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A devida cautela com a liberdade de manifestação

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O promotor Rogério Zagallo utilizou-se de uma rede social com o intuito de criticar os manifestantes. Aquele que divulga livremente seu pensamento, a depender das circunstâncias, pode ser responsabilizado administrativa, civil ou criminalmente.

A Carta Constitucional de 1988 estabelece em seu art. 5º, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Esse dispositivo, se analisado dentro do contexto social em que se vive, demonstra uma preocupação do legislador constituinte de evitar que, no futuro, qualquer difusão de um pensamento pudesse ser objeto de repressão, retornando-se à famigerada época da ditadura militar.

Ocorre que, da mesma forma em que é livre a manifestação de pensamento, é necessário se ter em mente que aquele que a divulga, a depender das circunstâncias, pode ser responsabilizado administrativa, civil ou criminalmente a depender de seu teor. E mais, os representantes de algumas profissões precisam ter o máximo de cuidado com a divulgação desses posicionamentos, pois podem ser responsáveis por um grave problema institucional.

Esse é o caso do promotor de Justiça Rogério Zagallo, da 5ª Vara do Júri de São Paulo. De acordo com informações divulgadas pelos meios de comunicação, em decorrência das últimas manifestações contra o aumento das passagens de ônibus na Capital Paulista, o promotor utilizou-se de uma rede social com o intuito de criticar os manifestantes com a seguinte afirmação:

“Estou há duas horas tentando voltar para casa, mas tem um bando de bugios revoltados parando a Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor alguém pode avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito policial”[1].

Veja, o profissional que é Promotor de Justiça, que é responsável, nos termos da constituição, pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, jamais poderia ter se posicionado da forma como observada. Que pode ele, enquanto cidadão, estar irresignado com as manifestações, disso não temos o que retrucar, haja vista que movimentos sociais dessa natureza, de fato, prejudicam o direito de ir e vir da população.

Contudo, em se tratando de profissional, que na qualidade de representante da instituição do Ministério Público deve prezar pelo regime democrático de direito, não poderia ter incentivado a polícia a “matar os manifestantes”. Isso é absolutamente contrário ao que estabelece nosso sistema normativo brasileiro.

Como se não bastasse isso, o mesmo profissional é professor universitário, ou seja, formador de opinião entre os estudantes de Direito, o que torna a afirmação ainda mais grave. Sendo assim, não parece razoável que, ainda que concorde com os termos escritos em sua rede social, os divulgue da forma como o fez.

Rogério Zagallo tanto reconhece que se excedeu nas afirmações, que, posteriormente ao ocorrido, divulgou nota se desculpando pelo ocorrido e afirmando que

“Foi um desabafo. Não de um promotor, mas de um pai desesperado que não conseguia pegar seu filho […] Nunca faria um negócio desse, foi uma forma de manifestar minha ira por não conseguir buscar meu filho. Eu nem tenho esse poder, tenho restrições”[2].

Diante de todo esse cenário deve-se ter em mente três coisas essenciais:

  1. o direito de manifestação (direito de reunião pacífica) é legítimo e descreve o verdadeiro Estado Democrático de Direito apregoado pela Constituição da República vigente;
  2. da mesma forma que o direito de manifestação é legítimo, o direito de difusão de um pensamento também é legítimo, não sendo passível nenhuma reforma tendente a extirpá-lo de nosso diploma constitucional, uma vez que se trata de cláusula pétrea (art. 60, §4º);
  3. os profissionais que se apresentam como representantes do povo, responsáveis pela manutenção da ordem jurídica e do Estado Democrático devem se apresentar de maneira contida em relação a alguns temas, pois deve ter em mente que, acima de tudo, é o nome da Instituição que estará em jogo, que no caso concreto é o Ministério Público.

Assim sendo, não se está a defender uma limitação a direitos fundamentais, tampouco que haja um cerceamento da liberdade de pensamento dos cidadãos, mas, tão somente, que se tenha cautela na difusão desse tipo de ponto de vista. Da mesma forma que a liberdade de pensamento é direito fundamental, nossa Carta Constitucional não permite o incentivo e a difusão de atos que sejam tendentes à findar com a vida ou integridade física/psíquica de ninguém, eis que o próprio art. 5º, estabelece em seu caput o direito à vida e em seu inciso III, que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, que apesar de não estar intimamente relacionado com o tema, pode ser lido de maneira extensiva ao caso concreto. 

É necessário uma maior reflexão sobre o alcance que as redes sociais têm hoje em nossa sociedade. Em um mundo tecnológico, em que os espaços físicos estão cada vez mais próximos, as fronteiras estão ultrapassados, há que se ter em mente que uma simples frase, aparentemente tímida – como um desabafo – pode tomar proporções graves. 


Notas

  1. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/10/promotor-que-incitou-violencia-contra-manifestantes-em-sp-tera-conduta-investigada-pelo-mp-para-oab-sp-houve-crime.htm
  2. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/06/apos-sugerir-morte-de-manifestantes-promotor-se-arrepende-e-exclui-post.html
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Sobre o autor
Marcelo Sant'Anna Vieira Gomes

Meste em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Vice-Secretário Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos - ABDH. Assessor Jurídico no Ministério Público Federal do Espírito Santo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Marcelo Sant'Anna Vieira. A devida cautela com a liberdade de manifestação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3638, 17 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24739. Acesso em: 18 abr. 2024.

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