3 A (in)constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010 frente a sua (in)aplicação antes e depois de entrar em vigor.
Dispõe a Constituição da Republica Federativa do Brasil em seu artigo 14, § 9º, dentre outras coisas que caberá à lei complementar estabelecer os casos de inelegibilidade, incluindo dentre eles as devidas considerações acerca da vida pregressa daquele que se dispuser a pleitear um assento como parlamentar no Poder Legislativo ou chefe do Poder Executivo municipal, estadual ou como Presidente da República.[35]
Cuida este dispositivo, artigo 14 da Lei Maior, acerca da soberania popular que está disposta inicialmente no parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna ao explicitar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”[36]. O caput do artigo 1º diz peremptoriamente que a República Federativa do Brasil se constitui da junção das unidades federativas, caracterizando-se como um Estado (Constitucional e) Democrático de Direito sendo fundamentada pela soberania (aqui deveremos entender também como soberania popular, e não apenas, como soberania do Brasil Pessoa Jurídica de Direito Público Internacional frente a outros países e organismos internacionais), pela cidadania e pela dignidade da pessoa humana.
Apenas a título de curiosidade buscamos uma informação que há alguns anos nos foi transmitida verbalmente, a qual mencionava uma nova definição que, seria do doutrinador Luiz Flávio Gomes a qual, na atualidade o modelo a ser adotado seria o do Estado Constitucional, Democrático e Multinormativo de Direito, uma vez que hoje não teríamos apenas a Constituição, as leis, a jurisprudência e doutrina internas, a nos guiar pelos caminhos da democracia e da retidão, mas, também a legislação internacional e tudo que dela advier como, p. ex., os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Essa busca se fez infrutífera, uma vez que não encontramos nenhuma menção a esse termo.
Como toda busca ao conhecimento nunca é perdida, descobrimos que em verdade o jurista Luiz Flávio Gomes[37] faz uso de outro termo, pois, segundo ele, “o Estado brasileiro já não é só apenas um Estado de Direito constitucional: agora passou a ser também um Estado de Direito Internacional” que, encabeça o último estágio do direito, o assim denominado direito universal. Assim, com este temos um “Estado constitucional e humanista de direito, que constitui, hoje, uma macrogarantia de proteção dos direitos humanos fundamentais frente ao exercício (ilegítimo) do poder”. No mesmo sentido encontramos a obra encabeçada por Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli intitulada Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos[38].
O mestre penalista, em artigo publicado no sitio eletrônico Jus Navigand e, intitulado Primeiras linhas do Estado constitucional e humanista de direito[39], assim explica o Estado de Direito Internacional:
No Estado constitucional e humanista de direito, que constitui a última evolução do sistema jurídico, são fontes normativas (que se dialogam): 1. as leis; 2. as leis codificadas (os códigos); 3. a constituição; 4. a jurisprudência interna que dá vida à conformidade constitucional do sistema jurídico; 5. os tratados internacionais, destacando-se os de direitos humanos; 6. a jurisprudência internacional, principalmente a do nosso sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e 7. o direito universal (que conta com valor supraconstitucional).
Pelas pesquisas feitas não encontramos, como já mencionado, o termo “Estado Constitucional, Democrático e Multinormativo de Direito”, todavia, isto não faz dele um termo a ser ignorado, uma vez que nos parece abarcar completamente a significação que nos fez buscá-lo. Continuaremos a procura pelos motivos já alegados, entretanto, não podemos negar que ficaríamos muito orgulhosos de sermos os primeiros a citá-lo.
Como poderíamos falar sobre cidadania e dignidade da pessoa humana sem termos latente em nosso cotidiano o enraizamento de soberania popular. Antônio Houaiss define soberania popular como “doutrina política que atribui ao povo o poder soberano”[40] e, Norberto Bobbio[41] menciona que a soberania popular é a verdadeira soberania pois “através da Constituição, define os órgãos e os poderes constituídos e instaura o ordenamento, onde estão previstas as regras que permitem a sua transformação e sua aplicação” e continua mencionando acerca do tema que pela soberania popular é possível direcionar “as formas pelas quais os representantes ou comissionados do povo devem exercer o poder, bem como os limites dentre os quais eles devem se movimentar”.
O conceito de soberania popular, portanto, é a confirmação de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”[42] e, por intermédio dele, é que poder-se-á efetivar em sua mais pura essência a cidadania e a dignidade da pessoa humana na busca do pleno desenvolvimento social.
Neste sentido encontramos José Jairo Gomes[43] ao mencionar que “o poder é soberano quando não está sujeito a nenhum outro”. Portanto, o poder soberanamente considerado está contido no parágrafo único do artigo 1º da Carta Maior, é dizer, é aquele emanado pelo povo e conferido aos seus representantes. Logo, continua o autor, “a soberania popular é concretizada pelo sufrágio universal, pelo voto direto e secreto, plebiscito, referendo e iniciativa popular”[44]. J. J. Gomes conclui sua linha de raciocínio afirmando que a “soberania popular se revela no poder incontestável de decidir” e isso, afirma ele é o que dá “legitimidade ao exercício do poder estatal. Tal legitimidade só é alcançada pelo consenso expresso na escolha feita nas urnas”.
Frente a tudo isso poderíamos nos questionar sobre a constitucionalidade da Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010, visto que conforme preceitua a norma constitucional do artigo 16 da Lei Magna “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”[45] e, como é sabido houve várias discordâncias acerca de sua imediata aplicabilidade ou não, incluindo aí nomes de peso no universo jurídico brasileiro que consideraram tal lei eivada de inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade ocorre, conforme leciona José Náufel quando existe uma “inadequação ou ofensa da lei, do ato normativo ou do ato jurídico à Constituição (...)”[46]. É dizer, pelo prisma do princípio da supremacia da constituição dentro de nosso ordenamento jurídico, todo ato normativo deverá, obrigatoriamente harmonizar-se com a Constituição, Lei Primordial que norteia os rumos a serem tomados pelo bem comum. Todavia, para existir uma norma inconstitucional não basta que a lei vá de encontro aos princípios basilares da constituição, sendo plenamente possível que normas existentes e dentro da conformidade jurídico-constitucional ganhem o status de inconstitucional, no momento em que estas não forem aplicadas, uma vez que a constituição assim o determine. Para J. A. da Silva “essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não satisfaz apenas com a atuação positiva (...) pois omitir a aplicação de normas constitucionais, quando a Constituição assim a determina, também constitui conduta inconstitucional”[47]. Dessa maneira, pelo sistema da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possuímos duas formas de inconstitucionalidades, quais sejam, a chamada inconstitucionalidade por ação (art. 102, I, a e III, a, b e c) e a inconstitucionalidade por omissão (art. 103, e seus §§ 1º a 3º)[48].
A inconstitucionalidade por ação existe ao criarmos normas, legislativas ou administrativas, que fujam aos preceitos firmados pela Carta Maior de 1988, visto que a supremacia que esta exerce no ordenamento jurídico brasileiro obriga a existência da chamada compatibilidade vertical normativa ou melhor dizendo, há que se fazer obedecer a verticalidade normativa hierárquica, pois uma norma inferior deverá obrigatoriamente ser compatível com a hierarquicamente superior ou nas precisas palavras do mestre José Afonso da Silva “as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas”[49].
Esta inconstitucionalidade, qual seja, a por ação é subdividida em duas modalidades, a inconstitucionalidade por ação material e a inconstitucionalidade por ação formal. Por esta temos que não foram obedecidos os procedimentos necessários para sua criação ou, foram formadas por autoridade incompetente para tal. De outro lado a norma será materialmente inconstitucional quando seu conteúdo for de encontro com os preceitos e os princípios forjados pela Constituição vigente. José Afonso da Silva complementa estes preceitos afirmando que “essa incompatibilidade não pode perdurar, porque contrasta com o princípio da coerência e harmonia das normas do ordenamento jurídico”[50].
Já a inconstitucionalidade por omissão “verifica-se nos casos em que não sejam praticados atos legislativos ou administrativos requeridos para tornar plenamente aplicáveis normas constitucionais”[51]. Dessa maneira temos que existe uma norma que não está eivada por inconstitucionalidade por ação em suas modalidades material e formal estando portando em perfeita consonância com o preceito da verticalidade e da supremacia da constituição, mas, dependem de regulamentação ulterior, seja por uma lei ou por alguma providência administrativa, todavia, estas não são providenciadas e, os direitos por elas previstos não são efetivados.
Frente ao anteriormente exposto, poderíamos indagar: afinal, em que consistiria a aventada inconstitucionalidade da Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010? Frente a esta indagação, parece-nos ser este o momento propicio para passarmos a analisá-la com maior minúcia e esmero.
Na obra A inclusão do cidadão no Processo Eleitoral de Edilene Lôbo, encontramos, um trecho no qual é posta a opinião do ex-ministro do STF Eros Grau em que este afirma que está “convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional”[52], no mesmo sentido temos Adriano Soares da Costa[53] ao dizer que “leis retroativas de conteúdo sancionatório ferem a consciência jurídica ocidental” e, mais adiante continua “o Tribunal Superior Eleitoral teve que fazer um enorme esforço interpretativo para, a um só tempo, negar a retroatividade da lei e, pasmem!, autorizar a sua retroatividade”, pois a justificativa seria “que a inelegibilidade decorrente de ato ilícito não seria – como de fato é! – uma sanção, mas sim uma condição para o futuro registro” e continua afirmando ter “a impressão de que a lei estaria sendo aplicada para o futuro, quando em verdade, o que se fez foi aplicá-la a fatos passados, atribuindo-lhes sanções gravíssimas”.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988 possui mecanismos para frear as mínimas possibilidades de criação legislativa que fira os direitos fundamentais, evitando com isso a insegurança jurídica e consequentemente o caos a se instalar nas instituições que a tão duras penas lutamos para conseguir.
Dentre os mecanismos constitucionais existentes podemos mencionar a norma do artigo 16 que garante a chamada anualidade da lei eleitoral, o artigo 5º, XL que versa sobre a irretroatividade da lei penal prejudicial, o artigo 5º, LVII que trata da presunção de inocência e, por derradeiro a vedação da cassação ou suspensão dos direitos políticos sem haver o correspondente trânsito em julgado, é dizer, segurança jurídica, disposta no preâmbulo da Carta Maior e nos artigos 1º e 5º c/c artigo 15, III[54]. Frente ao exposto e, visando sempre a melhor didática, vamos apreciar cada uma dessas alegações a seguir.
Pelo artigo 16 da Carta Maior[55], conhecido como princípio da anualidade eleitoral, as leis que modificarem o processo eleitoral brasileiro, é dizer, os procedimentos a serem tomados para as eleições vindouras, obrigatoriamente - e aqui frisamos que se trata de uma obrigação -, vigorará já na data de sua publicação, entretanto, sua aplicabilidade ficará sempre postergada para o período de 01 ano após sua entrada em vigor.
Este mesmo entendimento nos é dado por Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira quando[56] diz “(...) também conhecido como ‘antinomia eleitoral’ ou conflito de leis no tempo – é a expressão máxima da Democracia, lastreado no princípio do rules of game (...)”. Para este autor as assim chamadas “regras do jogo” não poderão ser modificadas sem que haja um período de adaptação plenamente compreensível por todos que dela façam parte. E, nesse sentido o autor elucida que “(...) não se pode fazer leis casuísticas para preservar o poder político, econômico ou de autoridade”.
Para efeito de pura ilustração vamos utilizar a própria Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010 para demonstrar a situação. Seguindo o preceituado pela norma constitucional do artigo 16 temos que esta lei complementar somente poderia ser aplicada, mesmo já estando em vigor, a partir de 04 de junho de 2011 nas eleições de outubro deste ano. Ocorre que no Brasil – apenas a título de curiosidade - as eleições são sempre realizadas em anos pares. Portanto seria impossível aplicar as regras da Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010, no ano de 2011 pelo simples motivo de que não houve eleição naquele ano, mas, de outro lado, completamente possível de fazê-lo nas eleições municipais de 2012. Caso a problemática se resumisse a isso, teríamos findo o problema.
Ocorre que a questão gira em torno do fato de que, ainda com a clareza solar equatorial exarada pela norma do artigo 16 da Carta Magna de 1988, houve o entendimento de deveria sim ser aplicada nas eleições daquele ano de 2010, ou seja, apenas 04 meses após sua entrada em vigor, mas, 08 meses antes do período constitucionalmente previsto para tal. O resultado foi uma enxurrada de ações impetradas contra esta interpretação jurídica.
A respeito da entrada em vigor e da aplicabilidade do princípio constitucional da anualidade eleitoral, preceituada no artigo 16 da Carta Maior de 1988 Alexandre de Moraes dispõe que “(...) o art. 16 pretende consagrar a segurança jurídica (...) permitindo que as regras do jogo democrático sejam conhecidas antecipadamente por todos aqueles que dele participam (...)”[57].
Ainda que estejamos tratando de uma lei de cunho eminentemente eleitoral, suas consequencias penais não podem ser negadas em momento algum, visto que por ela o candidato com antecedentes criminais já ficou impedido de participar do pleito eleitoral daquele mesmo ano. Dessa maneira, todos os candidatos que, em virtude da interpretação dada à modificação do processo eleitoral conferida pela Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010 foram impedidos de se candidatarem a cargos eletivos, ou seja, que foram prejudicados por uma lei que adveio posteriormente ao início do período preparatório para o pleito eleitoral daquele ano de 2010, tiveram prejudicada a pretensão de seus interesses e, deveriam estar dentro do âmbito protetor do princípio da irretroatividade da lei mais prejudicial. Quanto a isso não pensamos de modo diverso.
André Ramos Tavares[58] em seu livro Curso de Direito Constitucional menciona sobre o tema que “a análise de Direito Constitucional comparado conclui que algumas constituições vedam peremptoriamente a retroatividade das leis”, é dizer, o autor menciona o fato de que em outros países, qualquer lei passa pelo crivo do princípio da irretroatividade. E continua afirmando que “não é, porém, o que ocorre no Brasil, que veda a retroatividade em relação à lei penal e a retroatividade que atinja o direito adquirido, o ato jurídico ou a coisa julgada”. No mesmo sentido Damásio Evangelista de Jesus[59] ao mencionar que a “Const. Federal, art. 5º, XL; CP, art. 2º e parágrafo único: a lei posterior mais severa é irretroativa; a posterior mais benéfica é retroativa; a anterior mais benéfica é ultra-ativa”.
A presunção de inocência é principio primordial em um país constitucional e democrático de direito como o Brasil. O Estado não pode, ao contrário dos bandidos e malfeitores atuar à sombra, abaixo da linha que separa a justiça e a injustiça, a legalidade e a ilegalidade, os atos morais e os amorais. A responsabilidade que o Estado possui para com seus cidadãos faz com que ele, obrigatoriamente, seja um seguidor cauteloso de todos os preceitos legais que ele mesmo formula. Nesse sentido os direitos devem ser respeitados a fim de que não se prejudique um único inocente, sendo melhor, inclusive, beneficiar vários culpados. Desse modo de acordo com o entendimento dado ao assunto, André Ramos Tavares diz “trata-se de um princípio penal o de que ninguém pode ser tido por culpado pela prática de qualquer ilícito senão após ter sido como tal julgado pelo juiz natural, com ampla oportunidade de defesa”[60].
Por derradeiro[61], a vedação da cassação ou suspensão dos direitos políticos sem o devido trânsito em julgado, consubstanciado no princípio da segurança jurídica, faz com que analisemos o preâmbulo constitucional, e os artigos 1º e 5º conjuntamente com o artigo 15, todos da Lei Máxima.
A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 05 de outubro de 1988 trouxe renovação de ar aos pulmões da democracia nacional que por pouco mais de 21 anos respirou a espessa fumaça do desrespeito as liberdades civis. Parte magnânima desta Carta Cidadã é justamente seu preâmbulo que, com simplicidade em sua escrita, mas abarcando todas as especificações de suas intenções para um Brasil livre de injustiças denota a inteira compreensão acerca dos princípios da segurança jurídica.
Alexandre de Moraes[62] afirma que o preâmbulo “pode ser definido como um documento de intenções (...) e consiste em uma certidão de origem e legitimidade do novo texto e uma proclamação de princípios”, pois segundo o autor tem como fundamento a demonstração de uma “ruptura com o ordenamento constitucional anterior e o surgimento jurídico de um novo Estado”.
Ao dizer que os representantes do povo visam instituir um Estado (Constitucional) e Democrático de Direito em nosso território explicita-se o reconhecimento da soberania popular e de sua pujança. Esta soberania busca garantir o pleno exercício dos direito da pessoa humana, conferindo aos que aqui se encontrem, possam desfrutar de liberdade, segurança – inclusive jurídica -, igualdade e justiça como seus valores supremos, ou seja, estes são os pilares estruturais que têm como função garantir que ninguém, absolutamente ninguém, em solo brasileiro, sofrerá com ilegalidades e desmandos.
Importante deixar clara a ideia de que segundo Alexandre de Moraes[63] o preâmbulo ainda que não faça parte do texto da constituição e, por isso mesmo não contenha normas constitucionais de valor autônomo, “não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem”.
Os fundamentos da República Federativa do Brasil trazidos pelo artigo 1º do texto constitucional demonstram a sobriedade com que os constituintes, após duas décadas de ditadura, quiseram nos conferir para fazer de nosso país um lugar mais justo e igualitário. Esta soberania, portanto, pode ser entendida tanto como a do Brasil como Pessoa Jurídica de Direito Público Internacional frente às demais nações e organismos internacionais como também, a soberania popular exercida diretamente pelo povo ou, por intermédio de seus representantes regularmente eleitos dentro de nosso processo eleitoral.
A cidadania e a dignidade de que todos nós brasileiros temos direito de compartilhar cotidianamente seja por intermédio do trabalho digno ou, pela iniciativa privada, juntam-se ao pluralismo político e conferem brilho e força ao alicerce constitucional nacional que com tanto sacrifício construímos, pois, todos estes fundamentos pertencem e emanam do povo brasileiro. Assim a igualdade conferida pelo artigo 5º a todos os que em território nacional se encontrem, brasileiros e estrangeiros, sendo inviolável dentre outras coisas sua liberdade e segurança, fazem desta uma nação modelo.
Tudo isso, é dizer, o resurgimento da democracia brasileira frente à ruptura com o último sistema ditatorial que fomos obrigados a presenciar por pouco mais de duas décadas a assolar nossa população, confere-nos status de verdadeiro Estado Constitucional e Democrático de Direito – ou nas palavras de Luiz Flávio Gomes de, um Estado de Direito Internacional [64]-, dando a todos, brasileiros e estrangeiros residentes ou não, as garantias fundamentais de liberdade de ir e vir, de liberdade de pensamento, de segurança pública e jurídica, de igualdade, de justiça e, não se olvidando, inclusive, do direito à soberania popular, da cidadania e da dignidade em direitos e deveres, dentre várias outras.
Todos esses avanços fortaleceram nosso país, mas, às vezes, parece que por instantes, nos olvidamos de sua real significação e, prazerosamente, passamos por cima de outros direitos concedidos pelo próprio ordenamento constitucional, que no caso em tela consiste na vedação da cassação e da suspensão dos direitos políticos, sem que haja, anteriormente, uma condenação judicial transitada em julgado, fato que, aliás, é cláusula pétrea segundo a norma do artigo 15, III c/c os artigos 5º, LVIII e 60, § 4º, IV[65].
De nada adianta termos conseguido uma Constituição Cidadã que nos confere vários direitos se, de outro lado, desrespeitamos preceitos insculpidos neste mesmo texto cidadão, deixando assim, cair por terra a magnanimidade desta compilação normativa que tem por base a proteção geral de todos os brasileiros e estrangeiros aqui residentes ou não.
Talvez, e apenas talvez, o pano de fundo para isso esteja na ância popular em punir a corrupção que sempre nos assolou. Este “vírus que está encubado no corpo do Brasil” é dizer, em nosso sistema político desde os primórdios coloniais como anteriormente mencionado.
Um país em que a população mais abastada compra o status de vila[66] ao invés de conquistá-lo e, ao fazê-lo, aqueles que puderam pagar por este direito se dão ao luxo de serem escolhidos vereadores, faz com que a população tenha a nítida sensação de impunidade o que, às vezes, somente pode ser saciado diante de outra(s) injustiça(s).
A República Federativa do Brasil como Estado Constitucional e Democrático de Direito - ou, mais modernamente como Estado de Direito Internacional[67] -, não pode admitir que as injustiças perpetradas dentro de seu território sejam pagas com outras injustiças e ilegalidades. Assim acontecendo, estaríamos nos rebaixando ao status de país na contramão da evolução jurídico-constitucional que a tão duras penas conseguimos.
Anteriormente à promulgação da Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010 a questão acerca dos direitos políticos já era discutida. Contrario sensu ao direito político negativo, temos o direito político positivo. Ou seja, para que uma pessoa possa se candidatar a cargo eletivo – direito político negativo que corresponde ao direito de ser votado – deverá obrigatoriamente ser eleitor regularmente inscrito na Justiça Eleitoral – direito político positivo que corresponde ao direito de votar.
Acerca do tema direitos políticos positivos e negativos, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira menciona que os direitos positivos consistem no “conjunto de normas que conferem ao cidadão o direito subjetivo de participação no processo político e nos órgãos governamentais, por meio do direito ao sufrágio”[68], já os negativos “privam o cidadão pela perda, definitiva ou temporária (suspensão), da totalidade dos direitos políticos de votar e ser votado e, ainda, determinam restrições à elegibilidade do cidadão em certas circunstâncias”[69]. José Jairo Gomes menciona ao invés de direitos políticos positivos e negativos direitos ativos e passivos nos seguintes termos, “o cidadão que tem suspensos seus direitos políticos fica privado das capacidades eleitorais ativa e passiva: não pode votar nem ser votado”[70].
O Código Eleitoral em seu artigo 71 trata das causas de cancelamento da inscrição eleitoral, já nos antecipamos para informar que este não é o foco do trabalho a que nos propusemos, todavia, faz-se mister abordá-lo para melhor compreensão do tema. Assim, ao dispor acerca do cancelamento das inscrições eleitorais, o Código Eleitoral trouxe a baila uma das primeiras possibilidades de se impedir que um candidato com antecedentes criminais viesse a ser eleito.
Portanto, da combinação do artigo 71, II do Código Eleitoral[71] com o artigo 15, III da Constituição Federal de 1988[72] retiramos a conclusão de que, anteriormente à promulgação do texto da Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010 já existiam mecanismos que poderiam impedir a candidatura de pessoas com antecedentes criminais com sentença penal transitada em julgado.
Desta maneira o eleitor regularmente inscrito perante a Justiça Eleitoral, mas que, viesse a ser condenado criminalmente e, esta condenação transitasse em julgado teria automaticamente suspensos os seus direito políticos, o que, por ventura, acabaria impedindo sua pretensão de se candidatar a qualquer cargo eletivo enquanto durassem os efeitos dessa condenação.
Vera Maria Nunes Michels[73] menciona esta situação dizendo que “ninguém tem seus direitos políticos suspensos pelo fato de estar privado da liberdade, ocorrendo tal suspensão tão somente com o trânsito em julgado da sentença criminal condenatória”. Mais adiante a mesma autora acrescenta a informação de que nem todos perdem seus direitos políticos afirmando a esse respeito que “os presos em flagrante ou preventivamente, os presos por inadimplência de dívida civil (alimentos) e os presos por depósito infiel, são presos com direitos políticos mantidos”.
Importante salientar que, conforme o Recurso Extraordinário 179.502 – SP o preceituado na norma constitucional do artigo 15, III foi considerado auto-aplicável pelo Supremo Tribunal Federal não sendo necessário sua explícita menção no corpo da sentença penal condenatória acerca da suspensão dos direitos políticos, bastando para tal que o juiz eleitoral seja informado do fato.[74] No mesmo sentido temos José Jairo Gomes[75] ao mencionar que “(...) Trata-se de norma auto-aplicável, conforme pacífico entendimento jurisprudencial: Precedente: STF-RE 179.502-SP; STF – AgRRMS n. 22.470/SP e; STJ – RMS n. 16.884/SE”. Segundo o magistério deste mesmo autor, isso se deve, por constituir esta suspensão “efeito secundário da sentença criminal condenatória, exsurgindo direta e automaticamente com seu trânsito em julgado”[76].
O cumprimento da norma do artigo 15, III da Carta Suprema de 05 de outubro de 1988 tem fundamento simplório, pois, os cargos público-eletivos não podem ser preenchidos por pessoas com histórico de banditismo. As funções públicas exigem de seus ocupantes a probidade não apenas no exercício da função específica, mas, também no que se refere ao histórico de vida de todo aquele que pretende fazer parte de alguma instituição pública. No que se refere àqueles que buscam uma posição eletiva, os critérios devem ser ainda maiores, visto que estes estarão não apenas lidando, mas, diretamente cuidando dos interesses da população, seja na função de administrador como chefe do Poder Executivo, seja na função de legislador como membros dos parlamentos no Poder Legislativo. Nesse sentido “visa-se, com isso, assegurar a legitimidade e a dignidade da representação popular, pois o Parlamento – e, de resto, todo o aparato estatal – não pode transformar-se em abrigo de delinquentes”[77] e, ampliando o entendimento do tema “(...) A ratio legis (...) é a salvaguarda da legitimidade e da dignidade da representação popular, porquanto o Parlamento não pode transformar-se em abrigo de delinquentes, o que constituiria decadência moral vitanda”[78].
Por respeito à didática e, visando a melhor compreensão do assunto discutido, temos que segundo José Jairo Gomes[79], ao se fazer menção à condenação criminal deveremos ter em mente que está se englobado também a contravenção penal. O autor continua afirmando que a natureza da penalidade aplicada não importa, ficando os direitos políticos suspensos sempre que for a pena restritiva de direitos, pecuniária, que haja a concessão de sursis ou livramento condicional, que a pena seja cumprida em regime aberto, albergue, domiciliar, ou ainda que seja a sentença absolutória imprópria, pois, mesmo havendo absolvição, possui natureza condenatória, por último, independe ser o ato ilícito doloso ou culposo. De outro lado, o legislador foi mais rigoroso ao tratar dos ilícitos do art. 1º, I, e, da Lei Complementar 64/90 dispondo que além de inelegíveis pelo período de cumprimento da penalidade, estaria ainda, inelegíveis por 3 anos após seu cumprimento ou extinção, o que hoje, com a Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010 aumentou para 8 anos. Seguindo o mesmo sentido interpretativo temos o magistério de Marcos Ramayana.[80]
Em situação diametralmente oposta encontramos a transação penal do artigo 76 da Lei 9099/95, tendo que “(...) Não havendo condenação judicial transitada em julgado, os direitos políticos de quem aceita a transação penal não são atingidos, e, pois, não se suspendem”[81]. A mesma situação se dá com o sursis processual previsto na norma do artigo 89 da mesma Lei dos Juizados Especiais.
A história recente nos mostra que o tema inelegibilidade não é apenas difícil de aplicar, mas, sobretudo, deve ser utilizado com extrema cautela. Neste sentido Thales Tácito Cerqueita[82] apresenta a situação ocorrida por ocasião da existência da Lei Complementar 5 de 29 de abril de 1970[83] em sua alínea n do artigo 1º, I que tornava inelegíveis qualquer um que tivesse denúncia recebida por crimes, por exemplo, contra a segurança nacional e a ordem política e social, etc. Em virtude dessa facilidade de tornar qualquer um inelegível, durante a ditadura militar (1964 - 1985) muitos processos simplesmente apareceram tendo como única finalidade fazer alguns candidatos indesejáveis se tornarem inelegíveis. O TSE, na ocasião, declarou a inconstitucionalidade desta alínea n por 4 votos contra 3, todavia, o STF entendeu em sentido contrário e as inelegibilidades declaradas por motivos tão frágeis voltaram a acontecer, fazendo desta, mais uma situação de “nosso passado de absurdos gloriosos”[84].
De outro lado, acerca da historicidade recente, encontramos sobre o tema, em José Jairo Gomes, interessante síntese acerca da problemática postulação de cargo eletivo vs lisura na vida pregressa. Sobre este tema, que possui início basicamente no ano de 2006 passaremos a analisá-lo[85].
Corriqueiramente pessoas que possuem processo criminal ou de improbidade administrativa tentam candidatar-se a um cargo eletivo. Contudo, esta situação faz com que o postulante se sustente em condições muito frágeis que acaba por levar a dúvidas quanto à lisura de suas intenções e, por mais que o princípio da presunção de inocência deva prevalecer chegou-se a um ponto em que a cautela deve ser sempre apreciada.
Tudo isso fez com que no ano de 2006, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro, o Tribunal Regional Eleitoral daquela unidade federativa apreciando algumas ações movidas pela Procuradoria Regional Eleitoral rejeitasse alguns registros de candidaturas uma vez que os candidatos estavam sendo processados criminalmente. A rejeição dos mandatos se fundamentou na circunstância de que, ainda que não houvesse condenação, estes não tinham as condições morais necessárias para possuírem um cargo eletivo. Mesmo sendo fruto de boa intenção, a tese não foi acolhida pelo Tribunal Superior Eleitoral por apenas um voto (4 votos contra 3), sendo rechaçada, portanto, durante as eleições do ano de 2006.[86]
Nas eleições de 2008 a mesma tese foi discutida na Consulta n. 1.621/PB resultando na Resolução n. 22.842 a qual foi julgada em 10/06/2008 e, decidido que a Lei Complementar 64/90 já tratava sobre os critérios de concessão de registro de candidaturas e, que o Poder Judiciário não poderia ditar critérios para estabelecer inelegibilidade baseado na vida pregressa de candidato, pois que somente lei complementar pode fazê-lo, voto da lavra do ex-Ministro Eros Grau[87]. Com base nesse entendimento, nas eleições seguintes no ano de 2008 ao apreciarem a Consulta 1.607/2007 a Corte Eleitoral decidiu unanimemente que o candidato respondendo a processo, poderia sim registrar sua candidatura uma vez que não existisse trânsito em julgado.
Com essa mesma linha de raciocínio, o Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF n. 144/DF defendeu que não se podem estipular novos casos de inelegibilidade para se cuidar da probidade administrativa e da moralidade pública, usando para isso critérios de vida pregressa do candidato sem lei complementar que o estipule, pois, não se pode por decisão judicial fazê-lo.[88]
No mesmo ano de 2008 a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aprovou o Projeto de Lei 390/2005 visando modificar a Lei Complementar 64/90 fazendo com que candidatos com condenação em primeira ou única instância ficassem inelegíveis. Por ocasião do projeto que se tornou a Lei 12.034/09 a questão da condenação em primeira instância voltou a ser discutida, mas, foi rejeitado na Câmara dos Deputados.[89]
Frente a todas estas questões de difícil solução para a moralização da vida política brasileira que, a cada tentativa de solucionar o problema, esbarrava em entraves jurídicos, é que teve início um movimento que ficou conhecido como “Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral”. Por este, a sociedade civil organizada mobilizou-se para a coleta de assinaturas para a criação de Projeto de Lei de Iniciativa Popular o qual, foi apresentado ao Congresso Nacional com mais de um milhão e trezentas mil assinaturas. Sua tramitação teve início na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 518/2009 e, devido ao assemelhado objetivo, foi apensado ao PL n. 168/93 que tinha como foco a inelegibilidade na vida pregressa de candidatos a cargos eletivos.[90]
Este singelo histórico foi extraído da obra Direito Eleitoral de José Jairo Gomes em sua 5ª edição disponibilizada no mês de abril de 2010. Até então, tínhamos apenas expectativas sobre o desfecho do PL 518/2009 e de toda a problemática que o envolvia. Ocorre que no dia 04 de junho do mesmo ano de 2010 foi promulgado a Lei Complementar 135, cognominada “Lei da Ficha Limpa” a qual, veio trazer alento aos anseios populares com relação às candidaturas de pessoas com maus antecedentes criminais.
De maneira similar ao que encontramos em Gênesis 1:1 a 4[91] poderíamos mencionar a promulgação da Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010 da seguinte forma: No início a mobilização da sociedade civil organizada criou um projeto de lei de iniciativa popular n. 518/09. A política brasileira estava sem forma e vazia; os maus candidatos cobriam o cenário nacional. Então o Presidente da República por intermédio do Congresso Nacional disse que se faça a luz pela Lei Complementar 135! E a Lei Complementar 135 começou a existir. Mas apesar de se ver que a luz da Lei Complementar 135 era boa; a confusão começou.
Nossa intenção ao comparar a promulgação da Lei Complementar 135/2010 com os primeiros versículos do livro bíblico Gênese, não é desrespeitar nenhuma crença, mas, ao contrário, demonstrar a semelhança das ideias de criação, contudo, diferentemente do texto bíblico que ao se comprovar que a luz era boa separou-se esta das trevas, com promulgação da mencionada lei ao tentarem separar a luz (LC 135/2010) das trevas (candidatos com antecedentes criminais) teve início o caos.
Na obra A inclusão do cidadão no processo eleitoral, Edilene Lôbo[92] nos traz as seguintes informações:
É de domínio público que o TSE, respondendo às Consultas de número 1.120-26/DF, relatada pelo Ministro Hamilton Carvalhido, e de número 1.147-09/DF, relatada pelo Ministro Arnaldo Versiani, asseverou:
“a) a lei eleitoral que alterar as causas de inelegibilidade e o período de duração da perda dos direitos políticos sancionada e publicada no ano eleitoral pode ser aplicada neste mesmo ano;
b) a lei eleitoral que alterar as causas de inelegibilidade e o período de duração da perda dos direitos políticos, aplica-se aos processos em tramitação iniciados antes de sua vigência;
c) as disposições da nova lei podem retroagir para agravar a pena de inelegibilidade aplicada na forma da legislação anterior; e
d) as disposições da nova lei podem estabelecer execução de pena antes do trânsito em julgado.”
Embora na resposta às consultas em questão contenha a advertência de que não constituem julgamento de casos concretos, mas, tão somente indicativos do que em tese poderia ser, é igualmente notório a comemoração apoteótica do TSE e dos Tribunais Regionais Eleitorais, informando o número de registros de candidaturas indeferidos em decorrência da aplicação da Lei da Ficha Limpa, com base nos argumentos proferidos nas consultas.
Inicialmente fica a dúvida: seria possível explicar esse entendimento ou, trata-se apenas de decisão isolada? Na dúvida deixemos os dois e vamos debater em rápidas linhas o que anteriormente já expusemos.
Data venia ao entendimento dos eminentes Ministros Hamilton Carvalhido e Arnaldo Versiani homens de vasta cultura jurídica, não por outro motivo o são Ministros da Corte Suprema Eleitoral, além de merecedores de todo nosso respeito como juristas e cidadãos, mas, ao menos em princípio, fica a desorientação frente aos seus entendimentos nas Consultas 1.120-26/DF e 1.147-09/DF, respectivamente. Frente a isso, tentaremos expor, mediante artigos e princípios insculpidos na Carta Máxima de 1988, base do ordenamento jurídico pátrio, o que pareceria ser o entendimento majoritário, não se olvidando nunca de exarar o mais alto respeito aos ilustres Ministros.
O princípio da anterioridade eleitoral, insculpido na norma do artigo 16 do texto constitucional é claro ao explicitar que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”[93]. A interpretação desta norma constitucional nos parece, não oferece nenhuma dificuldade ao intérprete, pois trata separadamente de vigência e aplicabilidade. Sua vigência é imediata, o que, não ocorre com sua aplicação ao fato concreto. Ao contrário do que estabelece a norma constitucional do artigo 16 o entendimento exarado nas consultas foi o de que “a lei eleitoral que alterar as causas de inelegibilidade (...) pode ser aplicada neste mesmo ano”[94] de 2010. Diante disso, respeitosamente, ficamos sem entender o alcance do entendimento.
No artigo 5º, XL da Lei Maior, encontramos o princípio da irretroatividade da lei e, no que diz respeito à LC 135/2010, não há como não admitirmos seu caráter eminentemente prejudicial aos interesses dos postulantes a cargos eletivos, o que, inicialmente, torna este princípio obrigatório ao caso em tela, pois conforme leciona Edilene Lôbo “(...) a suspensão de direitos políticos, ainda que decorrente de processo civil é penalidade. E como tal atrai as garantias constitucionais (...)”[95] que lhe sejam cabíveis. Este entendimento vem embasado pelo julgado da ADPF n. 144 de relatoria do Ministro Celso de Mello enfatizando o entendimento de que o princípio constitucional da presunção de inocência ultrapassa as fronteiras do Direito Penal, senão vejamos:[96]
Nem se diga que a garantia fundamental da presunção de inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado [...].
O princípio da segurança jurídica insculpido no preâmbulo da Constituição e, seus artigos 1º e 5º conjuntamente com o artigo 15, III vedam a cassação ou a suspensão dos direitos políticos sem que haja uma condenação penal transitada em julgado, isso, sem falar, da obrigatoriedade do transcurso de um ano da promulgação da LC 135/10. Diante disso é difícil compreender que “as disposições da nova lei podem retroagir para agravar a pena de inelegibilidade aplicada na forma da legislação anterior”[97] além de que “as disposições da nova lei podem estabelecer execução de pena antes do trânsito em julgado”[98]. O que dizer então do artigo 5º, LVII que diz respeito a presunção de inocência?
Como visto, ainda que pese a competência jurídica e nosso sentimento de respeito aos eminentes Ministros, estes nos parecem, a princípio, equivocados frente ao entendimento constitucional consagrado, tanto é assim, que na liminar da Ação Cautelar n. 142085/DF, da lavra do Ministro Marcelo Ribeiro o entendimento vai de encontro com os dois anteriormente mencionados. Nesta decisão liminar o eminente Ministro Marcelo Ribeiro menciona que “qualquer alteração na legislação eleitoral vigente deve atender ao comando constitucional”[99].
O Ministro Marcelo Ribeiro[100] ainda menciona a irretroatividade da lei prejudicial, indo ao encontro do entendimento majoritário frente a constituição dispondo “(...) mesmo que se apliquem às próximas eleições as modificações realizadas (...) os dispositivos alterados não poderiam alcançar os processos pendentes que apurem infrações de caráter eleitoral (...)”. O ministro encerra primorosamente ao observar que deverá “(...) ser observada a legislação em vigor no momento da decisão”.
De modo afirmativo e claro o ilustre Ministro Marcelo Ribeiro afirma que a sanção de inelegibilidade, poderá apenas e tão somente incidir após a ocorrência do trânsito em julgado, pois assim estava disposto no artigo 15 da LC 64/1990 que, naquele momento, ainda estava vigente e acrescenta que isso “contado o prazo de três anos da eleição em que praticados os ilícitos”[101], conforme estipula a anterior redação do inciso XIV, artigo 22 da mesma LC 64/90, não nos esquecendo que este prazo, de acordo com a atual redação é de 8 anos.
A zona cinzenta que envolveu a Lei Complementar 135/2010 fez surgirem situações no mínimo inusitadas. Em sua participação na Convenção Estadual do PP-SP, realizada em 21 de junho de 2010, o Deputado Federal Paulo Maluf, verdadeira “lenda viva” do cenário político nacional e figura envolvida em alguns escândalos de repercussão nacional afirmou peremptoriamente, naquela ocasião que não temia a Lei da Ficha Limpa e ainda completou “a minha ficha é a mais limpa do Brasil. É bom que se diga: sou elegível sou candidato a deputado federal e não tenho nenhuma condenação que me impeça. (...) Este é o fato”.[102] Posteriormente, ao ter sua candidatura impugnada, em 16 de dezembro de 2010, teve por decisão tomada pelo Ministro Marco Aurélio Mello, embasado pela absolvição de Maluf no TJ-SP, liberada sua candidatura a reeleição como deputado federal por São Paulo[103], ficando claro, de certa maneira, que Maluf estava certo ao afirmar: “a minha ficha é a mais limpa do Brasil”[104].
Outra figura nacional que também poderíamos chamar de “lenda viva” é o senador paraense Jader Barbalho. Assim como Paulo Maluf, envolvido em escândalos de repercussão nacional, foi outro alvo da Lei da Ficha Limpa. Eleito em 2010 como segundo Senador mais votado em seu estado, foi obrigado a esperar por 11 meses para tomar posse como senador. Já na primeira entrevista como titular do cargo afirmou que “de um modo geral, eu votei favorável e vocês podem conferir isso”, menção a ter sido favorável a Lei da Ficha Limpa e continuou “agora, acho que este momento é o momento em que o Supremo tem de analisar esta questão da constitucionalidade [para avaliar se a lei vale para as eleições de 2012]”[105].
Jader Barbalho foi beneficiado por uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em março de 2011 na qual derrubou a interpretação do TSE de que os candidatos que houvessem renunciado ao mandato não poderiam ser reeleitos em 2010.[106]