"Interpretação é, se nos ativermos ao sentido das palavras, ‘desentranhamento’, difusão e exposição do sentido disposto no texto, mas, de certo modo, ainda oculto." (Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997, p. 441).
Pela regra imposta no art. 594 do Código de Processo Penal, "o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime que se livre solto."
Assim, em relação ao condenado que não seja primário e não tenha bons antecedentes, dois ônus a ele se impõem por força de lei: a prisão automática decorrente da sentença condenatória (salvo se se livrar solto ou prestar fiança, sendo esta cabível) e a impossibilidade de recorrer se não for recolhido à prisão.
Na verdade, se nos limitarmos a interpretar literalmente este artigo chegaremos forçosamente à conclusão que ele afronta a Constituição (e, portanto, é inválido) em pelo menos duas oportunidades: 1ª.) quando o texto constitucional garante a presunção de inocência(1)) e 2ª.) quando assegura a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.
Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", é de todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar, independentemente de primariedade e de bons antecedentes. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois, ainda não foi condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal. Mais estranho se nos afigura ao atentarmos que aquela presunção foi declarada constitucionalmente.
Desta forma, esta prisão provisória, anterior a uma decisão transitada em julgado, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade (periculum libertatis(2)).
No mesmo passo, há a segunda questão: se a Constituição também assegura aos acusados em geral a ampla defesa com os recursos a ela inerentes, parece-nos também claro que uma lei infraconstitucional não poderia condicionar este direito de recorrer àquele que não tem bons antecedentes e não é primário, ao recolhimento à prisão. Observa-se que esta regra legal está complementada no artigo seguinte, segundo o qual "se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação." (art. 595, CPP).
Da mesma forma, agora igualmente soa estranho para nós não se permitir ao acusado o acesso ao duplo grau de jurisdição, quando não seja primário e não tenha bons antecedentes.
Não esqueçamos que a "adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador."(3)
Apesar do texto constitucional não conter expressamente a garantia do duplo grau de jurisdição (como ocorre com a presunção de inocência), é indiscutível o seu caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem "direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior", e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que "toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei."
É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º.
Fábio Comparato, por exemplo, informa que "a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico"(4): é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.(5)
Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a indiscutível natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição ("nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles") e que ele "não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República", lembram, no entanto, que a atual Constituição "incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art. 93, III)."(6)
Resta-nos, então, já que legem habemus, interpretar este dispositivo legal (infraconstitucional e fruto de uma lei de 1973) à luz da Constituição Federal, a fim de que possamos entendê-lo ainda como válido, fazendo, porém, uma leitura efetivamente garantidora.
Ora, se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento.
Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar de garantir a ordem pública, a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise, a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente estudo).
Se assim o é, fácil é interpretar este artigo 594 da seguinte forma e nos seguintes termos: a prisão será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que, in casu, fosse cabível a prisão preventiva contra o réu, independentemente de sua condição pessoal de primário e de ter bons antecedentes; ou seja, o que definirá se o acusado aguardará preso ou em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos.
Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória."
Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do duplo grau de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta Magna, o artigo ora analisado não pode ser interpretado literalmente, porém, mais uma vez, em conformidade com aquele Diploma, lendo-o da seguinte forma: não se pode condicionar a admissibilidade da apelação ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e não tenha bons antecedentes. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo que a prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da prisão provisória), ainda assim, admitir-se-á o recurso, mesmo que não tenha sido preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir.
Observa-se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento provisório (por ser, repita-se, necessário), o não recolhimento do acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso da defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento (não pode ser considerado deserto).
Não concordamos, outrossim, que a exigência da prisão para recorrer seja uma "regra procedimental condicionante do processamento da apelação", como pensa Mirabete(7), pois, como contrapõe Luiz Flávio Gomes, "se não ofende a presunção de inocência ou a ampla defesa, indiscutivelmente ofende o princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5º., LXI."(8)
Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 594, o que seria desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas. Por outro lado, utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a Constituição, procurando adequar o texto legal com o Texto Maior e evitando negar vigência ao dispositivo, mas, antes, admitindo-o válido a partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição.
Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, "a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas."(9)
Devemos atentar que o presente artigo foi inserido em nosso código processual penal pela Lei nº. 5.941/73, época em que vigiam em nosso País a Constituição anterior a 1988 (que não trazia o princípio da presunção de inocência) e um regime não democrático.
Naquele contexto histórico, portanto, fácil era entender que uma lei ordinária viesse a dificultar o direito ao recurso e a prever a prisão automática decorrente de sentença condenatória recorrível. Bastava a sentença condenatória e a prisão impunha-se automaticamente, por força de lei, presumindo-se a culpabilidade ou a periculosidade do réu.(10)
Ocorre que desde 1988 temos outra Constituição, com outros princípios, muitos dos quais expressamente previstos (o que não impede a existência de princípios constitucionais implícitos, como, v.g., o da proporcionalidade). A lei anterior, então, tem que ser interpretada segundo este critério, ou seja, em conformidade com a nova ordem constitucional (sob pena de ser considerada não recepcionada e, logo, inválida), evidentemente sem ultrapassar o seu sentido literal, apenas conformando-a com a Constituição.
Como dissemos, no tempo em que foi inserida em nosso sistema jurídico, a lei traduzia, em verdade, o momento histórico em que vivia o País, cabendo, por isso mesmo, atentarmos, agora, para o elemento histórico-teleológico (concepção subjetivista da interpretação, ou teoria da vontade), segundo o qual a lei obedece ao tempo em que foi intencionalmente (finalisticamente) concebida, devendo ser interpretada preferencialmente em conformidade com aquela realidade.
Devemos, então, buscar abrigo neste elemento histórico, acomodando a lei às "novas circunstâncias não previstas pelo legislador", especialmente aos "princípios elevados a nível constitucional".(11)
Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo interpretativo fosse possível à luz da CF/88. Por outro lado, não entendemos ser o caso de, simplesmente, reconhecer inválida a norma insculpida naquele artigo de lei. A nós nos parece ser possível interpretá-la em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem "ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei."(12)
Se verdade é que "por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara", também é certo que "uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores." (grifo nosso): teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei.(13)
Portanto, não se pode ler o artigo 594 e inferir, hoje, o que se traduz gramaticalmente desta leitura. A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente.(14)
Em reforço à tese ora esboçada, ilustra-se dizendo que o projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal, expressamente, revoga os arts. 594 e 595 do atual CPP. Na respectiva exposição de motivos, justifica-se a revogação afirmando que teve "como objetivo definir que toda prisão antes do trânsito em julgado final somente pode ter o caráter cautelar. A execução ‘antecipada’ não se coaduna com os princípios e garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito." São os novos tempos...
Vê-se que "las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas." (grifo nosso)(15)
Ademais, atentando-se, outrossim, para o sistema jurídico e fazendo uma interpretação sistemática do dispositivo(16), assinalamos que, posteriormente a ele, surgiu no cenário jurídico brasileiro a Lei nº. 8.072/90 (Crimes Hediondos), dispondo que "em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade." (art. 2º., § 2º., com grifo nosso).
Atenta-se, com Maximiliano, que o "Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio."(17)
Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz:
"Mediante a interpretação ‘faz-se falar’ o sentido disposto no texto, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e tornado comunicável. A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo."(18)
NOTAS
1. Tucci, respaldado pelas lições de Guglielmo Sabatini, prefere a expressão não-consideração prévia de culpabilidade, pois "l’imputato è sempre e solo imputato ai fini dello svolgimento del processo. Quindi non va considerato nè come innocente, nè come colpevole." (in Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 401). Outros autores falam em princípio da não-culpabilidade e, como Dotti, em princípio da incensurabilidade.
2. Expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in mora (cfr. Delmanto Junior, Roberto, in As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 67).
3. Moraes, Maurício Zanoide de, Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29.
4. Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.
5. "Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel." (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116). O STF, reiteradamente, combate-o.
6. Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 15ª. ed., p. 74.
7. Processo Penal, São Paulo: Atlas, 10ª. ed., 2000, p. 649.
8. Direito de Apelar em Liberdade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª. ed., p. 32.
9. Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.
10 Ocorre que "nenhuma presunção emanada do legislador infraconstitucional pode prevalecer sobre a presunção constitucional", como diz Luiz Flávio Gomes, ob. cit., p. 26.
11. "Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência da ‘dignidade da pessoa humana’ (...), a tutela geral do espaço de liberdade pessoal, com as suas concretizações (...) da Lei Fundamental." (Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997, p. 479).
12. Idem, p. 481
13. idem, ibidem, p. 446.
14. "Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal" (idem, p. 450).
15. Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).
16. "Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto", segundo nos ensina Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, 7ª. ed., p. 164.
17. Idem, p. 165.
18. Ob. cit., p. 441.