômica e garantias efetivas aos direitos de propriedade.
Dentro desse período de retomada da defesa liberal, a crise do petróleo também teve repercussão (BERCOVICI, 2011, pp. 47-48):
De acordo com Kaldor, o pior efeito da crise do petróleo gerada pela OPEP foi ter propiciado o retorno com força do monetarismo e do laissez-faire. A adoção do ideário neoliberal de políticas econômicas de ajuste estrutural ignora a interdependência da racionalidade econômica e da racionalidade política. Ao se preocuparem em limitar e diminuir a margem de atuação do Estado, os neoliberais se esquecem de que, no caso dos Estados exportadores de minérios ou petróleo, há uma necessidade de fortalecimento, não de enfraquecimento, da autoridade estatal.
A concretização dos ideais neoliberais levou, entre outras coisas, a uma busca pela garantia do capital em detrimento do social (BERCOVICI, 2011, pp. 241-242):
A adoção das políticas ortodoxas de ajuste fiscal e a implementação das medidas de redução do papel do Estado na economia e de atração de investimentos estrangeiros fez com que se tornasse necessário garantir determinadas medidas de política econômica mesmo contra as maiorias políticas, gerando um processo de reformas constitucionais em vários países, cujo objetivo, na síntese de David Schneidermann, foi “constitucionalizar a globalização econômica”. Com a garantia dos investimentos constitucionalizada e a retórica sobre “segurança jurídica”, “regras claras”, “respeito aos contratos”, “Estado de direito”(ou “rule of law”) sendo utilizada contra qualquer atuação estatal que contrarie os interesses econômicos dominantes, institui-se um fenômeno que denominei “blindagem da constituição financeira”, ou seja, a preponderância das regras vinculadas ao ajuste fiscal e à manutenção da política monetária ortodoxa que privilegia os interesses econômicos privados sobre a ordem constitucional econômica e as políticas distributivas e desenvolvimentistas.
Ligada às ideias neoliberais, está o “princípio da subsidiariedade”, segundo o qual, a atuação do Estado somente seria legítima quando fosse subsidiária, quando insuficiente ou falha a inciativa privada. Além disso, sua posição na economia não seria superior, mas estaria no mesmo nível que a iniciativa privada (BERCOVICI, 2011, pp. 267-271)
Independentemente da questão sobre o cabimento ou não da ação estatal, a industrialização como instrumento de desenvolvimento parece ser consenso mesmo para o radical liberalista LUDWIG VON MISES (VON MISES, 2010, p.711).
Daí a importância de verificar qual a melhor forma de propiciar essa industrialização e, por conseguinte, o desenvolvimento, podendo-se utilizar, em primeiro lugar, a história como referência.
Sob esse aspecto, “ao observar o que foi erigido pela sociedade brasileira, é difícil deixar de perceber que o Estado teve um papel fundamental e que sua atuação foi decisiva para que todas as iniciativas nos campos econômicos e sociais fossem bem-sucedidas” (MATIJASCIC, 2010, p.9).
Há estudos que conferem certeza a essa relação de causa e efeito entre atuação estatal e desenvolvimento (DRAIBE, 2004, pp. 87-88):
Restam, hoje, poucas dúvidas sobre o fato de que, entre 1930 e 1945, no mesmo período em que se desencadeava a primeira fase da industrialização brasileira – industrialização restringida-, amadurecia também um projeto de industrialização pesada. Naquele momento, a ação estatal foi decisiva tanto no movimento econômico real quanto na tentativa de definir o processo e tomar a iniciativa da instalação das indústrias de base no país.
Ante às teses mais tradicionais de que a aceleração industrial no pós-30 foi devida a resultados não esperados das políticas anticrise, já se demonstrou que a orientação da política econômica foi uma entre várias alternativas em jogo, e que o Estado, ao adotá-la, estabeleceu, de fato, uma política de desenvolvimento econômico que contemplava a industrialização entre seus objetivos prioritários. (destaques do original)
O Brasil chega à atualidade como a sexta economia mundial, superando a Inglaterra e podendo chegar à quinta posição. Ocorre que a mesma fonte que trouxe essa notícia, relata que o PIB per capta do Brasil , segundo dados do FMI, é de US$12,916 e o da Inglaterra chega a US$39,604 (ECONOMY WATCH, 2011).
Assim, o projeto de transformação ainda não terminou e sua execução depende da superação da questão sobre o cabimento ou não da ação estatal.
Antes de enfrentá-la, é preciso de certa forma superar a própria autoimagem negativa de país subdesenvolvido.
É importante a construção de uma imagem positiva do país no cenário externo para gerar confiança e atrair investimento produtivo.
É relevante também no âmbito interno para elevar a autoestima do povo e aumentar a esperança em um futuro melhor, para que cada um perceba as vantagens de investir em si, em se educar, em participar da vida política.
Enfim, deve-se divulgar o sucesso da economia no âmbito interno e externo, mas seu insucesso importa prioritariamente ao Brasil.
A propósito, problemas sociais não são privilégio brasileiro, mas também estão presentes nas “nações desenvolvidas”, embora não haja o mesmo enfoque midiático nesses casos. A título de exemplo, ZIGMUNT BAUMAN (2000, p.178) traz a situação dos Estados Unidos da América:
Ao mesmo tempo, nos EUA, de longe o país mais rico do mundo e terra natal do povo mais abastado do planeta, 16,5 por cento da população vive na pobreza, um quinto dos homens e mulheres adultos não sabe ler nem escrever e 13 por cento têm uma expectativa de menos de 60 anos de vida.
Voltando então à questão posta, é necessário perquirir qual o papel do Estado no desenvolvimento e esse papel deve ser visto a partir do texto constitucional.
Nesse contexto, em primeiro lugar, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 não adotou nenhum modelo econômico exclusivo (BERCOVICI, 2011, p. 260). Por isso, não estão corretos, segundo GILBERTO BERCOVICI (2011, p. 261), os que defendem, com base nela, um liberalismo fundamentalista e o afastamento do Estado do cenário econômico.
De acordo com BERCOVICI (2011, pp. 261-262), a propósito, é contraditório pregar esse afastamento do Estado somente em relação à implantação de políticas distributivas e às normas de direitos sociais, mas não no que diz respeito à atuação em favor do ajuste fiscal para garantia dos investimentos privados. Aliás, ao contrário, nesse âmbito, a ação estatal não só não é criticada, como é defendida (BERCOVICI; MASSONETO, 2006, 19).
A Constituição, aliás, incorpora princípios nitidamente contrários à ideologia liberal. “O Estado não só pode como deve atuar na esfera econômica e social, legitimado por toda uma série de dispositivos constitucionais” (BERCOVICI, 2011, p. 271).
Essa atuação é necessária porque o subdesenvolvimento, como dito, não é uma mera fase rumo ao desenvolvimento, não é simples momento histórico cujo tempo se encarregará sozinho de trazer sua superação.
Essa superação deve mirar na destinação do excedente produzido pela coletividade em capacidade produtiva, segundo CELSO FURTADO (1965, pp. 113-114; BERCOVICI, 2011, pp.306-307).
O instrumento para regular essa destinação é o direito econômico (BERCOVICI, 2011, p. 309):
O direito econômico tem como objetivo, assim, também as formas e meios de apropriação do excedente, seus reflexos na organização da dominação social e as possibilidades de redução ou ampliação das desigualdades. A preocupação com a geração, disputa, apropriação e destinação do excedente é o que diferencia o direito econômico de outras disciplinas jurídicas que também regulam comportamentos econômicos. O fundamento da regulação proporcionada pelo direito econômico não é, portanto, a escassez, mas o excedente.
Então resta apontar quando o Estado deverá utilizar esse instrumento agindo, controlando ou influenciando a economia.
Uma total inércia pode ser afastada de plano, uma vez que não teria sentido o art.3º da Constituição ter elencado uma série de objetivos para a República se estes pudessem ser alcançados com a simples inércia estatal.
Ao atribuir esses objetivos à República, atribuiu-os a todo o povo brasileiro, de modo que esse dispositivo constitucional pode ser visto de dois pontos de vista: a partir da perspectiva privada individual e a partir do ponto de vista coletivo.
Em primeiro lugar, considerando-o a partir do ângulo do particular, sua atuação, conquanto livre, deve ocorrer tendo em vista o bem comum (BERCOVICI, 2011, pp. 263-264):
A previsão do valor social da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica constitucional significa que a livre iniciativa não é garantida em termos absolutos, mas como atividade que contribui para o progresso da sociedade. Por mais ampla que seja a concepção de “valor social”, o significado mínimo diz respeito a algo não individualista. A iniciativa privada é limitada e suscetível de ser vinculada positivamente na direção da utilidade social, em uma perspectiva não individualista, suficiente para excluir a visão atomística idealizada dos agentes econômicos eficientes e racionais das teorias econômicas neoclássicas. O fato de o valor social da livre iniciativa estar previsto como fundamento da República e da ordem econômica constitucional prescreve o objetivo de satisfação dos interesses econômicos gerais, não exclusivamente os individuais, com preferência aos setores tradicionalmente em desvantagem (como trabalhadores, pequenos proprietários, pequenos empresários, cooperados etc.) nos confrontos econômicos com grupos mais privilegiados.
Enfim, mesmo a iniciativa privada é vinculada e seus bens, se empregados como meios de produção, devem cumprir uma função social (COMPARATO, 1986, p.37):
A chamada função social da propriedade representa um poder-dever positivo, exercido no interesse da coletividade, e cinocnfundível, como tal, com restrições tradicionais ao uso de bens próprios. A afirmação do princípio da função social da propriedade, sem maiores especificações e desdobramentos, tem-se revelado, pela experiência constitucional germânica, tecnicamente falha.
A destinação social dos bens de produção não deve estar submetida ao princípio da autonomia individual nem ao poder discricionário da Administração Pública. O abuso da não utilização dos bens produtivos, ou de sua má utilização, deveria ser sancionado mais adequadamente.
Não só os bens possuem uma função social, mas o próprio mercado em que eles são transacionados.
Nesse aspecto, o art. 219 da Constituição (BRASIL, 1988) é expresso:
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.
O segundo ângulo do art. 3º é aquele a partir do coletivo, do Estado. Objetivos da República são objetivos do Estado. Aliás, ele é o principal destinatário das referidas normas, não só dos objetivos do art. 3º, mas também a observância dos princípios do art. 170 da Constituição (GRAU, 2010, p.45),
Ao se fixarem esses objetivos, em princípio, espera-se uma ação para alcançá-lo e uma ação do ente para quem tais objetivos tenham sido estabelecidos.
Cabe destacar que a previsão de direitos ou a fixação de objetivos pode ser vista de duas formas. De um lado, pode representar uma conquista, no sentido de se obter uma vinculação estatal ao cumprimento dos ditames traçados na Constituição.
De outro, representa motivo de angústia, pois só se preocupa em assegurar aquilo que efetivamente se receia perder, só se coloca como objetivo aquilo não ainda não se alcançou.
Em suma, ao dizer o constituinte, entre outras coisas, que se deveria construir uma sociedade livre, justa e solidária, reconheceu-se uma realidade a ser superada, uma sociedade oprimida, injusta, individualista e segregada (BERCOVICI, 2003a, p. 560).
GILBERTO BERCOVICI (2011, p. 264), por isso, aponta a legitimação da atuação Estado:
O valor social da livre iniciativa condiciona os detentores de privilégios e poder econômico à conformidade com o interesse coletivo, legitimando a atuação do Estado na execução das diretrizes constitucionais.
O art. 219 da Constituição, por exemplo, ao estabelecer que o mercado interno deve ser incentivado no sentido de promover o desenvolvimento, fundamenta a intervenção estatal, segundo EROS GRAU (apud BERCOVICI, 2011, p. 219).
Esse dispositivo traduz juridicamente a política de internalização dos centros de decisão econômica do país como forma de garantir sua soberania econômica (BERCOVICI, 2011, p. 219).
Ele não representa a adoção de uma economia de mercado, mas a colocação do mercado como centro dinâmico do desenvolvimento e sob o controle da Nação para propiciar o desenvolvimento esperado, com redução das desigualdades sociais (BERCOVICI, 2011, p. 219).
AMARTYA SEN (2000, pp. 169-170) reconhece o importante papel do mercado na economia, mas salienta que ele deve ser complementado pela iniciativa pública:
[...] Não se pode duvidar das contribuições do mecanismo de mercado para a eficiência, e os resultados econômicos tradicionais, nos quais a eficiência é julgada segundo a prosperidade, a opulência ou a utilidade, podem ser estendidos também para a eficiência no que se refere a liberdades individuais. Mas esses resultados de eficiência não põem, sozinhos, garantir a equidade distributiva. [...]
No contexto dos países em desenvolvimento, a necessidade de iniciativas da política pública na criação de oportunidades sociais tem importância crucial.
Por isso, para EROS GRAU (2010, p. 45), a política neoliberal “é incompatível com os fundamentos do Brasil, afirmados no art. 3º da Constituição de 1988, e com a norma veiculada pelo seu art. 170.”
Enfim, nem o Estado deve ser mínimo e nem o indivíduo deve ser máximo.
Mas afirmar que o Estado pode agir não significa que ele deva agir sempre.
A polêmica sobre a necessidade ou cabimento de o Estado atuar ou não na busca do desenvolvimento deveria ser superada com a leitura atenta do texto constitucional.
É curioso, contudo, que ambas as correntes se apeguem nesse mesmo texto para deduzir suas conclusões totalmente díspares.
Sem embargo, partindo dessa premissa, a solução se deve basear principalmente no confronto dos fatos com os objetivos fundamentais da República contidos no art. 3º e com os princípios da ordem econômica previstos no art. 170, ambos da Constituição.
Tendo essas diretrizes em mente, qualquer postura do Estado que as contrarie ou atenda em menor grau do que possível estará em confronto com os ditames constitucionais. A propósito, as diretrizes do art. 3º consubstanciam uma fórmula política que sintetiza princípios ideológicos da Constituição e representa até mesmo um limite material para sua reforma (BERCOVICI, 2003a, p.561).
Se em determinado caso o mercado estiver atuando perfeitamente, propiciando adequada distribuição de riqueza, não haverá sentido na atuação do Estado, mesmo porque, possuindo recursos escassos, deve utilizá-los onde seja efetivamente necessário e onde propicie um atendimento ótimo dos fins a que está vinculado.
Num ambiente em que seja possível a livre escolha, deve-se concordar com os liberais no sentido de que a somente a própria pessoa saberia o que é melhor para si (VON MISES, 2010, p. 38).
Ao que tudo indica, então, não se deve radicalizar, seja extinguindo o Estado, seja agigantando-o de tal forma a sufocar as individualidades. A razão reta, inflexível, que não se molda ao caso concreto buscando equidade já era criticada desde ARISTÓTELES (2003, p. 125), quando tratou da justiça:
O que origina o problema é o fato de o equitativo ser justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares.
Retornando ao texto constitucional, há dois tipos de atividades objeto de controvérsia quanto ao cabimento da atuação estatal. Usando a terminologia de EROS GRAU (2010, pp. 99-107), elas seriam as atividades econômicas em sentido estrito, referidas no art. 173[1], e os serviços públicos, tratados no art. 175[2] da Constituição, ambos compondo o gênero “atividade econômica em sentido amplo”.
Sobre as atividades econômicas em sentido estrito, há infindáveis hipóteses que podem ser imaginadas como de relevante interesse coletivo ou mesmo de imperativos da segurança nacional, devendo a lei definir no caso concreto cada uma das situações.
Relativamente ao serviço público, mencionado no art. 175 da Constituição, sua prestação compete, segundo EROS GRAU (2010, p. 101) preferencialmente ao setor público. Por outro lado, as atividades econômicas em sentido estrito, por conseguinte, ficam à disposição da iniciativa privada, conforme dispõe o parágrafo único do art. 170 da Constituição[3].
Em sendo lucrativas, ambas serão objeto de desejo da iniciativa privada. Em se tratando de serviço público, a atuação privada buscará submetê-lo ao mesmo regime das atividades econômicas em sentido estrito. Esse conflito é bem retratado por EROS GRAU (2010, pp. 108-109):
Pretende o capital reservar para sua exploração, como atividade econômica em sentido estrito, todas as matérias que possam ser, imediata ou potencialmente, objeto de profícua especulação lucrativa. Já o trabalho aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva não de modo especulativo, o maior número possível de atividades econômicas (em sentido amplo). É a partir deste confronto – do estado em que tal confronto se encontrar, em determinado momento histórico – que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente os âmbitos das atividades econômicas em sentido estrito e dos serviços públicos. Evidentemente, a ampliação ou retração de um ou outro desses campos será função do poder de reivindicação, instrumentado por poder político, de um e outro, capital e trabalho. A definição, pois, desta ou daquela parcela da atividade econômica em sentido amplo como serviço público é – permanecemos a raciocinar em termos de modelo ideal –decorrência da captação, no universo da realidade social, de elementos que informem adequadamente o estado, em um certo momento histórico, do confronto entre interesses do capital e do trabalho. (destaques do original)
Tratando de ambas as espécies de atividade econômica em sentido amplo (GRAU, 2010, P. 107), está o art. 174 da Constituição[4].
Nele está claro que o planejamento é vinculante para o setor público, mas meramente indicativo para o setor privado. Ambos, contudo, estão abrangidos pelas funções de incentivo e de fiscalização.
Disso que foi exposto até aqui, pode-se extrair que, se o planejamento, em algum ponto, puder ser prejudicado, por depender de alguma forma da iniciativa privada, poderá ser questionada a tentativa de o Estado tentar compeli-la a seguir suas diretrizes. Restará, então, se eventuais incentivos não surtirem efeito, como única alternativa, atuar diretamente para suprir essa lacuna. Com isso, respeita-se a liberdade do particular e se sana uma omissão que viria a prejudicar a concretização do plano.
Quando, por exemplo, na crise de 2008, o Estado brasileiro planejou ampliar o crédito, não poderia obrigar os bancos particulares a assim proceder. Mas isso não impediu que ele Estado, por meio de suas instituições financeiras oficiais, concretizasse sua estratégia, o que representou, segundo estudos, algo positivo naquele cenário (LODI, 2010).
Para desenvolver-se, então, conta o Estado com a iniciativa privada, mas não pode dela depender, principalmente quando o desenvolvimento necessitar da superação do conflito entre capital e trabalho. O desenvolvimento é para o Brasil e não para alguns.
Nessa linha, se em determinada ocasião, por hipótese, o Estado não puder satisfazer direitos de alguns por ausência de recursos, essa situação deve ser colocada ao país, para que se decida o que fazer, entre satisfazer ou não tais direitos. Mas, em uma situação como essa, em que se alegue ausência de recursos, essa ausência deverá ser para todos e não somente para determinados grupos.
Não havendo recurso para todos, o atendimento de alguns depende da eleição de prioridade feita por todos, o que inclui os prejudicados. Aqui entra a ideia do planejamento democrático, como forma de conciliar interesses em conflito (COMPARATO, 1986, pp.36-37).
A decisão, quando envolve, por exemplo, o pagamento de empréstimos estrangeiros, deve atentar para os efeitos que eventual inadimplemento pode gerar.
Essa preocupação se deve ao fato do reconhecimento de que recursos externos foram importantes no passado, à falta de alternativa para propiciar a industrialização (BASTOS, 2006).
De qualquer modo, a decisão deve ser a afirmação da soberania e deve vir de dentro. Para fortalecer essa soberania, é essencial o fortalecimento do Estado, de acordo com BERCOVICI (2003a, p. 567): “Portanto, a necessidade de fortalecer e reestruturar o Estado para a promoção do desenvolvimento passa, em nossa opinião, pelo estudo da soberania estatal, tanto em seu aspecto interno, como externo.”